Processo Penal

Princípios Norteadores do Processo Penal

Sérgio Murilo Sabino

Advogado, Professor de Direito na Faculdade Anhanguera de Taboão da Serra, Pós-Graduado em Penal, Processual Penal e Ambiental, respectivamente pelo Centro Universitário FIEO de Osasco/SP (UNIFIEO) e pelo Centro Universitário Salesiano de São Paulo/SP (UNISAL).

RESUMO

No presente trabalho analisaremos alguns dos principais Princípios norteadores do Processo Penal. Estes são de elevadíssima relevância num Estado Democrático de Direito como a República Federativa do Brasil.  Tanto na numa análise concreta como em eventuais estudos dirigidos, deve-se atentar para estes elementos objetos de conquistas da sociedade, vez que são objetivos de uma sociedade justa e pacífica. Veremos que muitas vezes o Estado, no condão de afagar uma sociedade cada vez mais ávida por punições severas e rápidas, deixa de observar estes preceitos primários obrigatórios para uma aplicação justa e digna da lei. Assim, analisaremos, sem qualquer anseio de esgotar o tema, alguns destes mais importantes “lemes” de uma sociedade que respeita a Dignidade do Ser Humano.

Palavras-chave: princípios; constituição; preceitos fundamentais; dignidade da pessoa humana; direito processual penal; cláusulas pétreas; direitos individuais; princípios constitucionais;

ABSTRACT

In the present work we will analyze some of the main Guiding Principles of the Criminal Procedure. These are of very high importance in a Democratic State of Law as the Federative Republic of Brazil. Both in a concrete analysis and in eventual directed studies, one must consider for these elements objects of conquests of the society, since they are objectives of a just and peaceful society. We will see that many times the State, in the condition of caressing a society increasingly avid for severe and rapid punishments, fails to observe these primary precepts of a just and lawful application. Thus, we will analyze, without any desire to exhaust the theme, some of these most important “helm” of a society that respects the Dignity of the Human Being.

 Keywords: Principles; constitution; Fundamental precepts; dignity of human person; criminal Procedural Law; Stone clauses; Individual rights; constitutional principles;

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. A Constituição e o Processo; 3. As cláusulas Pétreas e os Direitos Individuais 4. Princípios Constitucionais do Processo Penal; 4.1. Princípios da Legalidade; 4.2. Princípio da Humanidade; 4.3. Princípio da Igualdade Judicial; 4.4. Princípio do Juiz e do Promotor Naturais; 4.5. Princípio do Devido Processo Legal; 4.6. Princípio da publicidade; 4.7. Princípio do Estado de Inocência; 4.8. Princípio do Contraditório; 4.9. Princípio da Ampla Defesa; 4.10. Princípio do Duplo Grau de Jurisdição; 5. Princípios Gerais do Processo Penal; 5.1. Princípio da Verdade Real; 5.2. Princípio da Oralidade; 5.3. Princípio da Obrigatoriedade da Ação Penal; 5.4. Princípio da Oficialidade; 5.5. Princípio da Indisponibilidade; 5.5.1. Princípio da Obrigatoriedade; 5.7. Princípio do Impulso Oficial; 6. Conclusão; 7. Bibliografia.

1. Introdução

O presente trabalho tem como objeto de estudo os Princípios Processuais Penal. Tais Princípios são de grande relevância e imprescindibilidade, uma vez que eles nortearão toda a criação da Legislação sob comento e vedará o surgimento de Leis que se contraponham às garantias e Direitos conquistados e construídos durante todo o avanço da humanidade. Para a boa aplicação, em geral, do Direito e para a efetivação da norma no processo, o aplicador ou intérprete não pode prescindir de uma visão principiológica, fundada, primordialmente, na Constituição e nos Pactos elaborados pelos países dentre os quais seja signatário.

É evidente que, como norma fundamental do arcabouço jurídico, a Constituição deve ser o ponto de partida do intérprete, seja nas lides civis, bem como, com maior rigor, nas demandas penais.

Desta forma, este trabalho tem em mira, verificar quais princípios constitucionais aplicam-se ao processo penal, para, depois, centrar atenção nas diretrizes específicas desse ramo da “grande árvore” processual, que finca suas raízes no solo constitucional.

Óbvio que as regras internacionais relacionadas ao objeto do estudo, principalmente aqueles já integrados ao ordenamento jurídico brasileiro, por meio da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, também serão analisadas, mesmo que de uma forma singela, ao menos para se ter noção de que os Princípios são de caráter supra nacional, ultrapassando as barreiras da nossa Pátria.

Sabemos que, em hipótese alguma, conseguiríamos esgotar o assunto em um trabalho como este (ARTIGO CIENTÍFICO), mas, temos a certeza de que, ao comentarmos pontos de alta relevância no Ordenamento Pátrio Processual Penal, contribuiremos para uma melhor visão das regras impostas pelo Estado para a solução dos conflitos jurídicos de natureza material.

         2. A Constituição e o Processo

Como bem disse a douta professora Ada Pellegrine Grinover¹ “É inegável o paralelo existente entre a disciplina do processo e o regime constitucional em que o processo se desenvolve”.

Neste sentido, não há como desconsiderar, por primeiro, os princípios fundamentais do Estado brasileiro para a boa aplicação do Direito neste País. Só assim será possível alcançar, na prática, um verdadeiro Estado democrático de Direito, tanto mais quando muitos diplomas em vigor no Brasil são anteriores à Lei Magna de 1988, que reformulou muitos conceitos, estabeleceu institutos processuais democráticos, materializou outros tantos e introduziu uma verdadeira carta de direitos no seu art. 5°.

Quando se cuida de processo penal, ou seja, da concretização do jus  puniendi do Estado em confronto com o jus libertatis do indivíduo, ganham importância, em especial as diretrizes inseridas no art. 1°, incisos II e III, da Constituição Federal, respectivamente, a “cidadania” e a “dignidade da pessoa humana”.

Não se pode conceber um processo penal que não tenha como norte a ideia de cidadania, tanto da vítima e de seus familiares, quanto do indiciado, réu ou sentenciado. É inimaginável manejar o direito processual penal sem ter em conta, também como pólo orientador, a noção de dignidade da pessoa humana.

Ora, pessoa humana é sujeito do processo, e não seu objeto. A resposta penal do Estado, veiculada por meio do processo, deve ter em vista a recuperação do condenado e seu retorno à Sociedade, tarefa difícil, pois que, reconhece-se que a pessoa envolvida no Processo não pode se ver condenada com o escopo de vingança, mas apenas terá direito a ser punida dentro dos limites previamente, estabelecidos pelo Estado. A grande indagação é: Qual é este limite? Qual seria o justo para se aplicar em virtude de um injusto penal? Estas e outras perguntas são de difícil solução.

¹GRINOVER, Ada Pellegrine ­– Teoria Geral do Processo, pág. 80 – Ed. Malheiros – 2004.

Desta forma, não mais é possível imaginar um direito vingativo, pernicioso, que tenha como escopo devolver ao infrator o mal tal como ele fez. Isto seria um retrocesso, uma volta ao passado onde funcionava a Lei de Talião. Voltarmos ao “olho por olho, dente por dente”, nos levaria a um mundo sem controle estatal, desprovido de segurança e justiça.

3. As cláusulas Pétreas e os Direitos Individuais.

Determinações constitucionais rígida e permanentes, insuscetíveis de ser objeto de qualquer deliberação e/ou proposta de modificação, ainda que por emenda à Constituição.

As principais cláusulas pétreas estão previstas no artigo 60 da Constituição, parágrafo 4. Os direitos e garantias individuais são relacionados no artigo 5°, que tem 77 incisos.

Há polêmica no meio jurídico sobre outros dispositivos constitucionais que seriam cláusulas pétreas.

As garantias inseridas no artigo 5° da Constituição Federal são de uma relevância extrema no Direito pátrio. Sem este artigo, o Estado Democrático de Direito estaria fadado ao fracasso, sujeitando qualquer cidadão aos abusos do Estado.

Vejamos alguns desses princípios e garantias. Primeiro os de extração constitucional; depois os de ordem geral.

4. Princípios Constitucionais do Processo Penal

Nós analisaremos neste tópico os mais importantes princípios que regem o direito processual constitucional, do qual derivam outros postulados igualmente relevantes, todos necessários ao viço do sistema jurídico, ao qual servem como seiva e como raiz. Mais uma vez quero citar a doutora Ada Pellegrine Grinover quando diz que¹ “todo direito processual, como ramo do Direito Público, tem suas linhas fundamentais traçadas pelo Direito Constitucional, que fixa a estrutura dos

¹ GRINOVER, Ada Pellegrine – Teoria Geral do Processo, pág. 80 – Ed. Malheiros – 2004.

órgãos jurisdicionais, que garantem a distribuição da Justiça e afetividade do Direito Objetivo, que estabelecem alguns princípios processuais; e o Direito Processual Penal chega a ser apontado como Direito Constitucional aplicado às relações entre autoridade e liberdade”.

4.1. Princípio da Legalidade

Em um primeiro plano, deveríamos saber o verdadeiro conceito de Lei.

A Lei é, pois, o preceito escrito, formulado solenemente pela autoridade constituída, em função de um poder, que lhe é delegado pela soberania popular, que nela reside à suprema força do Estado. É por isso que se diz que é ordem geral, sempre emanada da autoridade competente, e que será imposta a todos, para que a obedeçam. É a Lei que institui a ordem jurídica em que se funda a regulamentação, evolutivamente estabelecida, para manter o equilíbrio entre as relações do homem na sociedade, no tocante ao seus direitos e deveres. São caracterizadas pela Generalidade e Obrigatoriedade. Generalidade porque não se voltam para uma pessoa, mas para a coletividade (universalidade). Obrigatoriedade porque não há como se escusar da observância destas normas.

Este princípio, que tem evidente interesse processual, não se acha colocado apenas no art. 5°, inciso II, da Constituição Federal, onde se anuncia que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão asseverava já em 1789 que “Ninguém pode ser acusado, preso ou detido senão nos casos determinados pela lei e de acordo com as formas por esta prescrita” ², garantia que confere importância marcante ao Poder Legislativo, órgão de onde promanam as leis stricto sensu.

² Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão – França / 1789.

Obviamente, na ausência de lei nenhum indivíduo submete-se à vontade do Estado.

Daí porque os Códigos de Processo são veiculados por lei Federal, de âmbito Nacional, diferentemente do que ocorria outrora, no regime constitucional de 1891, em que o processo era estadualizado. A unificação ocorreu com o Código do Processo Penal de 03 outubro de 1941.            

Na esfera penal-processual, a diretriz da legalidade encontra-se também, no art. 5°, inciso XXXIX, da Carta Federal. Talvez seja essa a mais importante faceta da ideia de legalidade no campo penal, a que reproduz o brocardo nullum crimen, nulla poena sine previa lege, que acaba por conduzir à irretroatividade da lei penal gravior (inciso XL).

É certo que, quanto ao Processo, vige a regra “tempus regit actum”, ou princípio do efeito imediato¹, segundo o qual, os atos processuais serão regidos pela Lei vigente à época. Isto em razão da insegurança que estaria presente caso o contrário fosse verdade. Daí é fácil entender que, junto a esse princípio teremos a verdade que assegura validade aos atos praticados sob a égide de lei revogada, caso tenha sido totalmente concluído.

Todavia, em alguns casos de normas mistas, penais e processuais, o instituto processual não poderá ser aplicado de ponto, para os processos em curso, pois isso significaria também a retroatividade da norma estritamente penal, o que é proibido pelo ordenamento quando a norma for desfavorável ao réu. Teríamos então a ultra-atividade da lei processual anterior.

4.2. Princípio da Humanidade

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em 1948, pela Assembleia Geral das Nações Unidas, assinala o princípio da humanidade e da dignidade², onde estão as consideradas que motivaram o ato internacional: “Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento

¹ Código de Processo Penal – artigo 2°

² Declaração Universal dos Direitos Humanos 1948 – Preâmbulo.

da liberdade, da justiça e da paz no mundo (…) Considerando que as nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e valor da pessoa humana (…)”.    

Continua, a Declaração, estabelecendo que no plano internacional¹ ”Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante” e que “Todo homem tem o direito de ser em todos os lugares reconhecido como pessoa perante a lei”.

Por sua vez, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966, declara que “Toda pessoa privada de sua liberdade deverá ser tratada com humanidade e respeito à dignidade inerente à pessoa humana”². A privação da liberdade é uma das mais duras reprimendas que o ser humano pode suportar. O “banimento” do seio social é uma realidade das mais duras que o homem (digo aqui homem como espécie, não o ser do sexo masculino), pode enfrentar. Imagine se, após vários anos de reclusão venha-se a descobrir que recluso é inocente. Qual a retribuição que se pode dar ao injustiçado, para se compensar tal afronta à sua dignidade?

É por isso que já se disse que é bem melhor dez culpados soltos que um inocente preso, pois o prejuízo é maior quando se aplica uma pena de reclusão a um infeliz inocente, que a injustiça de não se condenar um culpado.

Já a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 1969, estabelece que “Toda pessoa humana tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade”, e também que “Toda pessoa tem deveres para com a família, a comunidade e a humanidade”³. Aquele direito e este dever são correlatos e inseparáveis, sendo endereçados também aos órgãos estatais de Justiça criminal.                

¹ Declaração Universal dos Direitos Humanos art. 5° e 5°.

² Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, Resolução 2200 – A de Assembleia Geral das Nações Unidas de 1966 – Art. 7°

³Pacto de San Jose da Costa Rica – 1969 – artigo 11, art. 32, §1°.

Derivando de um dos fundamentos republicanos, constante do art. 1°, inciso III, da Constituição Federal, que exalça a dignidade da pessoa humana, o princípio da humanidade extrai-se também do art. 5°, incisos III e XLIX, da mesma Carta.

Ao declarar, no terceiro inciso do art. 5° que “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante”, o constituinte especificou indiretamente duas garantias processuais, as de que:

a)            O processo penal não pode servir como meio para a aplicação da pena de tortura ou pena de morte para a sujeição de quem quer que seja o tratamento desumano ou degradante, como sanção final.

b)           O processo penal não pode assumir ele mesmo, forma desumano, com procedimentos que exponham o homem a posições ou situações degradantes, torturantes ou vexames.

Como diz a douta professora Ada Pellegrine Grinover¹, “em alguns pontos a Lei Maior brasileira é mais garantidora que a Convenção, quando, por exemplo, não permite a mera autodefesa, entendendo sempre indisponível a defesa técnica no Processo Penal”.

4.3. Princípio da Igualdade Judicial

 Segundo, a Constituição Federal, em seu o art. 5°, inciso I, todos são iguais perante a lei, em direitos e obrigações. Assim, ainda que subjetivamente desiguais, os cidadãos merecem igual tratamento jurídico.

 Essa cláusula geral de isonomia perante a lei traduz-se também em igualdade processual. Embora na ação penal pública o Estado se faça representar pelo Ministério Público, a parte pública não tem maiores poderes que a parte privada ré, o indivíduo. Ambos estão no mesmo plano de igualdade, com os mesmos poderes e faculdades e os mesmos deveres processuais,

 ¹GRINOVER, Ada Pellegrine – Teoria Geral do Processo, pág. 65 – Ed. Malheiros – 2004.

 

 diferentemente do processo civil em que a Fazenda Pública e o Ministério Público têm prazos mais dilatados para recorrer e contestar, além de outros privilégios previstos no Código de Processo Civil.

 Todavia, no processo penal a isonomia é mais efetiva. Caso seja violado esse princípio, a ação penal torna-se nula.

 O art. 14, § 1°, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos estabelece que¹ “Todas as pessoas são iguais perante os tribunais e as cortes de justiça”. As implicações do postulado parecem interessantes quando ele é posto em confronto com a prerrogativa especial de função, dirigida a certas autoridades públicas e agentes políticos.

 Não concordamos com tais prerrogativas, e há razões que nos levam a deplorar o foro especial por prerrogativa da função. O julgamento criminal do indivíduo deve-se dar sempre pelo Poder Judiciário, que é composto por órgãos de primeira e segunda instância e encimado por tribunais superiores. Por que se haveria de imaginar que o detentor do foro especial estaria melhor “protegido” por ser julgado num tribunal e não diretamente por um juiz de direito?  Qual é a base racional para se acreditar que a função estatal será mais bem tratada ou que o interesse público será mais bem atendido, do ponto de vista processual, numa instância superior?

 Ainda que julgado pelo juízo de primeira instância, o agente político que hoje detém a prerrogativa de poro especial inevitavelmente acabaria por ter sua causa penal revista, em grau recursal, por um tribunal, seja pelas cortes estaduais de justiça, pelas cortes regionais federais ou pelos tribunais superiores.

Sendo, assim, que se excluam da Constituição as diferenças e que se eliminem os privilégios judiciais (ou, eufemisticamente, as prerrogativas especiais de função), implantando-se uma geral e benfazeja isonomia processual.

 ¹Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, Resolução 2200 – A de Assembleia Geral das Nações Unidas de 1966 – Art. 7°

 4.4. Princípio do Juiz e do Promotor Naturais

 Extrai-se da Constituição Federal¹, o princípio do juiz natural. “Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”. Com isso garante-se a existência de um órgão julgador técnico e isento, com competência estabelecida na própria Constituição e nas leis de organização judiciária de modo a evitar que se materialize o dogma nulla poena sine judice.

 Igualmente daí se recolhe à ideia do promotor natural, já reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal em interpretação dada a esse cânon e aos arts. 127 e 129 da CF, que têm em mira assegurar a independência do órgão de acusação pública, o que também representa uma garantia individual, portanto se limita a possiblidade de persecuções criminais pré-determinadas ou a escolha “a dedo” de promotores para a atuação em certas ações penais.

 O juiz é² “somente aquele integrado no Poder Judiciário, com todas as garantias institucionais e pessoais previstas na Constituição Federal”. Assim, como afirma o douto jurista Celso de Mello³, “somente os juízes, Tribunais e órgãos jurisdicionais previstos na Constituição se identificam ao juiz natural, princípio que se estende ao Poder de Julgar também previsto em outros órgãos, como o Senado nos casos de impedimento de agentes do Poder Executivo”.

 O princípio do juiz natural é a diretriz magna que veda a instalação de juízos e tribunais de exceção (art. 5°, XXXVII, CF). Tratando-se de limitação ao poder do Estado de organizar as suas Cortes e Tribunais, a norma vincula-se ás ideias de jurisdição e competência e é nitidamente uma regra de interesse processual penal.

 A consequência é que será nula qualquer sentença condenatória (e mesmo absolutória) que advier de um juízo excepcional ou de um tribular instituído ex post factum.

¹Constituição Federal / 88, art. 5° inciso LIII.

²MORAES, Alexandre de – Direito Constitucional, pág. 109 – Atlas – 2004.

³MELLO FILHO, José Celso – A Tutela Judicial da Liberdade – RT 526/291.

Previstas no Código de Processo Penal e nas leis de organização judiciária, são exceções ao princípio os casos de:

a)           Desaforamento de processos de competência do tribunal do júri;

b)           Substituições entre juízes, em razão de férias, falecimento, afastamento temporário;

c)           E modificações usuais de competência, pela criação de novas varas ou juízos ou pela redistribuição de processos.

4.5. Princípio do Devido Processo Legal

Inserido no art. 5°, inciso LIV, da Constituição Federal, o princípio due processo of law determina que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

A garantia vale tanto para o processo civil (“de seus bens”) quanto para o processo penal (“da liberdade”) e é uma conquista do humanismo britânico, repartindo-se em “procedural due process e substantive due process”.

A França não se afastou desse princípio. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão asseverava já em 1789 que “ninguém pode ser acusado, preso ou detido senão nos casos determinados pela lei e de acordo com as formas por esta prescritas. Os que solicitam, expedem executam ou mandam executar ordens arbitrárias devem ser punidos (…)”.

A Declaração das Nações Unidas, de 1948, repete a regra no seu art. IX: “Ninguém pode ser arbitrariamente preso, detido ou exilado”. Por arbítrio, entende-se a inexistência de lei ou o abuso de direito.

Por igual, verifica-se também facilmente que é do due process of law que se retira à proibição de admissão de provas ilícitas no processo¹. Descumprida tal garantia, a sanção é de nulidade em conformidade com a teoria fruit of the poisonous tree (“fruto da árvore envenenada”), acolhida pelo Supremo Tribunal Federal.

¹Constituição Federal, art. 5°, LVI.

Lembre-se, contudo, que essa vedação não é absoluta, devendo ser vista em cotejo com o princípio da proporcionalidade, a fim de que não haja grave prejuízo material ao direito substancial discutido ou protegido, apenas para se dar atendimento a uma forma procedimental.

O princípio da vedação de provas ilicitamente obtidas foi acolhido no plano internacional pela Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adotada pela ONU em 10 de dezembro de 1984. Integrado ao ordenamento brasileiro pelo decreto número 40/91, o tratado tem força de lei ordinária em nosso País.

Segundo o art. 15 dessa Convenção “cada Estado-Parte assegurará que nenhuma declaração que se demonstre ter sido prestada como resultado de tortura possa ser invocada como prova em qualquer processo, salvo contra uma pessoa acusada de tortura como prova de que a declaração foi prestada”.

Ou seja, em consonância com a garantia contra a autoincriminação, o depoimento de pessoa torturada (declaração viciada e, portanto, nula) não pode ser utilizado no processo civil ou penal para servir de prova contra ela. Admite-se apenas a sua utilização processual para sustentar a acusação, noutro processo, contra o próprio torturador.

4.6. Princípio da Publicidade

Igualdade relevante é o princípio da publicidade, que se dirige a toda a Administração Pública¹, e também à administração da justiça penal.

Decorrência da democracia e do sistema acusatório, o princípio processual da publicidade encontra guarida no art. 5°, inciso LX, da Constituição Federal, que declara: “a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”.

A publicidade surge como garantia individual determinando que os processos civis e penais sejam, em regra, públicos, para evitar abusos dos órgãos julgadores, limitar formas opressivas de atuação da justiça criminal e facilitar o controle social sobre o Judiciário e o Ministério Público.

¹Constituição Federal, artigo 37.

“O processo penal deve ser público, salvo no que for necessário para preservar os interesses da justiça”, determina o art. 8°, §5°, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. A regra, tamanha a sua importância, é reafirmada no art. 93, inciso IX, da Constituição Federal, conforme o qual

“Todos os julgamentos do Poder Judiciário serão públicos e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade (…)”.

A publicidade, como garantia, aparece também no art. 5°, inciso XXXIII, da Constituição Federal, que assegura a todos o direito de “receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral (…)”.

Há dois aspectos do princípio da publicidade:

a)            A publicidade geral ou plena, como regra para todo e qualquer processo;

b)           A publicidade especial, em que se restringe a audiência nos atos processuais e as informações sobre o processo às partes e procuradores, ou somente a estes.

Como crítica ao princípio, reconhecem benefícios malefícios. O maior dos benefícios é a dificultação de abusos, exageros, omissões e leviandades processuais, pela possibilidade de constante controle das partes, dos advogados, do Ministério Público, da imprensa e da sociedade. O mais deplorável dos malefícios, segundo Vladimir Aras, procurador da República no Paraná¹, ou talvez o único, é a possibilidade de haver, com a publicidade, a exploração fantasiosa ou sensacionalista de fatos levados à discussão nos tribunais.

Para evitar esses abusos midiáticos, em certas causas e situações há exceções ao princípio da publicidade plena, como quando a divulgação da informação ou diligência represente risco à defesa da intimidade, imagem, honra e da vida privada das partes; e à segurança da sociedade e do Estado.

¹ARAS, Vladimir, Ensaio Jurídico, Os princípios Processuais no Brasil, Jus Navegandi – 2003.        

 Exemplo dessas restrições estão no:

a)            Art. 792 e §1°, do CPP (caso genérico);

b)            Art. 476 e 481 do CPP (votação do júri);

c)            Art. 217 do CPP (retirada do réu);

d)            Art. 748 do CPP (registro da reabilitação);

e)            Art. 20 do CPP (sigilo no inquérito policial);

f)             Art.202 da Lei das Execuções Penais;

g)            Art. 3° da Lei Federal n. 9.034/95.

4.7. Princípio do Estado de Inocência

Previsto no art. 5°, inciso LVII, da Constituição brasileira, este princípio é também denominado da “presunção da inocência” ou da “presunção de não culpabilidade”.

Acolhida também nos tratados internacionais sobre direitos humanos, esta garantia representou ao tempo de sua introdução nos sistemas jurídicos um enorme avanço. Ninguém poderia ser considerado culpado senão após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Já constava da Declaração Francesa de 1789 no art. 9°: “Todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado (…)”.

A Declaração Universal de 1948¹ assentou, com mais detalhes, que “Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente, até que a culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público, no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa”.

Como bem diz o ilustre jurista Alexandre de Moraes² (Hoje, Ministro da Suprema Corte da Nação), “há a necessidade do Estado provar a culpabilidade do indivíduo, que é constitucionalmente presumido inocente, sob pena de voltarmos ao pleno arbítrio estatal”.

¹Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, art. XI.

² MORAES, Alexandre de – Direito Constitucional, pág. 133 – Ed. Atlas – 2004.

Como corolário dessa ideia, foi preciso desenvolver o sistema acusatório, atribuindo-se a um órgão público a missão de alegar e provar os fatos criminais, em nome do Estado, desfazendo a presunção legal que vigora em prol do indivíduo.

A presunção de inocência prevista, de forma positiva, desde 1789, foi repetida também no art. 8° §2°, do Pacto de São José da Costa rica (introduzido no Brasil pelo Decreto Federal n.678/92) e no art. 14, §2°, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, de 1966.

A jurisprudência, especialmente a do Superior Tribunal de Justiça, tem afirmado que as medidas coercitivas ou as providências restritivas do jus libertatis anteriores à decisão condenatória definitiva não ofendem o princípio da presunção de inocência.

Neste diapasão temos o professor Alexandre de Moraes¹ que diz: “a consagração do princípio da inocência, porém, não afasta a constitucionalidade das espécies das prisões provisórias, que continuam sendo, pacificamente, reconhecidas pela jurisprudência, por considerar a legitimidade juríco-constitucional da prisão cautelar, que, não obstante a presunção júris tantum de não culpabilidade dos réus, pode validamente incidir sobre seu status libertatis.

Dessa forma, permanecem válidas as prisões temporárias, em flagrante, preventivas, por pronúncias e por sentenças condenatórias sem trânsito em julgado”.

Sinaliza o STJ que² “A exigência de prisão provisória, para apelar, não ofende a garantia constitucional da presunção de inocência”. Tal enunciado não passou imune a críticas, mas desde que bem compreendido e aplicado com restrições, não causa dano ao jus libertatis nem ao estado de inocência do acusado.

¹ MORAES, Alexandre de – Direito Constitucional, pág. 133 – Ed. Atlas – 2004.

² ¹ Súmula 9 (nove) do STJ

É também constitucional, para o STJ, o art. 2°, § 2°, da Lei Federal n. 8.072/90, que determina que em caso de sentença condenatória por crime hediondo “o juiz decidirá fundamentalmente se o réu poderá apelar em liberdade”. Este posicionamento é censurável, tendo em conta que a presunção legal é de não-culpabilidade. Portanto, o que o juiz deveria decidir fundamentalmente é se o réu precisaria recolher-se à prisão para apelar até o trânsito em julgado da decisão, e não o contrário. Isto é evidente, porque a regra é poder o réu, em qualquer caso, apelar em liberdade.

Dito isso, é preciso observar que as consequências do princípio do estado de inocência são resumidamente:

a)            A de estar obrigado o julgador a verificar detidamente a necessidade de restrição antecipada ao jus libertatis do acusado, fundamentando sua decisão;

b)            A de atribuir, inexoravelmente, o ônus da prova da culpabilidade do acusado, ao Ministério Público ou à parte privada acusadora (querelante);

c)            Concomitantemente, o efeito de desobrigar o réu de provar a sua inocência;

d)            O de assegurar a validade da regra universal In dubio pro reo.

e)            A revogação (ou não recepção) do art.393, inciso II, do Código de Processo Penal, que mandava lançar o nome do réu no rol dos culpados, por ocasião da sentença condenatória recorrível.

Sobre a alínea “e”, o mestre Alexandre de Moraes¹ diz ser notório a impossibilidade do lançamento do nome do acusado no livro do rol dos culpados antes do trânsito em julgado.

4.8. Princípio do Contraditório

Correspondem ao movimento democratizante, humanizador e garantista do processo penal, os princípios da ampla defesa e do contraditório (art. 5°, inciso LV, CF) segundo os quais “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

¹ MORAES, Alexandre de – Direito Constitucional, pág. 133 – Ed. Atlas – 2004

Como bem diz a douta professora em seu livro¹ que “a bilateralidade da ação, gera a bilateralidade do processo. Em todo o processo contencioso há pelo menos duas partes: autor (representado quase sempre nos processos crimes pelo representante do MP) e réu…”.

O que não se pode perder de vista é que esta garantia diz respeito apenas ao processo, não valendo para a fase inquisitiva (instauração do inquérito policial), que precede a abertura da lide propriamente dita. No inquérito não há garantia de contraditório, pois não há que se falar em ação. Particularmente, venho a discordar da não presença deste princípio no inquérito, pois, se pode haver uma violação do status libertatis, deveria a parte contrária estar munida da garantia do contraditório.

O professor Alexandre de Moraes², ainda diz que “o contraditório assegura dupla proteção ao indivíduo, pois lhe dá paridade total de condições com o Estado persecutor”.

Todavia, não são garantias absolutas. Há situações em que o contraditório (acusação e defesa, prova e contraprova) não pode ser garantido desde logo, tendo sua aplicação diferida. É o que ocorre, por exemplo, com o procedimento de interceptação de comunicações telefônicas, regulado pela Lei n.9.296/96, em que não se pode em nenhuma hipótese anunciar previamente ao investigado a realização da diligência de escuta judicialmente autorizada, sob pena de total insucesso da investigação criminal.

Para o Supremo Tribunal Federal, a garantia do contraditório não vigora, também, nos pedidos de quebra de sigilo bancário, porque se houvesse tal princípio neste tipo de cisão, esta seria inócua, em virtude de manobras que viessem a burlar o objeto da prova.

Como bem analisa a professora Ada Pellegrine² que “o juiz, por força do seu dever de imparcialidade, coloca-se entre as partes, mas equidistantes delas: ouvindo uma, não pode deixar de ouvir a outra”.

¹ GRINOVER Geral do Processo, pág. 58 – Ed. Malheiros 2004.

² MORAES, Alexandre de – Direito Constitucional pág. 133 – Ed. Atlas – 2004.

Tais considerações, entretanto, precisam ser bem entendidas. Não é que de fato inexista contraditório nesses procedimentos. Significa apenas que a oportunidade de conhecimento da medida apuratória ou das provas colhidas na investigação inquisitorial, e o ensejo de contestação a elas e produção de contraprovas serão dados ao investigado/réu em momento posterior, garantindo-se assim a ampla defesa.

De certo é que inexiste o contraditório em âmbito investigatório, pois se trata da fase inquisitória, onde o que está em jogo é o bom andamento da sociedade, não garantias individuais.

Destarte, o contraditório, que em lógica implica a existência de duas proposições tais que uma afirma o que a outra nega, tem como corolários ou implicações:

a)            A igualdade das partes ou isonomia processual;

b)            A bilateralidade da audiência e a ciência bilateral dos atos processuais (audiatur et altera pars);

c)            O direito à ciência prévia e a tempo da acusação, podendo o acusado “dispor do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa”;

d)            O direito a ciência precisa e detalhada dessa acusação;

e)            Direito a compreensão da acusação e do julgamento, ainda que por meio de tradutor ou intérprete;

f)             O direito à compreensão da acusação e do julgamento, ainda que por meio de tradutor ou intérprete;

g)            A oportunidade de contrariar a acusação e de apresentar provas e fazer ouvir testemunhas;

h)            A liberdade processual de especificar suas provas e linha de defesa, escolher seu defensor e mesmo de fazer-se revel.              

4.9. Princípio da Ampla Defesa

      Também é preciso situar o direito à ampla defesa no contexto do processo penal. A defesa é o mais legítimo dos direitos do homem. É a capacidade de resistir a ataques. A defesa da vida, a defesa da honra e a defesa da liberdade, além de inatos, são direitos inseparáveis de seus respectivos objetos. A manutenção da liberdade implica a ação defensiva dessa mesma liberdade, ainda que in potentia. Do mesmo modo, não se pode conceber a vida, sem o direito presente de mantê-la e de defende-la contra ameaças ou agressões injustas ou ilegais, atuais ou iminentes.

         A defesa criminal pode ser técnica, quando realizada por meio de advogado, ou pessoal. Neste caso, o réu assumiria a proteção processual dos seus próprios interesses em face da acusação contra si apresentada.

 

 Embora prevista em tratados internacionais, a defesa pessoal no processo penal brasileiro só é conhecida por ocasião do interrogatório. Esta é a única oportunidade que o acusado tem de falar por si, diretamente ao julgador, sem a intermediação do seu procurador. Trata-se de importante forma de defesa oral, que deve ser devidamente considerada pelo juiz por ocasião da sentença, ainda que outra seja a tese sustentada pela defesa técnica.

 A exceção quanto à refutação pessoal somente confirma a regra, que, no Brasil, é da imprescindibilidade de defesa técnica, na forma do art. 261 do Código de Processo Penal.

Para assegurá-las às inteiras, é preciso permitir ao réu pelo menos:

a)            O conhecimento claro e prévio da imputação;

b)            A faculdade de apresentar contra alegações;

c)            A faculdade de acompanhar a produção de provas;

d)            O poder de apresentar contraprova;

e)            A possibilidade de interposição de recursos;

f)             O direito a juiz independente e imparcial, entre outros;

                  A incomunicabilidade dos acusados, ainda que judicialmente decretada na forma do art. 21 do Código de Processo Penal, não impede o contato direto do advogado com o seu cliente. Esta garantia profissional do advogado é imprescindível ao asseguramento da ampla defesa do acusado. O direito profissional é uma das manifestações do direito constitucional do acusado a uma defesa efetiva e larga.

             Como se viu parágrafos acima, é direito positivo, interno e também internacional, a garantia de defesa técnica ou pessoal no processo criminal, admitindo-se indicação de defensor dativo para o réu, ainda que este não deseje, pois não é tolerável nem razoável admitir que alguém possa ser acusado de um crime sem defender-se. Daí se dizer que¹ “a defesa técnica é indispensável até mesmo pelo acusado. Enquanto a autodefesa é direito disponível pelo réu, que pode optar pelo silêncio”. Caso haja divergência entre defesa técnica e autodefesa, esta tem que prevalecer. E não poderia ser diferente.

           Destarte, do direito à ampla defesa decorre o dever do Estado de providenciar ampla defesa para o acusado e de velar pela sua efetividade. Quanto a este, o acusado, o único direito de defesa que se lhe retira é o de não se defender. Ou seja, mesmo que o réu silencie em seu interrogatório sempre haverá defesa. Sem defesa, não há processo penal.

            Nessa mesma medida, é obvio que a defesa deverá ser efetiva, uma vez que defesa técnica irreal, falha, omissa, leniente equivale à ausência de defesa, sendo causa de nulidade do processo.

                  Além disso, parece-nos oportuno assinalar que o art. 261 do Código de Processo Penal foi derrogado pelos citados dispositivos convencionais. Os tratados internacionais têm força de lei ordinária no Brasil, seguindo o princípio temporal de que “lei posterior derroga lei anterior”.                 

              4.10. Princípio do Duplo Grau de Jurisdição

                Este princípio não está expressamente previsto na Constituição Federal. Trata-se de uma diretriz implícita, que se constrói a partir do art. 5°, inciso LV, segunda parte, da Constituição, e dos arts. 92, 102, 105 e 108 da mesma Carta.

                Ora, se é garantida a ampla defesa, “com os meios e recursos a ela inerentes”, assegura-se concomitantemente o direito de revisão da decisão por um órgão colegiado superior.

                De igual modo, se a Constituição regula a competência recursal dos tribunais superiores e dos tribunais regionais e a distribui a órgãos judiciais específicos, dando-lhes poder de julgar “em grau de recurso” as causas decididas pelas instâncias inferiores, implicitamente garante o direito ao acesso ao duplo grau de jurisdição.

                Funda-se, segundo a douta professora Ada Pellegrine Grinover¹, na possibilidade de a decisão de primeiro grau ser injusta ou errada, daí decorrente a necessidade de permitir sua reforma em grau de recurso.

¹GRINOVER, Ada Pellegrine – Teoria Geral do Processo, pág. 65 – Ed. Malheiros

O direito ao duplo abrange:

a)            O direito ao reexame da causa, quanto ao mérito; 

b)            O direito à revisão da pena; 

c)            O direito à declaração de nulidades (reexame quanto à forma); 

d)            Impropriamente, o direito de rescindir a condenação transita em julgado;

                  Está também previsto tal princípio no Pacto de São José da Costa Rica e no Pacto de Nova Iorque. Todavia, nessas duas convenções a menção é expressa, valendo como lei ordinária no Brasil. Neste caso, como lei processual ordinária.

                  Genericamente, o art. 9°, §4°, do Pacto de Nova Iorque determina que “Qualquer pessoa que seja privada de sua liberdade por prisão ou encarceramento terá o direito de recorrer a um tribunal para que esta decida sobre a legalidade de seus encarceramentos e ordene sua soltura, caso a prisão tenha sido ilegal”.

                  Mais claro é o art. 15 do mesmo tratado: “Toda pessoa declarada culpada por um delito terá o direito de recorrer da sentença condenatória e da pena a uma instância superior, em conformidade com a lei”.

                  Neste passo, é oportuno assinalar o art. 5°, §2°, da Constituição Federal, que estabelece que “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

                  Esse dispositivo de extensão, além de fazer clara a importância dos princípios para a exegese constitucional, evidencia por igual que as diretrizes que regem essa hermenêutica não se encontram apenas no art. 5°, do rol de direitos, nem estão elencadas somente na Constituição; podem estar nas convenções internacionais de que o Brasil seja parte ou mesmo em outros pontos da Constituição, como no art. 228, que estatui que “São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial”.

                  “Não obstante, é mais conveniente dar ao vencido uma oportunidade para o reexame da sentença, com a qual não se conformou”¹. Insto tem sua explicação no fato psicológico de que caso se repita a decisão, o condenado se conformaria com sua punição imposta pelo judiciário.

                  Embora situado no capítulo VII, do Título VIII, da Constituição, que trata da ordem social, o art. 228 prevê legítimo direito individual, limitador da ação do Estado no processo penal. E, portanto, é também cláusula pétrea, em conformidade com o art. 60, §4°, inciso IV, da Carta Federal.

                  Quanto ao instituto do reexame necessário, trata-se hoje de uma excrescência. É algo desnecessário porque as partes tecnicamente assistidas têm todas as condições para interpor recursos voluntários, não havendo porque prever a remessa necessária e automática à instância superior, apara reexame da decisão. A permanência dessa anomalia no sistema acaba por fazer incidir sobre o julgador a pecha de “suspeito”, sobre o acusador público a nódoa de “incompetente” e sobre ambos a suposição de conivência com o erro ou a fraude. Tal estorvo deve, assim, ser eliminado do sistema processual o mais rápido possível.

                  O duplo grau de jurisdição é, assim, acolhido pela generalidade dos sistemas processuais contemporâneos, inclusive pelo brasileiro. O princípio não é garantido constitucionalmente de modo expresso, entre nós, desde da república; mas a própria Constituição incube-se a atribuir a competência recursal a vários órgãos da Jurisdição (art. 102, inciso II; art. 105, inciso II; art. 108, inciso II), prevendo expressamente, sob a denominação de Tribunais, órgãos judiciários de segundo grau (v.g., art. 93, inciso III). Ademais o Código de Processo Penal.

                   Grande problema é o que surge em relação à competência originária do STF. Nos casos previstos no artigo 102 da Constituição Federal, não haveria o Duplo Grau de Jurisdição, haja vista não há Órgão revisor das decisões da Suprema Corte.

                    Este também é o entendimento da ilustre professora Ada¹, que em seu livro diz casos há, porém, em que inexiste o duplo grau de jurisdição: assim, v.g., nas hipóteses de competência originária do Supremo Tribunal Federal, especificada no art.102, inciso I, da Magna Carta Política. Mas trata-se de exceções constitucionais ao princípio, também constitucional. A Lei Maior pode, também, excepcionar as suas próprias regras.

 ¹GRINOVER, Ada Pellegrine – Teoria Geral do Processo, pág. 77 – Ed. Malheiros 

E não podia ser diferente, pois um dos sentidos ou razões da existência deste princípio é, exatamente, a maior qualidade e capacitação de decisão dos Órgãos superiores. O maior conhecimento jurídico que advém com a experiência dos anos de atividade forense. Tal capacidade tem, ou pelo menos, deveria ter seu ápice na Suprema Corte da Nação. Lá estão os melhores juristas do país. Sendo assim, não há necessidade de reapreciação da causa decidida, sendo uma exceção ao princípio em comento.

                    5. Princípios Gerais do Processo Penal 

                   Além dos princípios estritamente constitucionais e das regras internacionais, há os postulados que com eles e elas se relacionam e que se aplicam genericamente ao processo penal, por força de lei ordinária, de tratados ou como decorrência dogmática ou doutrinária. 

                   O fato de não estarem previstos na Constituição não lhes retira a importância, bastando lembrar a norma de extensão do art. 5°, §2°, da Constituição Federal.           

                    5.1. Princípio da Verdade Real 

                   Este axioma recomenda ao julgador e às partes — entre estas, principalmente, o Ministério Público — que se empenhem no processo para atingir a verdade real, para desvendá-la, para determinar os acontecimentos exatamente como se sucederam, a fim de permitir a justa resposta estatal. 

                    Segundo a doutrina mais moderna, capitaneada no Brasil por LUIZ FLÁVIO GOMES¹, é impossível alcançar a verdade real. No máximo, obtém-se a verdade processual ou a verdade judicial, o que dá no mesmo. 

                    O que importa observar é que nunca será possível reconstruir inteiramente o iter criminis, porquanto parte dele se processa no mundo subjetivo, na mente do delinquente, sendo inalcançável pelo julgador e pelo Ministério Público, mesmo mediante confissão. 

¹GOMES, Luiz Flavio, BIANCHINI, Alice. Crimes de responsabilidade fiscal: Lei n.10028/2000. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001.

                    De qualquer modo, o princípio da verdade real — que deve ser aplicado também ao processo civil, malgrado a resistência da doutrina — obriga:

 a)            À busca do verdadeiro autor da infração;

b)            À punição desse pelo fato praticado, ou seja, pela materialidade do delito; pela efetiva agressão ao bem público ou privado;

c)            À exata delimitação da culpabilidade do agente.

Para atingir esse desiderato, permite-se, ao lado da iniciativa das partes, o impulso oficial pelo magistrado e a produção de provas ex officio, faculdade que é criticável, pois pode contaminar o entre de razão do juiz, levando-o a pré-julgamento.

Decorrem também desse princípio as reduções das faculdades dispositivas das partes, quanto aos prazos, procedimentos e formas, todos de ordem pública, bem assim a drástica limitação das ficções, transações e presunções, tão características do processo civil, mas quase totalmente vedadas no penal.

Também em razão da verdade real, a confissão do réu, passa ser vista no processo penal como prova comum, a teor do art. 197 do Código de Processo Penal, que dispõe: “O valor da confissão se aferirá pelos critérios adotados para os outros elementos de prova, e para a sua apreciação o juiz deverá confrontá-la com as demais provas do processo, verificando se entre ela e estas existe compatibilidade ou concordância”. Aliás, sobre isso comenta a professora Ada¹: 

                  “… no Processo Civil em princípio o juiz pode satisfazer-se com a verdade formal… no Processo Penal o juiz deve atender à averiguação e ao descobrimento a verdade real (ou verdade material), como fundamento da sentença”. 

                  A parte final do dispositivo deixa claro que a confissão só merecerá consideração se estiver em conformidade com a verdade processual, extraída das outras provas colhidas na instrução criminal, e desde que tenha sido obtida voluntariamente, sem coação. 

                 No entanto, há institutos processuais que impedem o atingimento da verdade real. Portanto, são exceções a esse princípio: 

¹GRINOVER, Ada Pellegrine – Teoria Geral do Processo, pág. 66 – Ed. Malheiros

 a)            A impossibilidade de rescisão da absolvição indevida (res judicata pro veritate habetur), ou seja, não é possível a revisão criminal pro societate;

b)            A perempção, que extingue o processo, na ação penal privada, em razão da contumácia ou da simples inércia do querelante;

c)            O perdão do ofendido na ação penal privada, como forma de extinção do processo, impedindo também a declaração da verdade real.

5.2. Princípio da Oralidade

Igualdade relevante é o princípio da oralidade processual, em oposição ao lento e demorado procedimento escrito, tão ao gosto dos agentes processuais brasileiros. No entanto, como bem adverte a professora Ada Pellegrine¹, o magistrado deve ser o mesmo, do começo ao fim da instrução oral, salvo casos excepcionais.

Infelizmente, na prática forense, apresenta-se com uma regularidade espantosa a substituição do procedimento oral concentrado por um procedimento escrito, mais demorado. É comum ocorrer de as partes requerem prazo para a apresentação de memoriais escritos ou alegações finais na forma do rito ordinário.

Entende-se que não há nulidade pela substituição de um procedimento mais simples (o sumário ou o sumaríssimo) por um outro mais complexo, como o ordinário. Mas, se não já prejuízo para a defesa ou para o Ministério Público, ocorre prejuízo para a sociedade com a maior demora dos processos criminais.

A oralidade, além dessa noção temporal, ligada à concentração dos atos, permite também inserir no processo penal o princípio da imediatidade, que confere maior proximidade ao julgador em relação às partes e à prova produzida, levando à mesma celeridade.

Por igual, outra consequência da oralidade pode ser a garantia da identidade física do juiz, que não se aplica ao processo penal, segundo a doutrina, salvo excepcionalmente mediante a repetição voluntária dos atos processuais, determinada na forma do art. 502, parágrafo único, do Código de Processo Penal, ou analogicamente in bonam partem, na forma do art. 131 do Código de Processo Civil.

²GRINOVER, Ada Pellegrine – Teoria Geral do Processo, pág. 68 – Ed. Malheiros

Exemplos do princípio da oralidade no processo penal, corroborando com as ideias de imediatidade e concentração, estão:

a)            No rito sumaríssimo da Lei Federal n. 9.999/95, decorrente do art. 98, inciso I, da Constituição Federal;

b)            No rito sumaríssimo do art. 538, §2°, Código de Processo Penal.

5.3. Princípio da Obrigatoriedade da Ação Penal

Fundando-se na necessidade de defesa social contra o crime, o princípio da obrigatoriedade da ação penal obriga o Ministério Público a atuar processualmente sempre que ocorra delito de ação penal pública.

O dicionário jurídico define obrigatoriedade como¹ “…a existência de um dever jurídico, em seu mais latu sentido, que vem sempre assistido por uma coação exterior, para que não se ruja ao imperativo, que dita a conduta a ser seguida, sob as sanções que serão cominadas”.

O princípio tem merecido críticas, pois não mais se coaduna com o processo penal democrático, no qual tem maior aceitação o princípio da oportunidade da ação penal pública, que confere um maior campo de discricionariedade o Ministério Público.

Aliás, o princípio da oportunidade está necessariamente ligado à ideia de intervenção mínima. Permitindo-se ao Ministério Público maior liberdade de decidir quando oferecer a denúncia ou não, estar-se-ia facilitando a intervenção penal mínima, sem abandonar-se o dever de defesa social.

Todavia, esse posicionamento menos conservador ainda não encontra espeque na legislação processual, que, nos arts. 5°, 6° e 24 do Código de Processo Penal, acolhe o princípio da obrigatoriedade, tanto para a tarefa investigativa da Polícia Judiciária quanto para a atuação processual do Ministério Público.

O representante da sociedade como, tem a obrigação de demandar contra o agressor do bem jurídico protegido. Não já margem de liberdade ao representante do Ministério Público. Ou age ou age. Não pode fazer juízo de valor ao ver o bem jurídico tutelado ser atingido por alguém. Entretanto isto não quer dizer que ele, autor da ação penal, não possa pedir a absolvição quando

¹De Plácido e Silva, Vocabulário Jurídico, Ed. Saraiva, 2005.

presentes circunstâncias que isente o agressor de culpa ou dolo. 

5.4. Princípio da Oficialidade

Intimamente relacionada com os princípios da legalidade e da obrigatoriedade, a diretriz da oficialidade funda-se no interesse público de defesa social.

Pela leitura do caput do art. 5° da Constituição Federal, compreende-se que a segurança também é um direito individual, competindo ao Estado provê-la e assegurá-la por meio de seus órgãos.

Daí serem criados por lei, órgãos oficiais de persecução criminal, para investigação dos delitos e processamento dos crimes, no sistema acusatório.

O art. 144 da Constituição Federal organiza a segurança pública no País, ao passo que o art. 4° do Código de Processo Penal estabelece atribuições de Polícia Judiciária e o art. 129, inciso I, da Constituição Federal especifica, o munus do Ministério Público no tocante à ação penal pública.

As exceções ao princípio da oficialidade estão no art. 30 do Código de Processo Penal, para a ação penal privada; e no art. 29 do mesmo código para a ação penal privada subsidiária da pública.

Têm razão, portanto, LUIZ FLÁVIO GOMES e ALICE BIANCHINI, ao dizerem que¹, “se for entendido que as condutas previstas no art. 10 da Lei 1.079/50 são de caráter penal (e isso já foi anteriormente afastado), torna-se absurdo permitir a todo cidadão o oferecimento da denúncia, pois amplia o rol dos legitimados para propositura de ação penal, em total afronta ao art. 129, inciso I, da Constituição, que estabelece a competência privativa do Ministério Público”.

Corrente minoritária da doutrina defende a ideia de que a “denúncia” de que trata a Lei n 1.079/50 (especialmente a prevista no art. 14) é simplesmente uma notitia criminis, pois a verdadeira acusação contra o Presidente da República, nos chamados crimes de responsabilidade, ficaria a cargo da Câmara dos Deputados, autoridade competente consoante o art. 51, inciso I, da Constituição Federal.

¹ GOMES, Luiz Flavio, BIANCHINI, Alice. Crimes de responsabilidade fiscal: Lei n.10028/2000. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001.

5.5. Princípio da Indisponibilidade

Tanto o inquérito policial quanto o processo penal são indisponíveis. Esta realidade deriva do princípio da obrigatoriedade da ação penal pública e do brocardo¹ Nec delicta maneant impunita (nenhum delito ficará sem punição).

Com isso, proíbe-se a paralisação injustificada da investigação policial ou seu arquivamento pelo delegado de Polícia, o mesmo valendo para a própria ação penal, que não pode ser obstada, salvo por justa causa.

Positiva tal princípio do art. 10 do Código de Processo Penal, que estabelece prazo cabal para a conclusão do inquérito policial; o art. 17 do mesmo código, que impede o arquivamento do IP pela autoridade policial; o art. 28, que situa o juiz como fiscal do princípio da obrigatoriedade da ação penal, permitindo-lhe discordar da promoção feita pelo Ministério Público.

São também corporificações do princípio o art. 42 do CPP, que proíbe o parquet de desistir da ação penal que tenha proposto e o art. 576 do CPP, que o impede de desistir de recurso que haja interposto em ação penal pública.

Merece crítica, no entanto a disposição do art. 385 do Código de Processo Penal, que autoriza o juiz a condenar o réu, mesmo em face de pedido absolutório apresentado pelo Ministério Público na ação penal pública.

Os defensores do cânon alegam que se trata de regra destinada a assegurar a busca da verdade real e a defesa social. O juiz, nesse mister, não estaria vinculado ao posicionamento do Ministério Público, porque está, na outra ponta, sujeito à missão de desvendar a verdade real.

Contudo, já foi dito, noutro passo que, no processo não se atinge a verdade real, senão a verdade judicial, e a constante busca por essa “verdade” somente ocorre na ação penal pública incondicionada, porquanto, mesmo na ação penal pública condicionada pode o ofendido impedir a persecução se não oferece representação ou dela se retrata, antes do oferecimento da denúncia (art. 25 do Código de Processo Penal).

Além disso, no art. 385 já aparente violação ao sistema acusatório, misturando-se as funções de acusação e julgamento. Diz-se também que a regra é prejudicial aos acusados e, por isso deveria ser interpretada restritivamente, no sentido de que o magistrado somente poderia proferir sentença condenatória

¹ MOSSIN, Heráclito Antônio — Comentários ao Código de Processo Penal — Ed. Manole – 2006.

quando o Ministério Público não fundamentasse devidamente o pedido absolutório.

            Ora, se o órgão incumbido pela Constituição Federal de promover a acusação em nome do Estado entende que há causa excludente de ilicitude, que o fato é atípico ou que outro foi o seu autor e pede a absolvição do réu, por que haveria o julgador, órgão imparcial, de assumir ele a pretensão estatal acusatória e condenar o réu quando pedido nesse sentido não mais existe. Não seria essa uma forma de julgamento extra ou ultra petita? Parece-nos que sim, pois o julgador, situado imparcialmente entre e acima das partes, estaria quase que assumindo uma pretensão que não é nem pode ser sua.

O pedido de absolvição pelo Ministério Público equivale à inexistência de acusação.

Idêntica censura se faça quanto à previsão da segunda parte do art. 385 do Código de Processo Penal, que autoriza a autoridade judiciária a reconhecer agravantes que não tenham sido alegadas na denúncia ou nas alegações finais do Ministério Público.

Disposição como esta tinha sentido na década de 1940, quando a introdução do CPP, época em que o Ministério Público não estava organizado nacionalmente com a devida estrutura e capilarizado em todas as comarcas do País, como instituição inteiramente profissional. Hoje, como as responsabilidades que foram atribuídas ao Parquet e com o desenvolvimento de uma cultura de Ministério Público é desarrazoada a regra ora examinada, tanto quanto o é a que determina o reexame necessário em certos casos.

Entretanto, como afirma o professor Heráclito Antônio Mossin¹, quando o legislador deu autonomia ao julgador para decidir contrario sensum ao pedido de absolvição do parquet, o fez com base no brocardo narra mihi factum dabo tibi ius. Desta forma não está, o magistrado, vinculado à posição do representante do MP.

¹ MOSSIN, Heráclito Antônio — Comentários ao Código de Processo Penal — Ed. Manole – 2006.

              5.5.1. Princípio da Obrigatoriedade

Este princípio tem como escopo a necessidade de defesa da sociedade dos crimes eu abalam sua estrutura, obrigando o “parquet”, todas as vezes que houver o cometimento de crimes que possam retirar a paz e harmonia social, a promover a devida Ação Penal Pública, possibilitando a punição do infrator.

Há críticas inúmeras na doutrina sobre este princípio, pois, segundo alguns autores, ele não mais se coaduna com o Estado Democrático de Direito, ponde predomina o princípio da Oportunidade da Ação Penal, para que não haja sobrecarga de demandas, principalmente as ínfimas, sobre o Estado-juiz. O Estado deve intervir, segundo os críticos deste princípio, de forma mínima, para que não se volte ao Estado intolerante a algoz perseguidor de ilícitos que nenhum mal concreto traz ao seio social. Todavia, esse posicionamento menos conservador ainda não encontra espeque na legislação processual, que nos art. 5°, 6° e 24 do Código de Processo Penal, acolhe o princípio da obrigatoriedade, tanto para a tarefa investigativa da Polícia Judiciária quanto para a atuação processual do Ministério Público.

Atualmente, o Ministério Público está inteiramente vinculado à missão de denunciar, quando o fato seja típico e antijurídico. Preenchido o modelo legal, deve seguir-se a acusação. Não pode o “Parquet” manifestar opção de política criminal, salvo se adotar uma visão alternativa do direito penal. Como ente administrativo, a atividade do Ministério é vinculada, o que cerceia sua independência processual, ainda quando seja “pro reo”. Diante da fórmula típica, sempre deverá ser oferecida à denúncia.

Este princípio não vigora, de forma absoluta, nas Ações Privadas, pois, diferente do que acontece com a Pública Incondicionada e com a Condicionada, após a representação ou Requisição, mesmo que haja fato típico e antijurídico e que não esteja presente nenhuma excludente de antijuricidade, o ofendido pode não propor a ação, e propondo-a, poderá desistir da mesma, sem sofrer nenhum prejuízo diante desta decisão. Quando falo de não vigorar de forma absoluta, assim digo porque, caso o ofendido venha propor a ação, se recebida, não poderá desistir sem a concordância do réu. Assim deve ser porque, depois de recebida a queixa-crime, a ação não mais pertence apenas ao autor, mas a ambos os pólos da relação jurídica — autor e réu.

5.6. Princípio da Iniciativa das Partes

É conhecido o axioma latino Ne procedat judex ex officio, que assinala o sistema acusatório. O juiz não age de ofício, não inicia a ação por iniciativa própria; depende da provocação do Ministério Público ou da parte ofendida, que atuará como querelante.

Dessa regra deriva a de que Nemo judex sine actore, ou seja, de que não há juiz sem autor, que equivale a dizer que não há jurisdição sem ação.

No ordenamento brasileiro, a diretiva está no art. 24 do Código de Processo Penal (ação penal pública), e nos arts. 29 e 30 do mesmo código (ação penal privada e privada subsidiária). Deles se desprende o princípio da iniciativa das partes, sendo hoje uma regra absoluta, pois não mais subsiste o procedimento judicialiforme¹, (ato que tem forma daqueles praticados em juízo, embora não o sejam, como os atos praticados pela polícia judiciária), previsto na Lei n. 4.611/65, em que o juiz ou o delegado de polícia, mesmo não sendo partes, podiam iniciar a ação penal em certos crimes (lesão corporal e homicídio culposo) e nas contravenções penais (art. 531 do Código de Processo Penal), bem como em razão da Lei Federal n. 1.508/51, que cuidava do rito sumário para a contravenção de jogo do bicho.

Como bem salienta a professora Ada Pellegrine², “a jurisdição é inerte e, para sua movimentação, exige a provocação do interessado”.

A consequência imediata do princípio da iniciativa é que o juiz estará adstrito ao pedido do promovente da ação. Não poderá julgar além do pedido das partes. Ne eat judex ultra petita partium, pois, caso contrário, estaria dando início a uma acusação diversa da apresentada, pois mais ampla. Define-o bem a regra do art. 128 do Código de Processo Civil, segundo a qual:  

¹ De Plácido e Silva, Vocabulário Jurídico, Ed. Saraiva, 2005.

² GRINOVER, Ada Pellegrine – Teoria Geral do Processo, pág. 68 – Ed. Malheiros

O juiz decidirá a lide nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões, não suscitadas, a cujo respeito à lei exige a iniciativa das partes”.

Também caracteriza o princípio da iniciativa das partes o axioma sententia debet esse conformis libelo, o de que a sentença deve estar em conformidade com a acusação. Este princípio é também denominado de princípio da correlação.

São exceções à regra os institutos da mutatio libelli (art. 384-CPP) e de emendatio libelli (art. 383-CPP). Embora desejável, não estão as partes obrigadas a tipificar corretamente o pedido. Diz-se que o juiz conhece o Direito (jura novit curia) e que basta a narração do que fato ao julgador para que se tenha o veredicto (narra mihi factum dabo tibi jus). Em face disto, o juiz, pode ver-se na contingência de alterar a qualificação legal dda ao crime ou sugerir o agravamento da imputação.

5.7. Princípio do Impulso Oficial

A regra Ne procedat judex ex officio não transforma o juiz num órgão absolutamente inerte. Iniciada¹ a ação penal, pode e deve a autoridade judiciária promover o bom e rápido andamento do feito. Presidindo a instância penal, cabem ao juiz (art. 251, Código de Processo Penal) a direção e regulação do processo, competindo-lhe determinar:

a)            Na forma do art. 156 do Código de Processo Penal, diligências e provas complementares;

b)           A coleta de documentos probantes de relevo (art. 234);

c)            A realização de exame de corpo de delito complementar (art. 168);

d)           Quesitos em perícias (art. 176);

e)            O reinterrogatório do réu (art. 196);

f)             A reinquirição de testemunhas e do ofendido (art. 502, parágrafo único).

             Essas providências são necessárias para a busca da verdade real, tendo em conta também a indeclinabilidade da jurisdição penal, o que significa que o juiz não poderá declarar non liquet; encerrar o processo sem causa legal (como a incidência de causa extintiva de punibilidade); ou paralisá-lo injustificadamente em seu curso.

              As exceções ao princípio do impulso oficial são determinadas em lei, sendo exemplo delas a suspensão da ação penal pública de competência do tribular do júri por falta de intimação pessoal da pronúncia ao acusado (art. 413).

5.8. Princípio da Economia Processual

Este princípio possibilita a escolha da opção menos onerosa às partes e ao próprio Estado no desenvolvimento do processo, desde que não represente risco para direitos individuais do acusado. Se o risco ocorrer, a economia formal deve ser evitada.

São exemplos de aplicação do princípio a rejeição da denúncia em vista da defesa preliminar do funcionário público (art. 514 Código de Processo Penal) e a conservação de atos processuais não decisórios em face de eventuais nulidades (art. 567), desde que a incompetência seja relativa, pois do contrário, mesmo os atos não decisórios serão nulos¹. Aliás, sobre isto fala o professor Heráclito Antônio Mossin². É de inconcussa conclusão que o regramento abordado não pode alcançar a incompetência absoluta, quer relativamente à matéria, quer concernente a pessoa (competência funcional).        

5.9. Princípio ne Bis in Idem

Conforme o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos art. 14, §7° “Ninguém poderá ser processado ou punido por um delito pelo qual já foi absolvido ou condenado por sentença passada em julgado, em conformidade com a lei e os procedimentos penais de cada país”.

                Pelo Pacto de São José da Costa Rica³ “O acusado absolvido por sentença passada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos”.

¹ RT 575         |367.

² MOSSIN, Heráclito Antônio – Comentários ao Código de Processo Penal – Ed. Manole – 2006.

³ Pacto de São José da Costa Rica, art 8°, § 4°.

No Brasil, além das disposições convencionais, derivada de tratados, assegura-se a soberania dos veredictos no tribunal do júri e a autoridade da coisa julgada no art. 5°, da Constituição Federal.

                5.10. Princípio Favor Libertatis

                Talvez um dos mais importantes princípios do processo penal, o do favor rei, representa uma garantia contra a ineficiência do Estado ou contra-acusações temerárias.

                 Em face dele, conhecido também como princípio In dubio pro reo (favor innocentice), a lei processual permite a absolvição do réu por insuficiência de provas (art. 386, IV).

                 Como bem afirma o nobre e douto mestre Heráclito Antônio Mossin¹, “as provas arrostadas nos autos não são suficientes para a condenação. Há elementos em prol da condenação e há outros que não a recomendam”. Sendo assim plenamente aplicável tal princípio.

                 O favor rei proíbe a reformatio in pejus em detrimento do acusado (art. 617 do CPP) durante o exame recursal de irresignação exclusiva da defesa e favorece a posição jurídica do réu, facultando-se a interposição de recursos privativos, como o protesto por novo júri (art. 607- CPP) e a revisão criminal (art. 621). Sobre isso fala o mestre Mossin²: Sem dúvida, a vedação da reforma para pior, quando só tenha recorrido, à defesa, guarda íntima relação com o sistema acusatório. Isso porque o contraditório é sua condição básica e elementar. Sem ele volta a baila o sistema inquisitório, superado pelas legislações penais mais modernas”.

                 Com exceção, pode-se citar a desclassificação in pejus, prevista no art. 408, §4°, do Código de Processo Penal.

¹ MOSSIN, Heráclito Antônio – Comentários ao Código de Processo Penal – Ed. Manole – 2006.

6. Conclusão

Nesta conclusão queremos fazer uma rápida análise dos princípios por nós estudados. Como já é cediço, não nos (e talvez nunca será), possível esgotarmos o assunto principiológico, haja vista, este tema é um dos mais abrangentes, quer se tratando de normas materiais, quer das normas instrumentais ou adjetivas. Se alguma utilidade tem este rápido panorama, é a de revelar a importância do estudo dos princípios constitucionais e dos princípios gerais do processo penal. Sem o exame e o conhecimento dessas diretrizes e postulados, não pode a Justiça Criminal funcionar a contento, nem estarão os julgadores, os membros do Ministério Público e os defensores, habilitados a promover o bom direito.

O presente trabalho tem o condão de nos instigar a um profundo e concentrado exame de uma das fontes principais da elaboração, criação e aplicabilidade das Leis. Os princípios não se esgotam no rol analisado. Outros existem como o da fundamentação, o do acesso universal à Justiça, o da duração razoável do processo, o do direito à ação civil indenizatória contra o Estado, inclusive por erro judicial — neste caso da forma do art. 5°, inciso LXXV, da Constituição Federal, o direito à informação processual, consoante o art. 5°, LXIII e LXIV, da Constituição Federal e o art. 7°, §4°, do Pacto de São José da Costa Rica, entre outros.

Não há como desvincular a carta Política de 1988 dos princípios que norteiam a relação Processual Penal, pois, é justamente na Constituição que serão garantidos direitos básicos e imprescindíveis aos acusados para uma solução que atinja uma verdade, se não axiomática, mas que esteja dentro do universo desta.

Quando falamos em Devido Processo Legal, por exemplo, estamos nos prontificando a termos como anátema toda e qualquer relação processual que fuja a uma regra pré-estabelecida. É a famosa frase de um certo comentarista de futebol: a regra é clara. Ela foi feita para ser cumprida.

Na análise do Contraditório, estamos a dizer que, uma verdade só é alcançada quando, ao adverso, é possível expor sua versão. Lembremo-nos de que a história contada por apenas uma das partes sempre será maculada de vícios. Seria impossível obtermos uma justiça próxima à genuína, se, aos acusadores, não estipulássemos, com antecedência, regras de comportamento para procederem em juízo. Imaginemos, em um julgamento no Tribunal do Júri, onde a acusação exponha aos jurados uma carta onde o acusado diz ter matado a vítima por não gostar da mesma. Na mesma imaginação, pense que esta carta é falsa. Como seria difícil escapar de uma condenação, mesmo em se tratando de prova falsa, reconhecida pós-sentença. É como base neste desfecho esdrúxulo que a Carta Magna impõe aos litigantes o dever de Contraditório, pois, neste caso, a defesa terá a oportunidade de interpor um incidente de falsidade para expurgar aquilo que macularia a verdade justiça.

Ao respeitarmos a Ampla Defesa, daremos a oportunidade de igualdade entre os envolvidos. Eliminaremos futuros problemas de má aplicação da justiça. Teremos a oportunidade de descobrimos a verdade que circula o fato. Corolário deste Princípio é a possibilidade de admissão, em juízo, das provas ilícitas que beneficiem o acusado, como por exemplo, uma gravação telefônica sem autorização da outra parte, onde esta confessa a autoria do delito.

Não seria prudente vivermos em um Estado onde todos fossem culpados, até prova em contrário. A falta de segurança jurídica inviabilizaria uma convivência harmônica na sociedade. Estaríamos em um verdadeiro caos social. É por este motivo que todos somos inocentes, até que se prove o contrário. Deve, quem acusa, arcar com o ônus da prova. Mostrar para o Estado-Juiz a verdade de suas alegações. Este Estado-Juiz deve, se assim desejar o acusado, após reconhecer sua não inocência perante os fatos demonstrados, permitir que instâncias superiores confirmem e reconheçam a culpabilidade do mesmo. Daí, só então, o culpado estará sujeito à aplicação das sanções previstas em Lei.

Aproveito a oportunidade para tecer minhas conclusões sobre um Princípio que considero um dos mais importantes de um estado Democrático de Direito, que é o do Duplo Grau de Jurisdição. Seria impossível alguém acuado de algo, conformar-se com uma só “opinião” sobre a lide. No momento em que o Estado-Juiz se prontifica a reexaminar a decisão que o mesmo tomou em uma instância inferior, está a dizer ao acusado que tem compromisso absoluto com a verdade, e que não abre mão da mesma. Vejam o quão importante é este Princípio para alguém que se ver envolvido em uma demanda. Saber que não terá apenas uma opinião” sobre o fato, mas que várias pessoas, com diversidade de experiência e óticas diferentes sobre o tema, analisarão o assunto.

Enfim, quero terminar este singelo trabalho expondo meu verdadeiro e profundo respeito pelos Princípios Processuais Penal, seja pela importância dogmática que eles exercem sobre o Direito Adjetivo, seja pela tranquilidade que eles proporcionam aos governados em meio a um Estado que vive da criação de Leis, como é o brasileiro. Eles impedirão os legisladores e os aplicadores das Normas criadas “atirem” sem direção, apenas com o intuito de satisfazerem a opinião e o momento, sem o compromisso com a verdade real.

Como alguém já disse: “mais grave do que ofender uma norma é violar um princípio, pois aquela é o corpo material, ao passo que este é o espirito, que o anima”.

                                                “A letra mata; o espirito vivifica”.

7. Bibliografia

ARAS, Vladimir, Ensaio Jurídico, Os Princípios Processuais no Brasil, Jus Navegandi — 2003.

Constituição Federal de 1988.

Código de Processo Penal.

De Plácido e Silva, Vocabulário Jurídico, Ed. Saraiva, 2005.

Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão – França / 1789.

Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.

Dicionário da Língua Portuguesa Houaiss – Ed. Objetiva – 2004.

GOMES, Luiz Flavio, BIANCHINI, Alice. Crimes de responsabilidade fiscal: Lei n.10028/2000. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001.

GRINOVER, Ada Pellegrine – Teoria Geral do Processo – Ed. Malheiros.

MELLO FILHO, José Celso – A Tutela Judicial da Liberdade – RT 526/291.

MOSSIN, Heráclito Antônio – Comentários ao Código de Processo Penal – Ed. Manole – 2006.

MORAES, Alexandre de – Direito Constitucional – Ed. Atlas – 2004.

Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, Resolução 2200 – A de Assembleia Geral das Nações Unidas 1966.

Pacto de San José da Costa Rica – 1969.

Como citar e referenciar este artigo:
SABINO, Sérgio Murilo. Princípios Norteadores do Processo Penal. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2017. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/processo-penal/principios-norteadores-do-processo-penal/ Acesso em: 18 mai. 2024