Política

“Missão cumprida” no Iraque? O que é isso, Bartle Bull?!

“Missão cumprida” no Iraque? O que é isso, Bartle Bull?!

 

Francisco César Pinheiro Rodrigues*

 

 

Dizia Carlos Lacerda, o brilhante jornalista e político que encantou e assustou o Brasil por muitos anos — contribuindo decisivamente para o suicídio de Getúlio Vargas — que “o que importa é a versão, não o fato”.

 

Realmente, o virtuosismo na elaboração de textos, conjugado com a cultura especializada, assemelha-se à “coisa julgada” da área jurídica: “faz do branco, preto e do preto, branco”. A verdade “verdadeira”, sempre problemática, é outro departamento. Em julgamentos do Tribunal do Júri, por exemplo, a prova, em si, tem valor relativo. Tão importante quanto ela, ou até mais — se há fraqueza na habilidade expositiva da parte contrária — é a capacidade de persuasão, aquilo que em décadas passadas se denominada de “oratória”, técnica hoje um tanto fora de moda porque associada a exageros teatrais, com os olhos cheios de lágrimas. Enganar o ser humano é uma arte muito cultivada. Em tudo: na propaganda, no comércio, na política, nas artes. Quem assiste um show do ilusionista David Copperfield só não acredita nos próprios olhos porque o artista confessa que tudo não passa de truque.

 

Repetindo, que importa é a versão. O fato é irrelevante. Este, o primeiro pensamento que nos vem à mente lendo o algo extenso — para jornais — artigo do escritor Mario Vargas Llosa, no jornal “O Estado de S. Paulo” de 11-11-2007. O romancista e articulista peruano faz uma resenha do ensaio “Missão Cumprida”, do inglês Bartle Bull, referido por Vargas Llosa como um “especialista” em Oriente Médio. Desconfie sempre, leitor, do rótulo “especialista”, uma fórmula verbal usada para que os outros aceitem, com menos crítica, sua opinião. É preciso uma certa coragem para contradizer abertamente um “especialista”.

 

Voltando ao tema principal, Bartle Bull apresenta, com muito jeito — ou astúcia? —, a invasão do Iraque como algo positivo, no final das contas. Na síntese de Vargas Llosa, “Bull deixa de lado a questão de se foi errônea ou acertada a decisão de intervir no Iraque — algo que os historiadores decidirão no futuro — e limita-se a cotejar a situação atual do país e a que reinava quase quatro anos e meio atrás, quando Estados Unidos, Grã-Bretanha e um grupo de países aliados decidiram acabar com a ditadura de Saddam Hussein. Ele sustenta que, hoje em dia, as forças da coalizão se encontram no Iraque com a anuência de um governo democraticamente eleito e com um mandato que a ONU vem renovando a cada ano (…). No seu entendimento, as metas estratégicas da intervenção foram alcançadas. O Iraque não se desintegrou e sua unidade territorial e política parece agora mais firme que outrora…” E por aí vai, elogiando indiretamente, com disfarces de “objetividade”, a política de George W. Bush no Oriente Médio.

 

Não sei o que há por detrás desse artigo de Bartle Bull. Se a sincera busca da verdade, ou vontade de agradar o discutido presidente americano, por tal ou qual motivação. Astúcia há, quando, “deixa de lado a questão” — a mais espinhosa e importante, frise-se — “de se foi errônea ou acertada a decisão de intervir no Iraque — algo que os historiadores decidirão no futuro”.

 

Praticamente, todas as pessoas mais bem informadas em política internacional — sem vínculos interesseiros com o governo Bush —, sabem que este último viu na derrubada de Saddam Hussein — um ditador mal encarado mas não obstante o presidente de um país — uma excelente oportunidade não só para melhorar e tranqüilizar o fornecimento de petróleo para os EUA como também satisfazer um velho rancor contra o governante violento. Este, segundo dizem, até fez planos de matar George Bush, pai. E um bom filho — não se duvida desse elogiável sentimento — dificilmente esquece tal ofensa. Ocorrido o ataque de 11 de setembro de 2001 ocorreu a W. Bush a hipótese alvissareira de ser Saddam o grande mentor do ataque. Com isso, estariam resolvidas várias questões. Entre elas o fornecimento mais tranqüilo — e certamente mais barato — do petróleo; a derrubada e punição exemplar — merecida, se estivesse correta sua desconfiança — do perverso agressor que ousou atacar a América em seu próprio solo, matando civis inocentes e, finalmente, uma oportunidade de obter, pela reação vigorosa ao ataque, apoio popular americano. As pesquisas de opinião não eram, então, muito favoráveis a Bush. Como coroamento dessas motivações particulares para a derrubada de um governo estrangeiro — ação ilegal, em termos de Direito Internacional — Bush colocou, no topo do pudim, qual uma cereja filosófica, a bandeira do saneamento político do Oriente Médio. Deposto Saddam, a democracia — com eleições, etc. — seria implantada no Iraque e se irradiaria, por bom contágio, para toda a região. O remédio contundente da invasão do Iraque não teria, aparentemente, maus efeitos colaterais significativos.

 

Ocorre que, investigada a origem do ataque às Torres Gêmeas e ao Pentágono, não se encontrou prova de que Saddam Hussein estivesse por trás do diabólico plano. Quem planejara os ataques fora Bin Laden, um saudita brigado com a família e que cismou, porque cismou, que o planeta tem que se tornar muçulmano, por bem ou por mal — uma forma de loucura, porém não mansa.

 

Verificado que não era Saddam o culpado pelo ataque de onze de setembro, seria preciso encontrar outro perigo em Saddam. “Já sei!”, sugeriu alguma imaginosa cabeça de “falcão”: — “O ditador perverso está fabricando e armazenando armas atômicas e biológicas”. Acontece que isso também não foi constatado e, depois da invasão nada foi encontrado. Assim, resumindo, a invasão foi fruto da má-fé ou de suspeita precipitação política, estranhável em país dotado de sofisticados órgãos de inteligência. Bush, porém, homem prático, não se deu por achado: “Bem, já que estamos por aqui, não há porque não desenvolver o lado “cereja” — na metáfora do bolo, logo atrás — transformando o Iraque em uma democracia e enforcando o seu perverso presidente”. E assim foi feito.

 

Bartle Bull, porém, astutamente, deixa de lado essa questão ética. Mesmo porque a motivação política da invasão era indefensável. E não adiantou dizer que, comodamente, deixava essa tarefa para os futuros historiadores. Saiu pela tangente, evitando o lado ético da invasão em si.

 

Pouco após a invasão do Iraque escrevi, apenas como franco exercício especulativo — o artigo está em meu site www.franciscopinheirorodrigues.com.br —, que futuros historiadores poderia ver na invasão do Iraque — mesmo violadora do Direito Internacional e da ética — um benefício para a humanidade. Isso porque o Oriente Médio está, há décadas, “travado” — é a melhor palavra — por concepções político-religiosas que atrasam e empobrecem suas populações. Não fosse o petróleo e o gás, algo concedido pela natureza, a miséria da região seria insuportável. E como a conexão política-religião tem uma blindagem invencível e explosiva, por causa da religião — corre risco de vida quem se atreve a desmontá-la — somente uma “chacoalhada” política de grande magnitude teria condições de mudar isso. Essa “chacoalhada” seria a invasão do Iraque, mesmo com fundamentação na quase totalidade mentirosa.

 

De uma certa forma, esse meu exercício especulativo coincide com a visão do artigo de Bartle Bull. A diferença é que reconheço a infração ética do governo Bush, enquanto Bull parece concordar com ela, até elogiá-la.

 

Bull salienta que os Sunitas já começam a aderir ao governo do Iraque e um início de democracia se vislumbra no país invadido. Talvez em cinco ou dez anos, tenhamos uma democracia funcionando, e sem terrorismo. Que assim seja, são nossos votos, porque a população não pode viver indefinidamente no inferno sem fim. O que interessa, no frigir dos ovos, é o bem estar do povo. As piores injustiças podem, com o passar dos tempos, ser esquecidas e até transformadas em passos úteis. As populações precisam viver, trabalhar, progredir e não podem se dar ao luxo de ficar se lamuriando eternamente por injustiças sofridas no passado. No Japão, hoje, se for indagado dos jovens se têm rancor contra os americanos, pelas bombas nucleares lançadas em 1945, eles, em sua maioria, dirão que se trata de “águas passadas”. Dirão isso talvez mascando chicletes, completamente ocidentalizados. O tempo cura as feridas e consolida o tecido social.

 

A história de humanidade nos revela inúmeras invasões, abusos de toda sorte. Isso era rotina. Grupos mais numerosos, ou melhor armados, invadiam áreas vizinhas, matavam os homens e estupravam as filhas e as viúvas. Com o passar dos anos, as viúvas ou as filhas dos assassinados se transformavam em esposas e chegavam, talvez, a amar seus novos maridos. Coisas passadas… Os Vikings, ferozes guerreiros, costumavam cercar, de surpresa, castelos da Inglaterra e Escócia, exigindo a entrega das moças mais bonitas. Desatendidos, incendiavam os castelos e matavam todos os homens. Não restando outra alternativa aos sitiados, as moças eram levadas à Escandinávia e se transformavam em esposas, gerando belos filhos. Há quem sustente que as mulheres escandinavas são especialmente bonitas em razão desse “saque” continuado de genes transmissores da beleza. Nem por isso, entretanto, se sustentará que o arrebatamento e estupro — inicialmente… — das mulheres eram coisas elogiáveis. Mas assim parece pensar, analogicamente, Bartle Bull quando dá a entender que Bush fez a coisa certa ao invadir o Iraque.

 

É claro que, com o tempo, o Iraque entrará nos eixos, com bons reflexos na região. Mas o preço humano e material foi excessivo, com centenas de milhares de mortos iraquianos e alguns milhares de soldados americanos mortos ou aleijados. Com metade do que foi gasto nessa guerra a África teria dado um imenso salto de qualidade, em termos de saúde, educação e produtividade.

 

Se o resultado remoto das violências for encarado de modo benevolente — como sugere Bartle Bull —, Hitler teria sido um grande benfeitor involuntário dos judeus. Isso porque, matando-os em massa, fez com que a opinião pública mundial, chocada, visse com enorme e justa simpatia o desejo deles de ter uma pátria, um chão todo seu. Não fosse o Holocausto — seja qual for o número exato de exterminados — talvez não existisse hoje, na Palestina, o Estado de Israel. Esse Estado possivelmente se localizaria em território argentino, ou em Uganda, áreas que foram oferecidas aos judeus, mas não aceitas porque a religião deles exigia — sempre a religião… — que a terra deles fosse a Palestina. Tenacidade que, por sua vez, gerou ressentimento igualmente tenaz dos palestinos que ali estavam há séculos e foram expulsos gradativamente, sem qualquer consideração. Uma injustiça que hoje é o maior nutriente do terrorismo islâmico.

 

Toda ação ou omissão ( quando se espera uma ação) humana gera conseqüências. Não é de espantar, assim, que com o correr dos tempos as coisas se normalizem no Iraque, e ali se instale a democracia à maneira ocidental, com benefícios irradiados por todo o Oriente Médio.

 

Encerrando, é o caso de se dizer que Bull — que significa “touro” em inglês — deu sua chifrada errada, no pano vermelho, quando deferia também atingir, pelo menos de raspão, o toureiro texano. A “missão cumprida” saiu cara demais, em todos os sentidos.

 

(12-11-2007)

 

 

* Advogado, desembargador aposentado e escritor. É membro do IASP Instituto dos Advogados de São Paulo. Website do autor: www.franciscopinheirorodrigues.com.br

                                                                                         

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Como citar e referenciar este artigo:
RODRIGUES, Francisco César Pinheiro. “Missão cumprida” no Iraque? O que é isso, Bartle Bull?!. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/politica/missao-iraque/ Acesso em: 30 abr. 2024