História do Direito no Brasil – Wolkmer
Matheus Lolli Pazeto *
WOLKMER, Antônio Carlos. História do Direito no Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. 170 p.
CAPÍTULO II
O Direito na Época do Brasil Colonial
2.1 Primórdios da estrutura político-econômica brasileira
“Nos primeiros séculos após o descobrimento, o Brasil, colonizado sob a inspiração doutrinária do mercantilismo e integrante do Império Português, refletiu os interesses econômicos da Metrópole e, em função deles, articulou-se”. (p. 37)
“Nessa perspectiva, o Brasil-Colônia só poderia gerar produtos tropicais que a Metrópole pudesse revender com lucro no mercado europeu; além disso, as outras atividades produtivas deveriam limitar-se de modo a não estabelecer concorrência, devendo a Colônia adquirir tudo o que a Metrópole tivesse condições de vender. Para Portugal, o Brasil deveria servir seus interesses; existia para ele e em função dele”. (p. 38)
“Efetivamente, o Brasil, sendo colonizado pelo processo de exploração, criou as condições para agricultura tropical centrada economicamente em torno do cultivo das terras, transformando-se numa grande empresa extrativa destinada a fornecer produtos primários aos centros europeus”. (p. 38)
“A gestão da Colônia se faria através da Metrópole, cabendo-lhe tornar efetivos os princípios do mercantilismo, principalmente através da constituição de monopólios. É no sistema monopolista que reside o núcleo de toda essa conjuntura. O monopólio do comércio pela Metrópole visava, naturalmente, impedir que outras nações européias pusessem em risco, com a concorrência, aqueles privilégios advindos da restrição comercial, tão lucrativa aos comerciantes portugueses que não encontravam, no seu reduzido espaço, satisfação para sua ambição”. (p. 38)
“O país se edificou como uma sociedade agrária baseada no latifúndio, existindo, sobretudo, em função da Metrópole, como economia complementar”. (p. 38)
“Por outro lado, o universo da formação social do período colonial foi marcado pela polarização entre imensos latifúndios e a massa de mão-de-obra escrava. Em tais condições, percebia-se a estreita conjunção entre a monocultura empregada nas fazendas visando à exportação e à sobreposição de relações sociais incrementadas tendo em conta a escravidão. Deste modo, a organização social define-se, de um lado, pela existência de uma elite constituída por grandes proprietários rurais, e de outro, por pequenos proprietários, índios, mestiços e negros, sendo que entre os últimos pouca diferença havia, pois sua classificação social era quase a mesma”. (p. 39)
“Para a exploração mais lucrativa dos latifúndios, a alternativa escrava era a que melhor servia ao sistema, porque, se fossem importados homens livres, estes poderiam tornar-se donos de um pedaço das terras devolutas que existiam em abundância; além disso, aos traficantes era lucrativo trocar ‘negros’ por produtos tropicais que comercializavam na Europa. Há de se levar em conta que diante do fracasso da tentativa de escravizar índios, os grandes proprietários assentaram seu poder econômico e social no incremento do tráfico de negros escravos”. (p.39)
“Já no que se refere à estrutura política, registra-se a consolidação de uma instância de poder que, além de incorporar o aparato burocrático e profissional da administração lusitana, surgiu sem identidade nacional, completamente desvinculada dos objetivos de sua população de origem e da sociedade como um todo. Alheia à manifestação e à vontade da população, a Metrópole instaurou extensões de seu poder real na Colônia, implantando um espaço institucional que evoluiu para a montagem de uma burocracia patrimonial legitimada pelos donatários, senhores de escravos e proprietários de terras”. (p. 39-40)
“A aliança do poder aristocrático da Coroa com as elites agrárias locais permitiu um modelo de Estado que defenderia sempre, mesmo depois da independência, os intentos de segmentos sociais donos da propriedade e dos meios de produção. Naturalmente, o aparecimento do Estado não foi resultante do amadurecimento histórico-político de uma Nação unida ou de uma sociedade consciente, mas de imposição da vontade do Império colonizador. Instaura-se, assim, a tradição de um intervencionismo estatal no âmbito das instituições sociais e na dinâmica do desenvolvimento econômico. Tal referencial aproxima-se do modelo de Estado absolutista europeu, ou seja, no Brasil, o Capitalismo se desenvolveria sem o capital, como produto e recriação da acumulação exercida pelo próprio Estado”. (p. 40-41)
“No plano das idéias, dos valores e das formas de pensamento do colonizador, que eram condicionados pelo mercantilismo econômico e pela administração centralizadora burocrática, emergiu uma mentalidade calcada na racionalidade escolástico-tomista e nas teses do absolutismo elitista português”. (p. 42)
“(…) Portugal distanciava-se do ideário renascentista, da modernidade científica e filosófica, do espírito crítico e das novas práticas do progresso material, advindas com o Capitalismo, fechando-se no dogma eclesiástico da fé e da revelação, no apego à tradição estabelecida e na propagação de crenças religiosas pautadas na renúncia, no servilismo e na disciplina”. (p. 43)
“Esses traços são essenciais para compreender o tipo de cultura que foi propagado pela Metrópole durante os primórdios da colonização lusitana no Brasil. Tratava-se de uma cultura senhorial, escolástica, jesuítica, católica, absolutista, autoritária, obscurantista e acrítica”. (p. 43)
“Em fins do século XVIII e ao longo do século XIX, começam a chegar ao Brasil os ecos do ciclo de idéias representadas pelo iluminismo pombalino e pelas primeiras manifestações do liberalismo engendrados na Metrópole lusitana”. (p. 45)
2.2 A legislação colonizadora e o Direito Nativo
“O empreendimento do colonizador lusitano, caracterizando muito mais uma ocupação do que uma conquista, trazia consigo uma cultura considerada mais evoluída, herdeira de uma tradição jurídica milenária proveniente do Direito Romano. O Direito Português, enquanto expressão maior do avanço legislativo na península ibérica, acabou constituindo-se na base quase que exclusiva do Direito pátrio”. (p. 46)
Visto que “(…) Portugal não teve outra saída senão buscar trabalhadores na África, diante da destruição dos povos nativos e da conseqüente carência da mão-de-obra agrícola. (…) É nesse contexto colonial de economia de exportação e de estrutura social, constituída em grande parte por populações indígenas e por escravos africanos alijados do governo e sem direitos pessoais, que se deve perceber os primórdios de um Direito essencialmente particular, cuja fonte repousava na autoridade interna dos donatários, que administravam seus domínios como feudos particulares”. (p. 46)
“O primeiro momento da colonização brasileira, que vai de 1520 a 1549, foi marcado por uma prática político-administrativa tipicamente feudal, designada como regime das Capitanias Hereditárias. As primeiras disposições legais desse período eram compostas pela Legislação Eclesiástica, pelas Cartas de Doação e pelos Forais”. (p. 47)
“Com o fracasso da grande maioria das capitanias, tratou a Metrópole de dar à Colônia outra orientação designada com sistema de governadores-gerais. Surgiu, assim, a utilização de um certo número de prescrições decretadas em Portugal, reunindo desde cartas de Doação e Forais das capitanias até Cartas-Régias, Alvarás, Regimentos dos governadores gerais, leis e, finalmente, as Ordenações Reais, De fato, o Direito vigente no Brasil-Colônia foi transferência da legislação portuguesa contida nas compilações de leis e costumes conhecidos como Ordenações Reais, que englobavam as Ordenações Afonsinas (1446), as Ordenações Manuelinas (1521) e as Ordenações Filipinas (1603). Em geral, a legislação privada comum, fundada nessas Ordenações do Reino, era aplicada sem qualquer alteração em todo o território nacional. Concomitantemente, a inadequação, no Brasil, de certas normas e preceitos de Direito Público que vigoravam em Portugal determinava a elaboração de uma legislação especial que regulasse a organização administrativa da Colônia”. (p. 48)
“Entretanto, a insuficiência das Ordenações para resolver todas as necessidades da Colônia, tornava obrigatória a promulgação avulsa e independente de várias ‘Leis Extravagantes’, versando, sobretudo, sobre matérias comerciais”. (p. 48)
“No século XVIII, com as reformas pombalinas, a grande mudança em matéria legislativa foi a ‘Lei da Boa Razão’ (1769) que definia regras centralizadoras e uniformes para interpretação e aplicação das leis, no caso de omissão, imprecisão ou lacuna. A ‘Lei da Boa Razão’ minimizava a autoridade do Direito Romano, da glosa e dos arestos, dando ‘preferência e dignidade às leis pátrias e só recorrendo àquele direito, subsidiariamente, se estivesse de acordo com o direito natural e as leis das Nações Cristãs iluminadas e polidas, se em boa razão fossem fundadas’”. (p. 48)
“Não resta dúvida de que o principal escopo dessa legislação era beneficiar e favorecer a Metrópole. A experiência político-jurídica colonial reforçou uma realidade que se repetiria constantemente na história do Brasil: a dissociação entre a elite governante e a imensa massa da população”. (p. 49)
“Desde o início da colonização, além da marginalização e do descaso pelas práticas costumeiras de um Direito nativo e informal, a ordem normativa oficial implementava, gradativamente, as condições necessárias para institucionalizar o projeto expansionista lusitano. A consolidação desse ordenamento formalista e dogmático está calcada doutrinariamente, num primeiro momento, no idealismo jusnaturalista; posteriormente, na exegese positivista”. (p. 49-50)
Sobre o Direito indígena, Wolkmer afirma que “Naturalmente, a legalidade oficial imposta pelos colonizadores nunca reconheceu devidamente como Direito as práticas tribais espontâneas que organizaram e ainda continuam mantendo vivas algumas dessas sociedades sobrevivente. Vale dizer que o máximo que a justiça estatal admitiu, desde o período colonial, foi conceber o Direito indígena como uma experiência costumeira de caráter secundário”. (p. 52)
E quanto ao Direito nas Missões, afirma Wolkmer: “na verdade, os jesuítas se constituíram, ao mesmo tempo, em juízes e em tribunais superiores das causas indígenas, no interior das reduções. Tendo em vista que as Missões eram parte da Coroa Espanhola, a legislação aplicada nas reduções eram as Leis das Índias. À insuficiência ou inadequação das Leis das Índias na resolução de casos concretos, facultava-se aos jesuítas da América, por concessão do Papa Paulo III, a elaboração de estatutos ou normas para suprir essa falta”. (p. 55)
2.3 Os operadores jurídicos e a administração da justiça
“(…) a administração da justiça, no período das capitanias hereditárias, estava entregue aos senhores donatários que, como possuidores soberanos da terra, exerciam as funções de administradores, chefes militares e juízes”. (p. 58)
“A situação modificou-se consideravelmente com o advento dos governadores-gerais, evoluindo para a criação de uma justiça colonial e para a formação de uma pequena burocracia composta por um grupo de agentes profissionais. Isso foi possível na medida em que as antigas capitanias se transformaram em espécie de províncias unificadas pela autoridade do mandatário-representante da Metrópole. Tornou-se mais fácil com a reforma político-administrativa impor um sistema de jurisdição centralizadora controlada pela legislação da Coroa”. (p. 58)
“Por orientação das Cartas de Doação, a primeira autoridade da Justiça Colonial foi o cargo particular de ouvidor, designado e subordinado aos donatários das capitanias por um prazo renovável de três anos. Tratava-se, numa primeira fase, de meros representantes judiciais dos donatários com competência sobre ações cíveis e criminais”. (p. 58-59)
Wolkmer destaca ainda o Desembargo do Paço, o qual, segundo ele, “(…) não pode deixar de destacar o supremo conselho institucionalizado e a esfera mais elevada de jurisdição (…). Já consagrado pelas Ordenações Manuelinas, o Desembargo do Paço não tinha função específica de julgamento, mas sim de ‘assessoria para os assuntos da justiça e administração legal, embora causas de mérito especial que houvessem exaurido todos os outros meios de acordo pudessem ser levados até esse órgão’”. (p. 60)
“Cabe ainda mencionar, como inerente ao organismo judiciário da época, as Juntas da Justiça, já referidas pelo Regimento de Tomé de Souza, mas adquirindo maior notoriedade pelo alvará de 18 de junho de 1765 e tornando-se extensivas a todo o território do Brasil onde houvesse ouvidores”. (p. 62)
“Com a criação e o funcionamento do Tribunal da Relação, no Brasil, consolidou-se uma forma de administração da justiça não mais efetuada pelo ouvidor-geral, mas centrada na burocracia de funcionários civis preparados e treinados na Metrópole”. (p. 62)
“Os magistrados revelavam lealdade e obediência enquanto integrantes da justiça criada e imposta pela Coroa”. (p. 63)
“A carreira do magistrado estava inserida na rigidez de um sistema burocrático que delineava a circulação e a prestação de serviço na Metrópole e nas colônias. Em geral, o exercício da atividade judicial era regido por uma série de normas que objetivavam coibir envolvimento maior dos magistrados com a vida local, mantendo-os eqüidistantes e leais servidores da Coroa. Dentre algumas dessas regras, vale lembrar a designação por apenas um período de tempo no mesmo lugar, as proibições de casar sem licença especial, de pedir terras na sua jurisdição e de exercer o comércio em proveito pessoal. Ainda que essas regras se impusessem em Portugal, no Tribunal Superior da Bahia, sua violação acabava sendo constante, tanto por parte de desembargadores portugueses (aqueles que pretendiam permanecer no país) quanto de magistrados brasileiros”. (p. 63-64)
“Para ingressar na carreira, além da origem social, era condição indispensável ser graduado na Universidade de Coimbra, de preferência em Direito Civil ou Canônico, ter exercido a profissão por dois anos e ter sido selecionado através do exame de ingresso ao serviço público (a ‘leitura dos bacharéis’) pelo Desembargo de Paço em Lisboa. Sua atividade profissional começava como ‘juiz de fora’, prosseguindo como ouvidor de comarca e carregador. Somente após uma boa experiência na administração judiciária é que o magistrado era promovido a desembargador, podendo ser designado tanto para a Metrópole quanto para as colônias”. (p. 65)
“É indiscutível, portanto, reconhecer que no Brasil-Colônia, a administração da justiça atuou sempre como instrumento de dominação colonial. A monarquia portuguesa tinha bem em conta a necessária e imperiosa identificação entre o aparato governamental e o poder judicial. Friza-se, deste modo, que a organização judicial estava diretamente vinculada aos níveis mais elevados da administração real, de tal forma que se tornava difícil distinguir em certos lugares da colônia, a representação de poder das instituições uma da outra, pois ambas se confundiam”. (p. 68)
“Além das formas convencionais de administração da justiça, produzidas e mantidas pelo Estado no período da colonização, cabe aludir, no amplo cenário de procedimentos históricos legais e na determinante influência da Igreja Católica à época, a presença da justiça eclesiástica acolhida e resguardada pela Inquisição. Sabe-se que o Tribunal do Santo Ofício possuía um Regimento Interno, composto por leis, jurisprudência, ordens e regulamentos, sendo os crimes de maior gravidade aqueles considerados contra a fé e contra a moral e os costumes, prevalecendo métodos de ação como a ‘denúncia’, a ‘confissão’, a ‘tortura’ e a ‘pena de morte’ na fogueira”. (p. 69)
“As inspeções inquisitoriais ocorreram no Brasil durante toda a época colonial. Ainda que se possa destacar, num primeiro momento, as Visitações de 1591 e de 1618, o aumento considerável das ‘perseguições inquisitoriais no Brasil deu-se na primeira metade do século XVIII, quando a produção do ouro dominava a economia colonial. Nessa ocasião, a maior parte dos prisioneiros era composta de cristãos-novos do Rio de Janeiro’”. (p. 70)
“Em síntese, o delineamento dos parâmetros constitutivos da legalidade colonial brasileira, que negou e excluiu radicalmente o pluralismo jurídico nativo, reproduziria um arcabouço normativo, legitimado pela elite dirigente e por operadores jurisdicionais a serviço dos interesses da Metrópole e que moldou toda uma existência institucional em cima de institutos, idéias e princípios de tradição centralizadora e formalista”. (p. 71)
CAPÍTULO III
ESTADO, ELITES E CONSTRUÇÃO DO DIREITO NACIONAL
3.1 O liberalismo pátrio: natureza e especificidade
“O liberalismo emergiu como uma nova concepção de mundo, impregnada de princípios, idéias e interesses, de cunho individualista, ‘traduzíveis em regras e instituições’ e vinculado ‘à condução e à regulamentação’ da vida pessoal em sociedade”. (p. 74)
“(…) a perspectiva ‘político-jurídica’ do liberalismo está calcada em princípios básicos como: consentimento individual, representação política, divisão dos poderes, descentralização administrativa, soberania popular, direitos e garantias individuais, supremacia constitucional e Estado de Direito”. (p. 74-75)
“Já no Brasil, o liberalismo expressaria a ‘necessidade de reordenação do poder nacional e a dominação das elites agrárias’, processo esse marcado pela ambigüidade da junção de ‘formas liberais sobre estruturas de conteúdo oligárquico’, ou seja, a discrepante dicotomia que iria pendurar ao longo de toda a tradição republicana: a retórica liberal sob a dominação oligárquica, o conteúdo conservador sob a aparência de formas democráticas. Exemplo disso é a paradoxal conciliação ‘liberalismo-escravidão’”. (p. 75-76)
“Eram profundamente contraditórias as aspirações de liberdade entre diferentes setores da sociedade brasileira. Para a população mestiça, negra, marginalizada e despossuída, o liberalismo, simbolizado na independência do país, significava a abolição dos preconceitos de cor, bem como a efetivação da igualdade econômica e a transformação da ordem social. Já para os estratos sociais que participaram diretamente do movimento em 1822, o liberalismo representava instrumento de luta visando à eliminação dos vínculos coloniais. Tais grupos, objetivando manter intactos seus interesses e as relações de dominação interna, não chegaram a ‘reformar a estrutura de produção nem a estrutura da sociedade. Por isso, a escravidão seria mantida, assim como a economia de exportação”. (p. 76)
“O Estado liberal brasileiro, como qualifica Trindade, nasceu ‘em virtude da vontade do próprio governo (da elite dominante) e não em virtude de um processo revolucionário’. O liberalismo apresentava-se, assim, desde o início como ‘a forma cabocla do liberalismo anglo-saxão’ que em vez de identificar-se ‘com a liberação de uma ordem absolutista’, preocupava-se com a ‘necessidade de ordenação do poder nacional’”. (p. 77)
“Enfim, a tradição das idéias liberais no Brasil não só conviveu, de modo anômalo, com a herança patrimonialista e com a escravidão, como ainda favoreceu a evolução retórica da singularidade de um ‘liberalismo conservador, elitista, antidemocrático e antipopular’, matizado por práticas autoritárias, formalistas, ornamentais e ilusórias”. (p. 79)
3.2 O liberalismo e a cultura jurídica no século XIX
“Ao conferir as bases ideológicas para a transposição do status colonial, o liberalismo não só se tornou componente indispensável na vida cultural brasileira durante o Império, como também na projeção das bases essenciais de organização do Estado e de integração da sociedade nacional. Entretanto, o projeto liberal que se impôs expressaria a vitória dos conservadores sobre os radicais, estando dissociado de práticas democráticas e excluindo grande parte das aspirações dos setores rurais e urbanos populares, e movia-se convivendo e ajustando-se com procedimentos burocrático-centralizadores inerentes à dominação patrimonial. Trata-se da complexa e ambígua conciliação entre patrimonialismo e liberalismo, resultando numa estratégia liberal-conservadora que, de um lado, permitiria o ‘favor’, o clientelismo e a cooptação; de outro, introduziria uma cultura jurídico-institucional marcadamente formalista, retórica e ornamental. Além de seus aspectos conservadores, individualistas, antipopulares e não-democráticos, o liberalismo brasileiro deve ser visto igualmente por seu profundo traço ‘juridicista’”. (p. 79)
“(…) a vertente ‘juridicista’ do liberalismo brasileiro teria papel determinante na construção da ordem político-jurídico nacional. Numa análise mais acurada constata-se que dois fatores foram responsáveis pela edificação da cultura jurídica nacional ao longo do século XIX. Primeiramente, a criação dos cursos jurídicos e a conseqüente formação de uma elite jurídica própria, integralmente adequada à realidade do Brasil independente, Em segundo, a elaboração ‘de um notável arcabouço jurídico no Império: uma constituição, vários códigos, leis’ etc”. (p. 80)
“A implantação dos dois primeiros cursos de Direito no Brasil, em 1827, um em São Paulo e outro em Recife (transferido de Olinda em 1854), refletiu a exigência de uma elite, sucessora da dominação colonizadora, que buscava concretizar a independência político-cultural, recompondo, ideologicamente, a estrutura de poder e preparando nova camada burocrático-administrativa, setor que assumiria a responsabilidade de gerenciar o país”. (p. 80)
“(…) as escolas de Direito foram destinadas a assumir duas funções específicas: primeiro, ser pólo de sistematização e irradiação do liberalismo enquanto nova ideologia político-jurídica capaz de defender e integrar a sociedade; segundo, dar efetivação institucional ao liberalismo no contexto formador de um quadro administrativo profissional”. (p. 80-81)
“As primeiras faculdades de Direito, inspiradas em pressupostos formais de moedlos alienígenas, contribuíram para elaborar um pensamento jurídico ilustrado, cosmopolita e literário, bem distante dos anseios de uma sociedade agrária da qual grande parte da população encontrava-se excluída e marginalizada”. (p. 81)
“A Faculdade de Direito pernambucana expressaria tendência para a erudição, a ilustração e o acolhimento de influências estrangeiras vinculadas ao ideário liberal”. (p. 81)
“O intento do Grupo do Recife foi tratar o fenômeno jurídico a partir de uma pluralidade temática, reforçada por leituras naturalistas, biologistas, cientificistas, históricas e sociológicas, apoiando-se fortemente num somatório de tendências que resultavam basicamente no Evolucionismo e no monismo, sem desconsiderar a crítica sistemática a certas formulações jusnaturalistas e espiritualistas”. (p. 82)
“Já a Academia de São Paulo, cenário privilegiado do bacharelismo liberal e da oligarquia agrária paulista, trilhou na direção da reflexão e da militância política, no jornalismo e na ‘ilustração’ artística e literária. Aliás, foi o intenso periodismo acadêmico o traço maior que predominou na tradição do Largo de São Francisco, levando os bacharéis ao desencadeamento de lutas em prol de direitos individuais e liberdades públicas”. (p. 83)
“Depois das Escolas Jurídicas, passa-se, agora, para o segundo fator nuclear que iria contribuir para consolidar a emancipação da cultura jurídica no Brasil, ou seja, o desencadeamento do processo de elaboração da legislação própria no Público e no Privado. Inegavelmente, o primeiro grande documento normativo do período pós-independência foi a Constituição Imperial de 1824, imbuída de idéias e instituições marcadamente liberais, originadas da Revolução Francesa e de doutrinas do constitucionalismo francês, associadas principalmente ao publicista Benjamin Constant. Tratava-se de uma Constituição outorgada que institucionalizou uma monarquia parlamentar, impregnada por um individualismo e um acentuado centralismo político. Naturalmente, essa Lei Maior afirmava-se idealmente mediante uma fachada liberal que ocultava a escravidão e excluía a maioria da população do país. A contradição entre o formalismo retórico do texto constitucional e a realidade social agrária não preocupava nem um pouco a elite dominante, que não se cansava de proclamar teoricamente os princípios constitucionais (direito à propriedade, à liberdade, à segurança), ignorando a distância entre o legal e a vida brasileira do século XIX”. (p. 84-85)
“(…) o segundo arcabouço legislativo foi o Código Criminal de 1830, advindo das Câmaras do Império e de árdua realização. (…) Representava um avanço, se comparado aos processos cruéis das Ordenações. Ainda que tenha conservado a pena de morte – mais tarde transformada em prisão perpétua – orientava-se, de um lado, pelo princípio da legalidade, ou seja, a proporcionalidade entre o crime e a pena; de outro, pelo princípio da pessoalidade das penas, devendo a aplicação da pena incidir exclusivamente no condenado, não se estendendo aos descendentes”. (p. 85-86)
“A reforma liberal do sistema judicial no período posterior à Independência se completa com o Código de Processo Criminal”. (p. 87)
“O Código combinava práticas processualistas derivadas do sistema inglês e do francês, o que representava, uma vez mais, a vitória do espírito liberal e a supressão do ritual inquisitório filipino. Os anseios do novo espírito iriam refletir-se não apenas na inovação do habeas corpus e na consagração do sistema de jurado, mas na própria modificação da hierarquia e da composição judiciária. Com isso, extinguiu-se a estrutura colonial portuguesa, apoiada sobre os ouvidores e os juízes de fora”. (p. 87)
“A etapa seguinte de evolução jurídica foi o Código Comercial de 1850, que, após ter passado por lento processo de redação parlamentar, acabou configurando-se num modelo normativo para diversas legislações mercantis latino-americanas”. (p. 88)
“Mais do que ter suas fontes de inspiração nos textos romanos, na doutrina italiana e na exegese civil napoleônica, reproduzia a conveniência de relações mercantis e os interesses contratuais e obrigacionais da elite local”. (p. 88)
“O Código Civil, em que pesem seus reconhecidos méritos de rigor metodológico, sistematização técnico-formal e avanços sobre a obsoleta legislação portuguesa anterior, era avesso às grandes inovações sociais que já se infiltravam na legislação dos países mais avançados do Ocidente, refletindo a mentalidade patriarcal, individualista e machista de uma sociedade agrária preconceituosa, presa aos interesses dos grandes fazendeiros de café, dos proprietários de terra e de uma gananciosa burguesia mercantil”. (p. 89)
3.3 Magistrados e Judiciário no tempo do Império
“Trata-se dos segmentos sociais e dos mecanismos funcionais que compuseram a máquina de administração da justiça, ungidos para interpretar e aplicar a legalidade estatal, garantir a segurança do sistema e resolver os conflitos de interesses das elites dominantes. Constata-se, pois, o procedimento profissional e político dos magistrados enquanto atores privilegiados da elite imperial, sua relação com o poder político, com a sociedade civil e sua contribuição na formação das instituições nacionais. Para isso, é necessário descrever, primeiramente, que a Independência do país não encontrou adesão integral na antiga magistratura, pois enquanto alguns apoiaram a ruptura, muitos outros permaneceram fiéis à monarquia lusitana”. (p. 90-91)
“Ademais, determinados fatores contribuíram para dar singularidade à postura da magistratura no período que se sucede à Independência: o corporativismo elitista, a burocracia como poder de construção nacional e a corrupção como prática oficializada”. (p. 91)
“Nas décadas posteriores à Independência, em função do tipo de educação superior, dos valores e das idéias que se incorporava, a camada profissional dos juízes se constituiria num dos setores essenciais da unidade e num dos pilares para a construção da organização política nacional. O que distingue a magistratura de todas as outras ocupações é o fato de que ela representava e desenvolvia formas de ação rígidas, hierarquizadas e disciplinadas que melhor revelavam o padrão que favorecia práticas burocráticas para o exercício do poder público e para o fortalecimento do Estado”. (p. 92)
“Tratava-se de uma camada privilegiada ‘treinada nas tradições do mercantilismo e absolutismo portugueses’, unida ideologicamente por valores, crenças e práticas que em nada se identificava à cultura da população do país. Entretanto, por sua educação e orientação os magistrados estavam preparados para exercer papel de relevância nas tarefas do governo. Daí que, marcados por um sentido mais ou menos político, sua homogeneidade social e ocupação projetava-os não só como os primeiros funcionários modernos do Estado nascente, mas sobretudo como os principais agentes de articulação da unidade e da consolidação nacional”. (p. 92)
“O quadro dessa elite de servidores letrados, autênticos representantes do estamento burocrático estatal, com papel decisivo na organização e na unidade das instituições nacionais, somente se completa quando se leva em consideração o comportamento desses atores, suas relações e práticas com a sociedade civil. Nesse aspecto, há que se registrar o aparecimento de práticas revestidas de nepotismo, impunidade e corrupção em diversos segmentos da magistratura luso-brasileira ao longo do Império. Essa tradição, condenada por muitos, acentuou-se em razão das amplas garantias, vantagens e honrarias que os juízes desfrutavam e que se manteve com suas vinculações políticas, compromissos partidários e subserviências ao poder, principalmente na esfera da administração local”. (p. 93)
“Deve-se em muito às forças liberais, já a partir da segunda metade do século XIX, a luta por reformas que viabilizassem maior garantia aos magistrados para exercer a função jurisdicional e aplicar a lei com autonomia frente ao poder político. Em termos de peso e de eficácia, as grandes mudanças que atingiram a magistratura e a organização judiciária como um todo foram trazidas pelo descentralizador Código de Processo Criminal de 1832 (por forças liberais), pela reforma desta mesma legislação em dezembro de 1841 (por influência dos conservadores) e, por fim, pela mais significativa de todas as alterações realizadas no sistema jurisdicional do Império: a Reforma de 1871”. (p. 94-95)
“(…) no período que sucede à Independência do país, a junção de forças liberais com grupos de aliados nativos determinou alguns avanços político-jurídicos, como o sistema de júri popular e o de juízes locais eleitos, aptos para a conciliação prévia de causas cíveis em geral. Ainda que os juízes de paz não fossem juízes pagos e exercessem funções de menor importância, tratava-se de alteração importante na organização de um judiciário reconhecidamente exclusivista e centralizador”. (p. 96)
“Depois de 1832, os poderes do Juiz de Paz foram estendidos à jurisdição penal, adquirindo um perfil mais coercitivo e de controle. Contudo, se a Reforma de 1841 limitou e reduziu em muito as funções de Juiz de Paz, a Reforma Judiciária de 1871 alargou-as novamente, atribuindo à sua esfera o chamado processo sumaríssimo, menos formal e mais simplificado”. (p. 96-97)
“Além dessa experiência renovadora de ‘magistratura popular’ escolhida pela participação da comunidade, merece atenção, igualmente, a instituição do Tribunal do Júri, que representou as aspirações de autonomia judicial e localismo, em maior grau do que as decisões do Juiz de Paz”. (p. 97)
“Em síntese, foi no cenário instituído por uma cultura marcada pelo individualismo político e pelo formalismo legalista que se projetou a singularidade de uma magistratura incumbida de edificar os quadros político-burocráticos do Império”. (p. 98)
3.4 O perfil ideológico dos atores jurídicos: o bacharelismo liberal
“No cenário instituído por uma cultura marcada pelo individualismo político e pelo formalismo legalista, projeta-se a singularidade de um agente profissional incumbido de compor os quadros político-burocráticos do Império e de grande parte da República. Com a criação dos primeiros cursos jurídicos, o aparecimento do bacharel em Direito acabou impondo-se como uma constante na vida política brasileira. Trtava-se não só da composição de cargos a serviço de uma administração estatal em expansão, mas, sobretudo, representava um ideal de vida com reais possibilidades de segurança profissional e ascensão a um status social superior. Isso se revestia de demasiado significado numa sociedade escravocrata em que o trabalho manual era desprezado em função de letrados urbanos que se iam ajustando e ocupando as crescentes e múltiplas atividades públicas”. (p. 98-99)
“(…) a iniciação nas academias jurídicas permitia uma identidade cultural apta ao exercício da advocacia, da literatura, do periodismo e da militância política”. (p. 99)
“Além disso, há que se fazer menção ao perfil dos bacharéis de Direito mediante alguns traços particulares e inconfundíveis. Ninguém melhor do que eles para usar e abusar do uso incontinente do palavreado pomposo, sofisticado e ritualístico. Não se pode deixar de chamar a atenção para o divórcio entre os reclamos mais imediatos das camadas populares do campo e das cidades e o proselitismo acrítico dos profissionais da lei que, valendo-se de um intelectualismo alienígeno, inspirado em princípios advindos da cultura inglesa, francesa ou alemã, ocultavam, sob o manto da neutralidade e da moderação política, a institucionalidade de um espaço marcado por privilégios econômicos e profundas desigualdades sociais. Na verdade, o perfil do bacharel juridicionista se constrói numa tradição pontilhada pela adesão ao conhecimento ornamental e ao cultivo da erudição lingüística. Essa postura, treinada no mais acabado formalisto retórico, soube reproduzir a primazia da segurança, da ordem e das liberdades individuais sobre qualquer outro princípio”. (p. 99-100)
“Os princípios liberais conferiram legitimidade à idealização de mundo transposta no discurso e no comportamento desses bacharéis, De fato, ainda que não tenha sido o único, foi, no entanto, o liberalismo, em diferentes matizes, a grande bandeira ideológica ensinada e defendida no interior das academias jurídicas. No bojo das instituições, amarrava-se, com muita lógica, o ideário de uma camada profissional comprometida com o projeto burguês-individualista, projeto assentado na liberdade, na segurança e na propriedade”. (p. 101)
“Privilegiam-se o fraseado, os procedimentos e a representação de interesses em detrimento da efetividade social, da participação e da experiência concreta. Concomitantemente, o caráter não-democrático das instituições brasileiras inviabilizava, também, a existência de um liberalismo autenticamente popular nos operadores do Direito. (p. 101)
“Vale dizer que, na construção de sua identidade, os atores jurídicos buscaram conciliar uma certa práxis cujos limites nem sempre muito claros, conjugavam idéias liberais e conservadoras”. (p. 101)
“Ora, o influxo do liberalismo não deve ser apenas contemplado na formação, no comportamento e na visão de mundo dos bacharéis jurídicos, uma vez que as premissas liberais incidiram na formalização técnica das normas positivistas, na aplicação dos textos legais e no exercício da atividade judicial. Neste aspecto, o recorte mais ilustrativo foi Rui Barbosa, que, corretamente, sintetizou o ‘bacharelismo liberal’ na cultura jurídica brasileira até a primeira metade do século XX”. (p. 102)
“Rui, em seu tempo, e os bacharéis da legalidade, ao longo da história institucional brasileira, compuseram um imaginário social distanciado tanto do Direito vivo e comunitário quanto das mudanças efetivas da sociedade. Trata-se aqui do imaginário afastado de uma legalidade produzida pela população, no bojo de um processo sintonizado com necessidades reais, reivindicações, lutas, conflitos e conquistas”. (p. 103)
CAPÍTULO IV
HORIZONTES IDEOLÓGICOS DA CULTURA JURÍDICA BRASILEIRA
“No percurso de um longo processo de colonização portuguesa consolidou-se a singularidade de uma cultura jurídica que reproduziu historicamente as condições contraditórias da retórica formalista liberal e do conservadorismo de práticas burocrático-patrimonialistas. A dinâmica dessa junção resultou nos horizontes ideológicos de uma tradição legal – quer seja em suas idéias, quer em suas instituições – marcada por um perfil liberal-conservador. Sublinhando essa perspectiva, importa situá-la, teoricamente, em três momentos da cultura jurídica nacional, configurados no desenvolvimento institucional do ‘Direito Público’, no espaço positivado das ‘instituições privadas’ e no cenário das ‘idéias jusfilosóficas’”. (p. 105)
4.1 Trajetória sócio-política do Direito Público
“A dinâmica histórica do Direito Público nacional tem sua formação autônoma a partir dos parâmetros institucionais consolidados com a Independência do país. Alguns fatores mais imediatos podem ser reconhecidos como causas impulsionadoras da doutrina política do Direito Público emergente desse processo. Dentre elas, a influência das Revoluções Francesa e Norte-Americana, movimentos do século XVIII que propuseram declarações de filosofias liberais e individualistas; a vinda da Família Real e a instalação da Corte no Brasil, (…) e, finalmente, a eclosão de um exacerbado nacionalismo aliado à aspiração ardente de independência dos povos latino-americanos”. (p. 105-106)
“Tratava-se, na verdade, dos horizontes ideológicos do chamado Constitucionalismo, que em seu sentido clássico representava a concepção técnico-formal do liberalismo político na esfera do Direito. Esta noção, de origem burguesa e que se universalizava em diferentes experiências históricas, privilegiava a contenção das atividades dos órgãos estatais nos limites de um Estado de Direito”. (p. 106)
“Nos marcos delineadores do Direito Público, seus pressupostos liberal-conservadores são claramente reproduzidos nos primeiros textos constitucionais pátrios”. (p. 107)
“Seus fundamentos, ainda que repousassem fortemente no Constitucionalismo francês (Constituição de 1814) não estavam imunes ao liberalismo inglês, no que aglutinava preceitos que consolidavam uma estrutura de Estado parlamentar, com um Poder Moderador atribuído ao Imperador, bem como um governo monárquico hereditário, constitucionalmente representativo. Sedimentava a forma unitária e centralizada de Estado, dividindo o país em entidades administrativas denominadas de províncias. A divisão clássica dos poderes também se articulava no funcionamento do Executivo, presidido pelo Imperador e exercido por um Conselho de Ministros. O Legislativo modelava um bicameralismo sustentado por Câmara temporária e Senado vitalício. Os direitos políticos eram atribuídos com primazia aos grupos hegemônicos que detinham certo nível de renda”. (p. 107)
“Sob uma perspectiva histórico-política, pode-se nitidamente delinear que, além da questão abolicionista, de outros fatores institucionais não podem ser olvidados, tais como a crise militar e o estremecimento das relações entre a Igreja e o Estado, ambos responsáveis pelo enfraquecimento da monarquia. No entanto, foi a crise econômica uma das razões principais para o desmantelamento do Império e o surgimento do Estado Liberal Republicano em 1889”. (p. 108)
“O arcabouço ideológico do texto constitucional de 1891 expressava valores assentados na filosofia política republicano-positivista, pautados por procedimentos inerentes a uma democracia burguesa formal, gerada nos princípios do clássico liberalismo individualista. Na realidade, a retórica do legalismo federalista, sustentando-se na aparência de um discurso constitucional e acentuando o povo como detentor único do poder político, erguia-se como suporte formalizador de uma ordem sócio-econômica que beneficiava somente segmentos oligárquicos regionais. (p. 109)
“As duas primeiras constituições, elaboradas no século XIX (a Constituição Monárquica de 1824 e a Constituição da República de 1891), foram, portanto, imbuídas profundamente pela particularidade de um individualismo liberal-conservador, expressando formas de governabilidade e de representação sem nenhum vínculo com a vontade e com a participação popular, descartando-se, assim, das regras do jogo, as massas rurais e urbanas”. (p. 110)
“Sem sombra de dúvida, os textos constitucionais em questão configuram o controle político-econômico das oligarquias agroexportadoras, que, enquanto parcelas detentoras do poder, acabavam impondo seus próprios interesses e moldavam a dinâmica do Direito Público compreendido entre a Independência do país e o fim da Velha República. Tais considerações materializaram consensualidades em cujo horizonte sobressaíam a supremacia de frações definidas da elite dominante e uma ordenação ampla do Estado no sentido de seus procedimentos burocrático-patrimonialistas”. (p. 110)
“(…) o Constitucionalismo brasileiro, quer em sua primeira fase política (representado pelas Constituições de 1824 e 1891), quer em sua etapa social posterior (Constituição de 1934), expressou muito mais os intentos de regulamentação das elites agrárias locais do que propriamente a autenticidade de movimento nascido das lutas populares por cidadania ou mesmo de avanços alcançados por uma burguesia nacional constituída no interregno de espaços democráticos”. (p. 112)
“A Constituição de 1934, conseqüência da Revolução de 30 e refletindo uma época de mudanças sócio-econômicas, caracterizou-se por ser um pacto político híbrido, sem unidade ideológica que, através de seus pressupostos herdados da Carta Mexicana de 1917 e da Lei Fundamental de Weimer (1919) introduziu, pela primeira vez, os postulados do Constitucionalismo social no país”. (p. 112)
“Num bicameralismo disfarçado, atribuiu-se à Câmara dos Deputados o exercício efetivo do Legislativo, transformando o Senado Federal em simples poder colaborador. Pela primeira vez, a Câmara dos Deputados era composta não só por representantes do povo – eleitos diretamente –, mas surgia a chamada representação profissional, eleita indiretamente mediante associações profissionais. Introduzia-se a Justiça Eleitoral no Poder Judiciário, que inovava com o voto feminino. Além dos direitos políticos e da declaração burguesa de direitos individuais, instituíram-se direitos econômicos e sociais, em que a Justiça do Trabalho surgia para dirimir, paternalisticamente, conflitos coletivos, e para manipular quase toda a atividade sindical”. (p. 113)
“No dizer de Fábio Lucas, essa ‘legislação elaborada pelos proprietários realiza o jogo tático destes, pois agrada o trabalhador sem dar-lhe a participação que lhe deveria caber na riqueza e na fortuna nacional. (…) A conclusão a que chegamos é que em 1934 tivemos uma grande reforma da fachada, renovação integral da pintura, embora a estrutura do prédio permanecesse inabalável’”. (p. 113)
“(…) a Constituição de 1937, inspirada no Fascismo europeu, instituiu o autoritarismo corporativista do Estado Novo e implantou uma ditadura do Executivo (todos os poderes concentrados nas mãos do presidente da República) que se permitia legislar por decretos-leis e reduzir arbitrariamente a função do Congresso Nacional, bem como dirigir a economia do país, intervir nas organizações sociais, partidárias e representativas, além de restringir a prática efetiva e plena dos direitos dos cidadãos. O texto político-jurídico de 1946, por sua vez, restabeleceu a democracia formal representativa, a independência aparente dos poderes, a autonomia relativa das unidades federativas e a garantia dos direitos civis fundamentais”. (p. 113-114)
“As diretrizes que alimentaram o Direito Público, na década de 60, foram geradas pelas cartas constitucionais centralizadoras, arbitrárias e antidemocráticas (1967 e 1969), cjuda particularidade foi reproduzir a aliança conservadora da burguesia agrária/industrial com parcelas emergentes de uma tecnoburocracia civil e militar”. (p. 114)
“A tradição de nosso Constitucionalismo, portanto, primou sempre por formalizar toda a realidade viva da nação, adequando-a a textos político-jurídicos estanques, plenos de ideais e princípios meramente progmáticos. Em regra, as constituições brasileiras recheadas de abstrações racionais não apenas abafaram as manifestações coletivas, como também não refletiram as aspirações e necessidades mais imediatas da sociedade”. (p. 114)
“(…) a Constituição de 1988, mais do que em qualquer outro momento da história brasileira, – além de ter contribuído para enterrar a longa etapa de autoritarismo e repressão do golpismo militarista -, expressou importantes avanços da sociedade civil e materializou a consagração de direitos alcançados pela participação de movimentos sociais organizados. Entretanto, todo esse esforço articulado de múltiplos segmentos sociais começou a ser minimizado e desconsiderado na metade dos anos 90, quando forças conservadoras da elite nacional – apoiada na onda neoliberal de prevalência absoluta do mercado e nas mudanças mundiais configuradas pela globalização da economia – desencadearam ações privatistas/reformitas que tanto objetivaram obstaculizar e enfraquecer os direitos da cidadania, quanto deflagrar uma precipitada e oportunista ‘reforma constitucional’”. (p. 114-115)
“A conclusão que se pode extrair da evolução do Direito Público, caracterizado, nessa reflexão, basicamente pelas principais constituições do Brasil, é que ele foi marcado ideologicamente por uma doutrina de nítido perfil liberal-conservador, calcada numa lógica de ação atravessada por temas muito relevantes para as elites hegemônicas, tais como a conciliação e o reformismo. O processo histórico nacional evidencia que as instâncias do Direito Público jamais foram resultantes de uma sociedade democrática e de uma cidadania participativa, pois a evolução destas foi fragmentária, ambígua e individualista, além de permanecerem sujeitas a constantes rupturas, escamoteamentos e desvios institucionais”. (p. 116)
4.2 As instituições privadas e a tradição jurídica individualista
“Numa estrutura agrária e escravocrata, como a brasileira do século XIX, não havia lugar para o abrigo de concepções avançadas na esfera do Direito Privado”. (p. 117)
“Enquanto o país independente implementa sua legislação constitucional, penal, processual e mercantil no período que se instaura com a emancipação política de 1822, sua regulamentação civil seria norteada pelas ordenações, leis e jurisprudências portuguesas”. (p. 117)
“(…) a legislação comercial, implementada pelo esforço de José da Silva Lisboa e inspirada nos princípios do liberalismo econômico europeu (…) invadia, ademais, território do Direito Civil, e introduzia no texto desse diploma a parte geral relativa a obrigações e contratos, mandato, locação, hipoteca, autênticos institutos de Direito Civil”. (p. 118)
“Somente em 1855 é que o governo imperial incumbiu o jurista Teixeira de Freitas de preparar a consolidação de nossas leis civis. (…) montou um projeto de Código Civil de grande rigor sistemático, que ao longo de seus mais de 1300 artigos, aglutinava um texto de preceituações comuns ao Direito Civil e Comercial”. (p. 118-119)
“(…) o Direito Civil brasileiro, tendo suas raízes no velho Direito metropolitano, que o Império transformou e, em parte, materializou, seria pouco eficaz e fracassaria em inúmeras questões essenciais. Além desse demasiado apego dos juristas pátrios ao passado, escondidos sob o manto de uma retórica artificial e de conhecimentos abstratos, estes não levaram em conta as necessidades reais e nem sempre conseguiram visualizar corretamente a diversidade e a particularidade das condições brasileiras”. (p. 121)
“Tem-se, assim, em muitos setores institucionais, um Direito vazio e inoperante, favorecendo uma ausência de regulamentação jurídica para muitas situações específicas”. (p. 122)
“Com efeito, todo fundamento desse modelo jurídico liberal-conservador, montado no início do século para assegurar e proteger os interesses da oligarquia rural, veio privilegiar, de modo exclusivo, inatacável e absoluto, o Direito Individual de propriedade”. (p. 124-125)
4.3 Historicidade e natureza do pensamento jusfilosófico nacional
“No contexto inicial da colonização e da exploração das riquezas, não houve lugar para qualquer elaboração de idéias originais, pois toda e qualquer produção teórica ficou reduzida à propagação missionária e à repetição dos ensinamentos evangélicos, mediatizados e impostos pelos jesuítas”. (p. 125)
“Aponta-se que os primórdios de um trabalho de cunho jusfilosófico, no Brasil, teria aparecido somente no século XVIII, de autoria do poeta inconfidente de nacionalidade portuguesa Tomás Antonio Gonzaga (1744-1809). Mas, ao contrário do que se poderia esperar de um intelectual afinado com certas concepções iluministas, republicanas e liberais, seu Tratado de Direito Natural, ao refletir, sem muita originalidade de pensamento, pressupostos identificados com o jusnaturalismo de inspiração teológica, destinava-se claramente a não desagradas os meios culturais dominantes na Metrópole”. (p. 125-126)
“Não ocorreram profundas alterações nessa direção do idealismo jusnaturalista inaugurado por Tomás A. Gonzaga, mesmo depois da Independência do país e da criação, por D. Pedro I, das duas Faculdades de Direito – a de Olinda (depois Recife) e a de São Paulo. O que se pode aventar é que o jusnaturalismo foi incorporando, ao longo do século XIX, certos matizes de racionalismo iluminista e do individualismo liberal”. (p. 126)
“Ainda que sob o impacto cultural de uma situação colonial e de independência, reflexo atrasado de modismos alienígenas e da escassa originalidade criativa, o Brasil, em fins do século XIX, ‘(…) viu surgir um mundo de idéias novas que viriam romper a tradição jusnaturalista ainda dominante em nosso país até a entrada do último quartel do século, quando surgem expressões brasileiras do positivismo e do evolucionismo que representam, em nosso meio, o influxo de uma relativa urbanização e modernização da vida social que, em pouco tempo, repercutiria no plano mais visível da vida política com a abolição da escravatura e a proclamação da República. Positivismo e evolucionismo são, realmente, as duas rubricas teóricas com as quais se pode resumir um conjunto de idéias novas que povoaram o final do século com mais significativos influxo sobre a teoria jurídica (…)’”. (p. 128)
“A larga influência do positivismo sobre a intelectualidade brasileira, composta, em sua grande parte, no final do século, por bacharéis e juristas vinculados ao pensamento liberal burguês e formados para exercer altos postos na administração burocráticas do Estado, acabou produzindo um ambiente renovador de pesquisa e de sistematização das idéias na Escola do Recife. Esta foi, como já se consignou, o baluarte jurídico mais expressivo de reação às diversas variantes do idealismo jusnaturalista instituído e o núcleo impulsionador básico à codificação da legislação privada no país”. (p. 128-129)
“(…) diante do conservadorismo projetado pelo jusnaturalismo tomista-escolástico, a nova proposição jurídica delineada pelo positivismo (…) representava uma forma de pensamento mais adequada às novas condições econômicas advindas das transformações trazidas pela República. Múltiplas implicações para a cultura jurídica brasileira advêm da irradiação positiva e negativa da Escola do Recife”. (p. 130)
“Concomitante com a crise sócio-econômica que sacudiu a estrutura capitalista da Velha República liberal-positivista e com a as contradições sociais decorrentes da emergência dos novos atores no âmbito da dominação política burguesa oligárquica, sobressaíram novas teses como o culturalismo, a conciliação, o nacionalismo de esquerda e o desenvolvimentismo. Essas tendências ideológicas materializadas em fins dos anos 30 (Revolução de 30, Estado Novo, integralismo, nacionalismo conservador etc.) e ao longo dos anos 40-50 (Segunda Grande Guerra e democratização social do Brasil) deixaram sulcos também na linearidade do pensamento político-jurídico institucionalizado. Entende-se, assim, a crise que atravessou o positivismo jurídico liberal (em suas vertentes evolucionistas, naturalistas, sociológicas e cientificistas) diante das críticas vigorosas e das renovadoras propostas epistemológicas argüidas pelo ecletismo conciliador e pela retórica culturalista introduzidas na esfera da teoria jurídica”. (p. 135-136)
“O Culturalismo Jusfilosófico, que teve grande impulso no Brasil após a Segunda Grande Guerra, inspirando-se em Kant e considerando-se herdeiro de Tobias Barreto, busca reorientar as diversas tradições filosóficas nacionais rumo a uma interlocução centrada nos valores, na pluralidade e no mundo da cultura”. (p. 136)
“(…) a crítica mais incisiva e mais séria à realidade de exaurimento e de derrocada do naturalismo jurídico-sociológico, enquanto estatuto epistemológico hegemônico, foi a tese de teor culturalista desenvolvida em Fundamentos do Direito, apresentada por Miguel Reale, em 1940, no concurso para a cátedra de Filosofia do Direito. Tratava-se de nova visão do fenômeno jurídico, moldada na aglutinação e na sistematização de uma tridimensionalidade assentado no fato (sociologismo), no valor (idealismo) e na norma (formalismo)”. (p. 137)
“(…) o tridimensionalismo de Miguel Reale foi um pensamento renovador em relação ao positivismo ortodoxo e aos múltiplos reducionismos formalistas, decorridas algumas décadas, acaba transformando-se numa proposta jurídica sem alcance transformador e sem muita eficácia para as novas necessidades de regulamentação social e para os objetivos político-jurídicos de uma sociedade de desenvolvimento tardio do Capitalismo periférico”. (p. 138)
“Em suma, repensar seriamente a trajetória da cultura jusfilosófica tradicional no Brasil, como têm feito estes e outros intérpretes, desperta para a construção de um pensamento crítico-interdisciplinar, marcado por uma racionalidade jurídica emancipadora e por uma ética da alteridade, expressão de novas práticas sociais participativas”. (p. 142)
CONSIDERAÇÕES PESSOAIS
O segundo capítulo do livro “História do Direito no Brasil” apresenta a história do Direito no Brasil Colônia. Ao ler o capítulo, encontrei aquilo que tinha em mente sobre aquele período, um Direito dirigido à Metrópole. Houve, entretanto, algo que me chamou muito a atenção: a carreira dos magistrados naquela época. Os magistrados eram submetidos a várias normas de conduta, tendo seu relacionamento com a sociedade muito limitado para impedir de serem desleais com a Coroa. Achei interessante, também, o fato de ser obrigatória uma formação pela universidade de Coimbra.
O capítulo III, que trata, em especial, do Direito nos tempos do império, traz o assunto que considerei mais atraente, o perfil dos bacharéis em Direito.
“(…) há que se fazer menção ao perfil dos bacharéis de Direito mediante alguns traços particulares e inconfundíveis. Ninguém melhor do que eles para usar e abusar do uso incontinente do palavreado pomposo, sofisticado e ritualístico”. (p. 99). Nessa frase, o autor apresenta com clareza o perfil dos bacharéis na época. Mas a partir disso, pode-se fazer a seguinte pergunta: mudou o perfil daquela época para os dias atuais? Certamente não. Passados aproximadamente duzentos anos, o perfil continua o mesmo.
Outro assunto muito convincente nesse capítulo foi a parte direcionada à criação dos dois primeiros cursos de Direito no Brasil. Além de terem contribuído para a formação de um pensamento jurídico brasileiro característico, as duas faculdades de Direito apresentavam algumas diferenciações que achei bastante curiosas. O curso de Olinda (que depois foi transferida para Recife) era mais destinado a erudição, enquanto o de São Paulo, à reflexão e militância política.
O quarto capítulo do livro, em especial o tópico 4.1, que fala da formação do Direito Público, faz um resgate cronologicamente dos principais códigos, constituições e leis que surgiram no Brasil. Enquanto o 4.2 resgata a formação do Direito Privado. É possível destacar, em geral, a evolução, ao passar de constituição para constituição, dos princípios democráticos e sociais. Também se pode destacar o fato da formação do Direito no Brasil ter sido marcado por um perfil liberal-conservador.
Em suma, considero que o livro apresentou a história do Direito no Brasil de forma muito mais detalhada do que eu conhecia e, principalmente, de forma bem crítica quanto ao contexto político, econômico e social que acompanhava cada fato.
* Acadêmico de Direito da UFSC