Processo Civil

Relativização da coisa julgada

Sumário: 1 Introdução. 2 Garantia constitucional. 3 Justiça x segurança
jurídica. 4 Coisa julgada e decisão injusta ou nula. 5 Conclusão.

1.Introdução

A relativização da coisa julgada é o tema da moda. São vários os
conceitos dados pelos doutrinadores. Porém, pode-se dizer que coisa julgada
material significa imutabilidade dos efeitos da sentença que recebeu ou
rejeitou a demanda, em decorrência de esgotamento de recursos eventualmente
cabíveis. A LICC a define como “decisão judicial de que não caiba
recurso” [01].

Na prática, a relativização corresponde à ampliação do leque das
hipóteses de ação rescisória além dos limites permitidos na lei processual. A
demonstração de que a coisa julgada material não é absoluta está exatamente na
possibilidade da ação rescisória na esfera do direito civil e na possibilidade
de revisão criminal na esfera penal. Mas, ela não é absoluta apenas nesses dois
aspectos.

Ouço falar em congressos e simpósios de direito em relativização da
“coisa delgada” em alusão a um dos Ministros mais cultos e
inteligentes que marcou passagem no Superior Tribunal de Justiça, o qual, havia
passado por cima da “autoritas rei judicate” em um caso de
expropriatória indireta em que o Estado-membro havia incorporado ao seu
patrimônio um imóvel que já era de seu domínio.

2 Garantia constitucional

A coisa julgada material constitui uma garantia fundamental (art. 5º,
XXXVI, da CF), protegida em nível de cláusula pétrea (art. 60, § 4º, IV, da CF)
sendo elemento estrutural do princípio de acesso ao Judiciário para efetivação
do direito (art. 5º, XXXV, da CF) que, por sua vez, é inerente ao Estado
Democrático de Direito, nos termos proclamados no art. 1º da Constituição
Federal.

Logo, somente mediante alteração constitucional, por meio de uma
Assembléia Nacional Constituinte (original) é que a coisa julgada pode ser
relativizada. Exemplo disso é o art. 17 do ADCT da Constituição de 1988, que
determinou a redução imediata dos vencimentos e proventos que estivessem sendo
percebidos além do teto salarial introduzido pela nova ordem constitucional,
passando por cima do direito adquirido, instituto que mereceu idêntica proteção
constitucional da coisa julgada.

Entretanto, aquele art. 17 tinha caráter de norma de efeito concreto,
incidindo sobre remunerações excedentes aos limites fixados originariamente no
inciso XI, do art. 37, da Constituição de 1988. Desaparecido aquele teto
remuneratório, por força de emendas posteriores, aquele art. 17 do ADCT perdeu
a sua eficácia. Como norma de efeito concreto e transitório não tinha o poder
de derrogar o princípio da irredutibilidade de vencimentos previsto no art. 37,
XV da Constituição, em sua redação original e muito menos de invalidar a coisa
julgada, mediante interpretação ampla daquele texto excepcional. Foi o que
restou decidido no RE nº 146.331-7/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 6-3-98.

3 Justiça x segurança jurídica

Cada decisão judicial reflete a ordem jurídica então vigente, que nem
sempre coincide com o ideal de justiça. Como próprio nome está a indicar o
ideal é algo a ser perseguido eternamente. O ideal de justiça certamente é um
valor de grande importância a ser buscado por vias legislativa e judicial. Porém,
a segurança das relações jurídicas deve ser levada em conta, sob pena de
desmoronamento da ordem jurídico-social gerando em caos na sociedade. Essa
desordem do ordenamento jurídico, certamente, acabaria por afetar o ideal de
justiça.

A realidade social é dinâmica. Mudam-se os valores, e alteram-se o
conceito de justiça. Não é possível desconsiderar a coisa julgada a pretexto de
que determinada decisão transitada em julgado não mais reflete a noção de
justiça.

4 Coisa julgada e decisão injusta ou nula

Quando a decisão judicial transitada em julgado é injusta, e essa
injustiça decorre da inaplicação do direito positivado, deve-se lançar mão de
ação rescisória em tempo hábil.

Costuma-se argumentar muito com o exemplo da ação de investigação de
paternidade em que foi negada ou reconhecida a paternidade em função da prova
técnica então apresentada. Posteriormente, o exame do DNA demonstrou resultado
contrário àquele acolhido pela sentença. O que fazer? Continuar sendo o pai da
criança contra prova incontestável do ponto-de-vista científico?

Se na época, não existia esse exame sofisticado, fato que conduziu a uma
decisão fora da realidade, é até possível sustentar a contagem do prazo para a
rescisória, a partir do momento em que essa prova técnica passou a ser
utilizada nos meios judiciários, com fundamento em documento novo, assim
entendido o laudo médico elaborado com base em nova técnica de exame.

Passar por cima da autoridade da coisa julgada, no caso, em nome da
justiça seria abrir um precedente perigosíssimo para a estabilidade das
relações jurídicas, porque decisões de outra natureza, também, poderiam ser
ignoradas em face dos incessantes avanços tecnológicos e rápida transformação
da realidade social, tornando irreais as decisões proferidas no passado. Apenas
para aguçar o pensamento dos leitores suponha-se um gol duvidoso reputado
válido pelo árbitro. Com o exame quase imediato das imagens gravadas,
tecnologia antes indisponível, nota-se perfeitamente que havia um impedimento.
Pergunta-se, anula-se o gol, ou prevalece a decisão (injusta, no caso) já
tomada?

É preciso não confundir, outrossim, o efeito ex tunc da declaração de
inconstitucionalidade de lei ou ato normativo para sustentar a vulneração da
coisa julgada material caso não seja conferido efeito prospectivo à luz do art.
27 da Lei nº 9.868/99. A decisão da Corte Suprema, sabidamente, não retroage
para atingir a coisa julgada. O que se pode sustentar, com razoável fundamento
científico, é que a decisão declaratória de inconstitucionalidade reabre o
prazo da ação rescisória, a contar da data da publicação do acórdão que declara
a inconstitucionalidade a lei ou ato normativo em que se fundou a decisão
rescindenda. Na hipótese de essa declaração ter sido pronunciada em grau de
recurso extraordinário, esse prazo inicial, para quem não foi parte na ação,
contar-se-ia da data de publicação da Resolução do Senado Federal, que
suspendeu a aplicação da lei ou ato normativo declarado inconstitucional (art.
52, X da CF).

Em outro artigo, “Repetição de indébitos de tributos declarados
inconstitucionais”, sustentamos que o prazo da ação de repetição de
indébito não se conta a partir do pagamento do tributo (art. 168, I, do CTN),
conforme atual orientação do STJ [02], mas da data da publicação do acórdão que
declara a inconstitucionalidade da exação cobrada, porque a certeza de que o
tributo era inconstitucional só surge com a decisão final do STF, pois toda lei
nasce com presunção de constitucionalidade.

Se a Corte Suprema declara que o que foi pago não era tributo, parece
óbvio que não se pode aplicar o inciso I, do art. 168, do CTN que alude à data
da extinção do crédito tributário (pelo pagamento).

Contudo, quem tiver contra si decisão transitada em julgado, para propor
a ação de repetição com fundamento na decisão da Corte Suprema, deverá promover
prévia rescisão daquele julgado. Nada impede, evidentemente, de cumular o
pedido de repetição na ação rescisória.

Outra coisa diversa, também, é a sentença fundada em lei ou ato
normativo declarado inconstitucional, isto é, por ocasião da decisão proferida
já existia a proclamação de inconstitucionalidade da lei ou ato normativo
aplicado. Nesse caso, esse título judicial não está dotado do requisito da
exigibilidade podendo ser impugnado na fase de execução. É o que dispões o art.
475-L, inciso II e § 1º, do CPC. Idêntico dispositivo há em relação à execução
contra a Fazenda Pública (art. 741, II do CPC). Decisão judicial transitado em
julgado, mas sem citação regular do réu é outro caso de inexigibilidade do
título judicial a ser argüido na fase de execução. Nesses casos, não cabe falar
em relativização da coisa julgada.

5 Conclusão

Toda a discussão em torno da relativização de coisa julgada material
está fundada na busca de plenitude da justiça que se contrapõe ao princípio da
estabilidade das relações jurídicas. O princípio da segurança está previsto no
art. 5º da CF e protegido por cláusula pétrea. Mas, como dizia Montesquieu a
injustiça que se faz representa uma ameaça a todos.

Daí a dificuldade de opção entre justiça e segurança jurídica,
deslocando o debate para o vasto campo filosófico. Cabe ao Supremo Tribunal
Federal dar a última palavra considerando as garantias fundamentais expressas
no corpo da Constituição.

Notas

§ 3º, do art. 6º.

Resp nº 1110578/SP, Rel. Min. Luiz Fux, DJe de 21-5-2010; AgRg nº
958.908/RS, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJe de 24-2-2010; EResp nº
435.835/SC, Rel. Min. Francisco Peçanha Martins, Rel. p/ acórdão Min. José
Delgado, DJ 4-6-2007; AgRg no Ag. nº 803.662/SP, Rel. Min. Herman Benjamim, DJ
de 19-12-2007.

* Kiyoshi Harada.
Advogado em São Paulo (SP). Especialista em Direito Tributário e em Direito
Financeiro pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e
Financeiro. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do
Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Membro do Conselho Superior de Estudos
Jurídicos da Fiesp. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de
São Paulo. Site:www.haradaadvogados.com.br

Como citar e referenciar este artigo:
HARADA, Kiyoshi. Relativização da coisa julgada. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2011. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/processo-civil/relativizacao-da-coisa-julgada/ Acesso em: 18 mai. 2024