1. De volta para o
futuro
O filme de “De volta para o futuro
de 1985” fez tanto sucesso que foi filmada uma trilogia, em resumo narram a
história de um veículo que poderia retornar para o passado e alterar o futuro.
O carro utilizado foi um “Deloren DCM-12”, que depois do filme teve uma edição
limitadíssima do “Special Deloren DMC 12s” que rapidamente vendeu todas as unidades.
Recentemente,
inspirado na fantástica trilogia do filme, o Detran-PR tem “interpretado” que
os pontos se contam nos últimos cinco anos para a suspensão do Direito de Dirigir,
com a conseqüente entrega da habilitação, sem Procedimento Administrativo, a
nosso sentir, esta “interpretação” nova,
retroativa e danosa, não possui embasamento legal e constitucional.
2. A suspensão do
direito de dirigir
O
Código de Trânsito Brasileiro (CTB) prevê no art. 261, § 1º:
Art. 261. A penalidade de suspensão do direito de dirigir
será aplicada, nos casos previstos neste Código, pelo prazo mínimo de um mês
até o máximo de um ano e, no caso de reincidência no período de doze meses,
pelo prazo mínimo de seis meses até o máximo de dois anos, segundo critérios
estabelecidos pelo CONTRAN.
§ 1º Além dos casos previstos em outros artigos deste Código
e excetuados aqueles especificados no art. 263, a suspensão do direito de
dirigir será aplicada sempre que o infrator atingir a contagem de vinte pontos,
prevista no art. 259.
A
interpretação para este dispositivo sempre foi a de que o prazo para a contagem
dos pontos é de um ano. Em resumo, se não forem julgados os recursos no período
de um ano, a multa perderá os efeitos da suspensão.
Passado
um ano, não constam no prontuário as infrações. Da data do cometimento da
suposta infração, após um ano prescrevem as infrações. Esta é a dicção legal do
CTB.
O Detran-PR contudo não
está agindo em conformidade com o CTB, mas está voltando (dentro do Deloren) em cinco anos a contagem dos pontos,
considerando a prescrição administrativa é de cinco anos, contudo sem
embasamento legal.
3. Os prazos
prescricionais no CBT
O
CTB prevê o prazo de um ano na absoluta maioria dos seus dispositivos (arts.
143, §1º; 145; 148; 152; 261; e nos crimes: 304; 305; 307, 310 a 312, 317, 333,
334). Nem o Deloren poderia alterar estes prazos no CTB, somente lei formal.
4. A prescrição do crime
de dirigir sem habilitação
A penalização da direção sem
habilitação tem a pena de detenção de seis meses a um ano:
Art. 309. Dirigir
veículo automotor, em via pública, sem a devida Permissão para Dirigir ou
Habilitação ou, ainda, se cassado o direito de dirigir, gerando perigo de dano:
Penas – detenção, de seis meses a um ano, ou multa.
Ora, a prescrição penal deste
dispositivo é de, no máximo, três anos (art.
109, IV do CP). Com efeito, a máquina do Dr. Emmett Doc Brown (personagem do
filme “De volta para o futuro”) não poderia criar uma prescrição administrativa
maior que a prescrição penal e nem o Direito Brasileiro admite isto.
Excepcionalmente,
o art. 329 do CTB prevê o prazo de cinco anos para comprovação de ausência de
condenação criminal em alguns tipos penais graves para os condutores de
coletivos:
Art. 329. Os condutores
dos veículos de que tratam os arts. 135 e 136, para exercerem suas atividades,
deverão apresentar, previamente, certidão negativa do registro de distribuição
criminal relativamente aos crimes de homicídio, roubo, estupro e corrupção de
menores, renovável a cada cinco anos, junto ao órgão responsável pela
respectiva concessão ou autorização.
Esta
é, contudo, exceção, vinculada a alguns ilícitos penais e não administrativos.
5. A Resolução 182/03 do
Contran
Esta regra foi repetida na
Resolução 182/03(dispõe sobre uniformização do procedimento administrativo para
imposição das penalidades de suspensão do direito de dirigir e de cassação da
Carteira Nacional de Habilitação) no art.6º, §2º:
Art. 6º. Esgotados todos os
meios de defesa da infração na esfera administrativa, os pontos serão
considerados para fins de instauração de processo administrativo para aplicação
da penalidade de suspensão do direito de dirigir. (…)
§ 2º. Se a infração cometida
for objeto de recurso em tramitação na esfera administrativa ou de apreciação
judicial, os pontos correspondentes ficarão suspensos até o julgamento e, sendo
mantida a penalidade, os mesmos serão computados, observado o período de
doze meses, considerada a data da infração.
Assim,
o prazo para a imposição da sanção continua a ser de um ano.
6. Antecedentes da
Resolução nº 182/2003
Antes
do advento da Resolução nº 182/2003 tínhamos a Resolução nº 54/1998 que em
matéria de aplicação da suspensão do direito de dirigir dispunha no art. 3º, §
1º, o seguinte:
Art. 3º O cômputo da
pontuação referente às infrações de trânsito, para fins de aplicabilidade da
penalidade de suspensão do direito de dirigir, terá a validade do período de 12
(doze) meses.
§ 1º A contagem do
período expresso no caput deste artigo será computada sempre que o infrator for
penalizado, retroativo aos últimos 12 (doze) meses.
A
regra simplesmente foi repetida.
7. Para a imposição da
suspensão do direito de dirigir
Para
a aplicação da sanção administrativa da suspensão do direito de dirigir é
necessária a instauração de Processo Administrativo, nos termos do art. 8º
combinado com o art. 19 da Resolução 182/03:
Art. 8º. Para fins de cumprimento
do disposto no inciso II do Art. 3º desta Resolução será instaurado processo
administrativo para aplicação da penalidade de suspensão do direito de dirigir
quando esgotados todos os meios de defesa da infração na esfera administrativa.
(…)
Art. 19. Mantida a
penalidade pelos órgãos recursais ou não havendo interposição de recurso, a
autoridade de trânsito notificará o infrator, utilizando o mesmo procedimento
dos §§ 1º e 2º do art. 10 desta Resolução, para entregar sua CNH até a data
do término do prazo constante na notificação, que não será inferior a 48
(quarenta e oito) contadas a partir da notificação, sob as penas da lei.
O
Superior Tribunal de Justiça é firme no sentido de interpretar um ano na
prescrição e de afastar procedimentos sem o devido Processo Administrativo, neste
sentido vejamos o RESP nº 800963/RS, em 2005/0198105-9, Relator Ministro José
Delgado, Primeira Turma, julgamento em 15/02/07:
EMENTA: ADMINISTRATIVO. CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO. PARA DIRIGIR. CONCESSÃO DA HABILITAÇÃO DEFINITIVA. CONDUTOR INFRAÇÃO GRAVÍSSIMA DURANTE O PERÍODO DE PROVA DE UM ANO. RECURSO ADMINISTRATIVO PENDENTE. VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA 1. Trata-se de recurso especial interposto nos segurança impetrado por contra o Diretor do DETRAN/RS, buscando o direito de obter a CNH definitiva após o período de prova de 1 (um) ano, apesar da ocorrência de autuações por infrações de trânsito de natureza gravíssima, que ainda estão administrativa. A sentença concedeu a de que não podem ser considerados antes de julgados os recursos administrativos. Interposta apelação pelo DETRAN/RS, o acórdão do TJRS deu provimento ao apelo sob fundamento da falta de interesse do impetrante, visto que as multas já haviam sido pagas, e o opôs embargos de declaração, os quais foram mantiveram a conclusão do acórdão embargado quanto ao apelação. No recurso especial o 290 do CTB, sustentando que as penalidades de trânsito somente podem ser cadastradas no RENACH Habilitação) após o esgotamento 2. Os §§ 3º e 4º do art. 148 do CTB impõem a penalidade de suspensão do para Dirigir a reiniciar o processo de habilitação caso, no período de prova de 1 (um) ano, tenha cometido infração grave ou gravíssima ou seja reincidente em infração 3. Entretanto, urge salientar suspensão no Código de Trânsito, reclama prévio processo observação das garantias contraditório e da ampla art. 4. O CTB expressamente dispõe suspensão habilitação serão aplicadas por de trânsito competente, em infrator amplo direito de defesa.“ 5. A ocorrência de infração grave ou gravíssima constituir obstáculo à Permissão para Dirigir após o trânsito em julgado decisão que confirme a validade 6. Recurso especial provido. |
Ao que temos notícia, isto não
está acontecendo, pois simplesmente o condutor é notificado e pronto, tudo está
resolvido, sem se cumprir o Procedimento Administrativo legal que garante a defesa
técnica, os recursos a ela inerentes e decisões motivadas e com fundamentos
legais e fáticos.
Mesmo o possante Deloren não
pode alterar o passado, este procedimento do “devido processo legal” foi
incluído na Constituição de 1988 (art. 5º, inciso LIV) e esta tradição remonta
o Direito Anglo Saxão proveniente do “due
process of law” instituído em 1215.
8. A prescrição da
própria penalidade da suspensão
A prescrição da penalidade
de suspensão é de cinco anos, nos termos do art. 22 da referida Resolução:
Art. 22. A pretensão
punitiva das penalidades de suspensão do direito de dirigir e cassação de CNH
prescreverá em cinco anos, contados a partir da data do cometimento da infração
que ensejar a instauração do processo administrativo.
Mesmo
este prazo é controvertido e questionável, pois foi instituído por meio de
Resolução e a matéria de Prescrição somente pode ser objeto de lei em sentido
estrito, isto é, depende de aprovação do Congresso Nacional.
Com efeito, não se poder legislar
e impor penas por meio de Resoluções que podem apenas regulamentar a matéria de
lei, isto é, esclarecer pontos vagos, sem alterar a lei na matéria de fundo.
Mesmo
que se considere legal esta previsão, ela seria aplicável somente a penalidade
de suspensão propriamente dita e não as infrações que a geraram. Mas isto não é
possível, pois a própria penalidade regulada pelo Direito Penal é de apenas
três anos, conforme se demonstrou no item anterior (7).
9. A irretroatividade da
interpretação nova
Ainda
que a “interpretação” nova seja possível, o que cremos não encontra fundamento
legal, nem doutrinário, esta “interpretação” não poderia ser aplicada retroativamente.
A
Lei nº 9784/99 que regula o Processo Administrativo no âmbito da Administração
Federal proíbe interpretações retroativas no seu art. 2º, inciso XIII:
Art. 2o A
Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade,
finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla
defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.
(…)
Parágrafo único. Nos
processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:
(…)
XIII. interpretação da norma administrativa da forma
que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada
aplicação retroativa de nova interpretação.
A
interpretação somente poderia retroagir para beneficiar o réu e não para
prejudicá-lo, “in malam partem” (vedação
expressa prevista no art. 2º, parágrafo 2º do Código Penal).
10. Em conclusão
De
todo exposto, entendemos, respeitosamente, que:
1) A interpretação que
alarga ou aumenta o prazo de um ano para cinco anos, sem lei formal, é
absolutamente ilegal;
2) A prescrição de cinco
anos somente pode ser prevista por lei e não por Resolução do Contran
(Princípio da Legalidade, caput do
art. 37 CF);
3) Assinale-se que mesmo
por lei, o prazo de cinco anos, estaria em desacordo com o sistema do CTB e os
prazos estabelecidos na maior parte dos artigos daquele diploma legal;
4) A Resolução do Contran
nº 182/2003 prevê a contagem para fins de aplicação da suspensão do direito de
dirigir, é no prazo de um ano a partir da infração, assim como a Resolução anterior
previa (Resolução nº 54/1998);
5) Há impedimento legal de
se alterar a interpretação de forma retroativa e danosa aos condutores, isto é
vetado pelo art. 2º, inciso XIII da Lei nº 9784/99 (Princípio da vedação da
interpretação retroativa);
6) Não se pode ter a
existência de processo sumário, isto é, sem a instauração de Processo Administrativo
para se suspender a habilitação (Princípio do devido processo legal, art. 5º,
inciso LIV da CF.);
7) A prescrição do delito
penal de direção sem habilitação é inferior ao prazo de cinco anos (art. 109, inciso
IV do CP) “interpretado” retroativamente, isto não possui respaldo no Direito
Administrativo brasileiro, mas somente nos Estados de Exceção, anteriores à
Constituição de 1988;
8) O Superior Tribunal de
Justiça afasta esta “interpretação” retroativa de cinco anos, mas apenas do
ano, e impõe a instauração de Procedimento Administrativo para a suspensão do Direito
de Dirigir (STJ, RESP nº800963/RS);
9) As suspensões do direito
de dirigir que se façam sem a obediência dos requisitos legais do CTB e da
Resolução nº 182/2003 são ilegais;
10 Por fim, nem o Deloren da
trilogia de filmes “De volta para o futuro” poderia alterar esta realidade.
Curitiba, 01 de novembro de 2010.
Claudio Henrique de Castro
Advogado e Membro da Comissão de Trânsito da
OAB/PR.