Política

A agressão israelense em Gaza

A agressão israelense em Gaza

 

 

Francisco Cesar Pinheiro Rodrigues*

 

 

O engenho humano é tal que mesmo do pior dos venenos é possível extrair algum benefício. Uma gota de veneno de cobra vale hoje mais que uma gota de ouro. Os poucos criadores dos mais perigosos ofídios prosperam, pelo que sei, com seus “viveiros”. Fornecem e exportam o precioso líquido aos laboratórios produtores de vacinas antiofídicas. É pena que o veneno humano — muito mais letal porque gerado no cérebro, não nas gengivas — ainda não tenham sido plenamente industrializado. Mas não desesperemos, porque a venenosa e desproporcional agressão na Faixa de Gaza ainda poderá — à revelia da intenção do invasor — dar grande impulso na técnica de solução de conflitos. Um Mal que se transformará em Bem.

 

 

Demonstrado, até desnecessariamente, que o bem pode dormir, latente, no mal — embora a recíproca possa ser verdadeira — passemos aos tristes acontecimentos que se desenrolam na Faixa de Gaza.

 

Não há dúvida que o ataque israelense é injusto, pela enorme desproporção. Para cada soldado israelense morto, cem palestinos transformam-se em cadáveres, sem contar duzentos ou mais feridos. Um massacre. Os tanques invasores — o adjetivo é desnecessário porque os palestinos só dispõem de tanques de lavar roupa; assim mesmo inúteis pela escassez de água, cortada pelos agressores — são de tal forma blindados que é quase impossível matar os soldados que estão dentro deles. Praticamente, “um passeio” israelense, um “piquenique”, como já rotulado na mídia.

 

A suposta justificativa para o massacre está no fato de palestinos dispararem foguetes, que muito mais assustavam que matavam ou mesmo feriam israelenses, em áreas mais próximas da fronteira.

 

Quando a Autoridade Palestina — ala política moderada, contrária ao Hamas — governava a área em questão, ela não conseguia impedir que indivíduos mais exaltados — ou estranhamente induzidos à exaltação… — lançassem foguetes contra Israel. Artefatos de reduzido alcance que faziam mais barulho do que dano corporal. Isso porque é praticamente impossível, a qualquer governo — sem exceção, incluindo Israel — impedir que alguns indivíduos nacionais pratiquem atos de violência. Se em todas as sociedades há crimes e violação de normas legais, não obstante a existência da polícia, por que “culpar” a Autoridade Palestina por não conseguir que todos os palestinos se abstivessem de fustigar Israel? A Autoridade Palestina não teria meios de manter grupos de soldados, a cada cem metros, com a missão de prender ou matar quem se preparasse para lançar foguetes. Políticos israelenses, talvez interessados em expansão territorial, fingiam não entender a dificuldade da Autoridade Palestina em garantir passividade cem por cento de todos os seus cidadãos.

 

Os jornais, dias atrás, noticiaram que dezenas ou centenas de judeus se recusavam a abandonar seus lotes em assentamentos em áreas palestinas, não obstante ordens expressas do governo israelense. Como poderia este, portanto, recriminar a Autoridade Palestina porque não conseguia impedir que alguns cidadãos agissem por conta própria, quando Israel — também ele —, não consegue total acatamento de seus súditos no que se refere a abandonar assentamentos? Conseguiu forçar a remoção — não sei se foi total — porque para Israel essa tarefa é bem mais fácil: os assentamentos são fixos, algo que não acontece com os mutáveis pontos de lançamento de foguetes palestinos.

 

Quando o Hamas, via eleições em Gaza, tomou o lugar da Autoridade Palestina, concluiu, após razoável espera de um acordo definitivo — e talvez com acerto —, que Israel estava apenas interessado em ganhar tempo. Aí perdeu a paciência, fazendo vista grossa para tais lançamentos, ou até mesmo os estimulando, embora sabendo que os foguetes tinham mais finalidade psicológica — incutir medo — do que causar baixas no inimigo. Pelo menos aparentemente, Israel visava apenas evitar a conclusão de um acordo do qual emergisse um Estado Palestino com status jurídico pleno — esse o medo real de Israel. Medo, porque um Estado Palestino formalizado teria como incomodar Israel em tribunais internacionais.

 

Procedentes ou improcedentes os argumentos acima — os críticos discordarão, variando suas opostas opiniões conforme o sobrenome judeu ou árabe do opinante — o fato “cru” é que a paz na Palestina só poderá vir da comunidade internacional. Mais especificamente da área jurídica. Não do Conselho de Segurança — na atual estruturação —, que age com cinismo impressionante, sem disfarce, ao autorizar o poder de veto de qualquer um dos cinco membros permanentes, os “maiorais”. Um resquício de barbárie jurídica que ainda permanece na imponente mas não muito respeitada Organização das Nações Unidas.

 

Talvez com o massacre de Gaza — que pode evoluir para coisa pior, o “Iraque judeu” — o planeta, incluindo aí boa parte das mentes americanas mais lúcidas, pode chegar a conclusão — finalmente! — de que a paz na Palestina só pode vir “de fora”, da comunidade mundial. Não dos envolvidos na guerra insolúvel, cegos pelo ódio e capazes das mais refinadas “chicanas” para atrapalhar a conclusão das negociações. Isso porque parte do governo israelense não pode sequer imaginar uma divisão de Jerusalém. Além disso, essa fração governamental, mais “falcão”, cultiva inconfessáveis desejos de criar uma grande nação judia, “evaporando” a presença de palestinos, encarados apenas como uma pedra no sapato.

 

Da parte de muitos palestinos — os mais aguerridos — eles não “engolem” o fato da invasão de suas terras por gente que de lá se ausentou há quase dois mil anos — expulsa sem culpa dos palestinos — e só conseguiram retornar, com status superior de Estado, porque a comunidade internacional ficou condoída com as vítimas do Holocausto desencadeado por Hitler. Aceitariam, os palestinos, embora contrariados, o retorno dos judeus, se em menor quantidade. Mas não foi isso o que ocorreu. O volume do refluxo da segunda diáspora ficou sem limites. O ingleses, que mantinham o protetorado na Palestina, bem que tentaram impedir o imenso regresso, mas os sionistas não aceitaram restrições quantitativas e recorreram ao terrorismo. Menachem Béguin foi terrorista, contra os ingleses, nesse período. Assim como os judeus não aceitariam, agora, a pecha de ex-terroristas, porque já conseguiram o que queriam, os palestinos do Hamas hoje se consideram apenas “patriotas”, tal como se rotulavam os judeus quando explodiam bombas contra ingleses.

 

 Considerando tudo isso, é quase inacreditável que presidentes e primeiros ministros de nações cultas ainda tenham a vã esperança de conseguir um acordo de paz redigido e cumprido por inimigos atormentados por décadas de lembranças amargas, com o estabelecimento de dois Estados soberanos na Palestina. “Convivendo em harmonia”. É esperança ou inocência demais da comunidade internacional. Cabe a esta dar um passo além, avançar no aperfeiçoamento das regras internacionais de modo a transferir a já doentia pendência para um órgão internacional confiável — “prima facie”, o mais adequado seria o Tribunal Internacional de Justiça, em Haia — que ouviria as partes interessadas e daria a solução a mais sábia possível, inclusive aplicando a equidade. Penso que qualquer solução — mesmo oriunda de um tribunal imparcial —, não será facilmente aceita — como ocorre com qualquer decisão judicial, por mais justa que seja. Não obstante, melhor será uma solução vinda de fora — certamente estabelecendo compensações pecuniárias àqueles que foram expulsos de seus lares, se for o caso — do que esperar que coletividades inimigas se afoguem em sangue e destruição, talvez por sucessivas gerações. E o pior: envolvendo outros países, vizinhos ou distantes, talvez com repercussões nucleares. Cedo ou tarde, armas atômicas estarão mais acessíveis aos países, não sendo hoje facilmente compreendido e aceito, por seu elitismo, que alguns países podem tê-las, mas outros — os “inferiores” — não.

 

A revista “Newsweek” de 15 de deembro de 2008, à pag. 22, traz um artigo de Denis MacShane — “Europe’s Jewich Problem” — mostrando que ventos fantasmagóricos de anti-semitismo percorrem a Europa, mesmo antes do atual massacre de Gaza. Pesquisas sérias, do Pew Institute, mostram que na Alemanha subiu de 20% (2004) para 25% (data da pesquisa) o número de alemães que têm uma visão desfavorável dos judeus. Na França, em quatro anos a visão desfavorável subiu de 11% para 20%. Na Espanha, em 2005, a visão negativa era de 21% e agora (antes da invasão de Gaza) para cada dois espanhóis, um tem antipatia por judeus. Na Inglaterra, país no geral muito aberto, tolerante, o percentual de visão negativa tinha permanecido em 9% mas esse percentual já está abalado por fatos isolados, como a necessidade de jovens judeus precisarem voltar das escolas, no norte de Londres, em ônibus particulares, tendo em vista ataques sofridos em ônibus públicos. Mesmo na Polônia, onde os judeus foram perseguidos com especial virulência, a opinião desfavorável contra judeus subiu de 27% (em 2004) para 36% (data da pesquisa , mas antes da incursão de Gaza).

 

Se uma pesquisa for realizada hoje, após Gaza — com abundância de fotos de crianças palestinas mortas ou feridas —, é se de prever o grau de hostilidade mundial mantida contra o povo judeu. Some-se a mera “visão desfavorável” européia + o ódio visceral do mundo árabe em redor + a provável diminuição da simpatia do futuro governo Obama e do próprio povo americano (não judeu) e o resultado “=” da equação é um claro aviso de que é preciso passar às mãos da comunidade internacional — esqueçam o Conselho de Segurança nos moldes atuais — a solução do conflito palestino. Ninguém é bom juiz em causa própria.

 

Bem que os ingleses quiseram oferecer ao Movimento Sionista, no começo do século passado, uma grande área em Uganda, em um platô de clima mais semelhante ao mediterrâneo, para servir de pátria judia. Uma comissão sionista que visitou o local recusou o oferecimento porque existiam muitas feras na região, além da tribo dos Massais. Além do mais, havia a questão da religião, que exigia o retorno específico a Jerusalém. O problema é que, como insiste a teimosa Física, dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço. “Alguém” tem que sair, por bem ou por mal e “quem pode mais chora menos”. Uma forma primitiva, ignorante, de se conduzir no mundo

 

Essa a origem da tragédia. E os envolvidos, no caso, se já não conseguem pensar com suficiente clareza — artérias meio bloqueadas pela gordura do ódio — a comunidade internacional ainda pode. Por enquanto.

 

Voltando a tese do “veneno” que pode se tornar benéfico, talvez o massacre de Gaza force, ou apresse a prática — infinitamente mais inteligente —, de tirar das mãos dos engalfinhados de olhos vidrados a solução de seus problemas. “Seus”, em termos, considerando uma globalização que não é mais apenas comercial.

 

(em 6-1-09) 

 

 

* Advogado, desembargador aposentado e escritor. É membro do IASP Instituto dos Advogados de São Paulo. Website do autor: http://www.franciscopinheirorodrigues.com.br

 

 

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Como citar e referenciar este artigo:
RODRIGUES, Francisco Cesar Pinheiro. A agressão israelense em Gaza. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/politica/a-agressao-israelense-em-gaza/ Acesso em: 26 jul. 2024