Filosofia do Direito

Uma nova (im)postura para uma filosofia jurídica de brasileiros para brasileiros

Wendell Pereira Barreto Garcez[1]

Resumo: O presente ensaio tem como objetivo apresentar ao leitor uma perspectiva crítica sobre a produção jus-filosófica e científica brasileira. Para isso, inicialmente devemos observar a formação e desenvolvimento do pensamento jurídico brasileiro, referido no texto como “tradição jurídica brasileira”. Posteriormente é apresentada a proposta do ensaio que consiste em uma nova postura por parte do pesquisador, a fim de que a ciência brasileira seja desenvolvida de forma a levar em consideração as características de nossa população, consequentemente, gozando de praticidade de aplicabilidade. A doutrina crítica de Antonio Carlos Wolkmer foi utilizada como o principal referêncial teórico da pesquisa.

Palavras-Chave: Pensamento crítico; Impostura; Jusfilosofia.

Abstract: This paper has as purpose introduce the reader a new perspective about law’s philosophy and law’s science brazilian research.    Initially, we shall observe the brazilian legal doctrine evolution, referenced as “brazilian legal tradition”. Afterwards, will be submitted the paper proposal. Consist of a new attitude by the law reseacher, in order to produce pratical theories. As main theoretical referencial were chosen Antonio Carlos Wolkmer critical lessons.

Key-words: Critical reflection; critical atitude; Law’s philosophy.

Desenvolvimento

Com objetivo de produzir uma pesquisa direcionada ao Direito brasileiro, devemos perceber que a tradição jurídica brasileira reflete ainda uma significativa influência de um “globalismo localizado”; na melhor acepção de Boaventura de Sousa Santos: de um “impacto específico de práticas transnacionais nas condições locais”[2]; ainda que também nas práticas jurídicas, adiciono.

Essa influência estrangeira, principalmente europeia e norte-americana, direciona à tradição jurídica brasileira ensinamentos diversos quanto ao estudo do Direito e suas implicações, entretanto, nem sempre conseguem apresentar soluções coerentes à nossa realidade, não sendo sempre possível sua aplicação em sua integralidade.

Consideremos que o Brasil, como nação, apresenta uma diversidade cultural ímpar, por vezes tão heterogênea que ao pôr em paralelo culturas sulistas e nortistas percebemos que mesmo uma Ciência e Filosofia do Direito construída “por brasileiros para brasileiros” careceria de especial atenção para que, na sua elaboração, apresentasse a devida representação, a possibilidade participativa e a decorrente deliberação política quanto a suas consequências jurídicas a todos.

Reflete-se então sobre a imperfeição e dificuldade da aplicação de teorias construídas em âmbitos sociais estrangeiros e, posteriormente, importadas pela e para a tradição jurídica brasileira.

Alerta-se que, com tal reflexão, não se intenciona descartar imediatamente quaisquer lições estrangeiras sobre a Filosofia e a Teoria do Direito, ao contrário, devemos estudá-las e compreendê-las, porém, sem nunca abster, da formulação do pensamento filosófico, as características reais em que a população brasileira se encontra.

O estudo da teoria sem performatividade corre o risco de se transmutar em imodéstia acadêmica.

Em concomitância, possuímos ainda a tradição jurídica brasileira como resultado de um processo colonizatório europeu, principalmente português, em que, além do destaque ao etnocídio da multiculturalidade indígena nativa, e consequente afastamento de suas experiências e lições, também houve o processo de integralização da cultura africana, forçadamente trazida ao Brasil. Testemunha-se a formação de uma tradição jurídica imanente à violência institucionalizada. Testemunha-se a formação de uma tradição jurídica marcada por um singular alinhamento de um ideal “formalista-liberal” e um “conservadorismo de práticas burocrático-patrimonialistas”[3].

Por fim, ressalta-se a tradição jurídica brasileira formada no último século – ainda que com perfil conservador –, que surgiu como “alternativa crítica ao jusnaturalismo metafísico e às variantes dogmáticas do positivismo cientificista”[4].

Nas últimas décadas, esta tradição apresentou uma visão formalista do Direito em um sentido mais dogmático, contudo, identifica-se que esta forma de perceber o Direito não mais consegue atender às necessidades e reivindicações sociais, decorrentes de uma evolução das instituições políticas da sociedade brasileira[5].

As necessidades e reivindicações da sociedade não mais são limitadas aos desejos econômicos de uma elite, mas também dizem respeito à crise democrática decorrente da importação, intencional ou não, de uma democracia liberal europeia pós-Segunda Guerra Mundial, que, apesar de propagar princípios respeitosos aos Direitos Humanos, efeito da culpa e horrores da guerra, são, em decorrência da própria política liberal, omissos quanto à preocupação em assegurar a participação política de todos por meio de uma política pública social deliberativa.

Todavia, a existência de um movimento tradicionalista jurídico brasileiro não significa necessariamente que não existam movimentos de pensamento crítico no Brasil.

Ao falarmos de um movimento crítico sustentamos a existência de correntes de pensamentos que exercem a reflexão e questionamento quanto à normatividade e a admissão de outras práticas jurídicas diferenciadas[6].

Porém, ainda que destacável, não podemos falar em um movimento organizado, ou unificado de crítica ao paradigma jurídico brasileiro. Os movimentos críticos apresentam uma falta de unicidade em suas projeções, com ideologias variantes, por vezes conflitantes. Carlos Wolkmer[7] exemplifica alguns movimentos críticos jurídicos: movimentos sociais-democratas, liberais-democratas, sistêmicos abertos, niilitas, etc.

Apesar de não podermos afirmar a existência de uma Escola crítica em razão da falta de unicidade de pensamento, podemos afirmar a existência de uma tendência no surgimento deste tipo de pensamento crítico, destacando assim quatro principais vertentes de epistemologia jurídica[8]: a) crítica jurídica de perspectiva sistêmico-estrutural; b) crítica jurídica da perspectiva dialética; c) crítica jurídica de perspectiva semiológica; d) crítica jurídica de perspectiva psicanalítica.

Dessa maneira, considerando a tradição jurídica brasileira e sua relação com os movimentos jurídicos críticos, propõe-se para esta pesquisa uma postura um tanto desajustada, uma postura diferente ao pensamento jurídico-filosófico tradicional.

Não raramente, exige-se da Ciência do Direito evolução e adaptação. Nos referimos ao rompimento com dogmas e pré-conceitos[9]. O desafio de se reinventar é constante. Não diferentemente deve ser a Filosofia do Direito, havendo a necessidade de constante adaptação e coerência em suas mudanças.

Porém, não há mudança sem rebeldia, não há pensamento crítico sem crítica e não podemos questionar, muito menos evoluir, sem a destruição do culto de ideias. Neste argumento não poderia existir posicionamento diferente.

Nesta perspectiva não há espaço para o culto de ideias ou de autores, todos estão sujeitos à crítica, principalmente esta própria perspectiva, em sua proposta de exploração argumentativa e seus possíveis defeitos e problemas[10]. Por exemplo: são realizadas críticas ao sistema jurídico positivista(?) brasileiro quando colocado em paralelo com sistemas pluralistas latinos, porém, ao mesmo tempo, como destaca Wokmer, devemos observar a possibilidade da utilização distorcida da Teoria Pluralista Jurídica como forma de aumentar a desigualdade social, perpetuando um projeto de conservadorismo político, o que, verdadeiramente, demonstra ideais antidemocráticos. Nesta crítica, o autor destaca a possibilidade de utilização distorcida de um sistema pluralista por uma ideologia liberal. Tal aplicação é contrária à proposta representativa e inclusiva do pluralismo jurídico apresentado[11].

Reflete-se sobre como poderíamos nos opor a uma tradição que por vezes intimida e impede o florescimento das diversas sementes de ideias plantadas nas mais diversas mentes de juristas, por assim serem precocemente consideradas como “radicais”, “inconsequentes” ou até mesmo “incompatíveis”; sobretudo, ainda, reflete-se também como fazer isso sem nos desconectar das características que tornam o estudo do Direito e da Filosofia do Direito especiais dentro de suas próprias naturezas científicas. Como enfrentar uma postura jurídico-filosófica tradicional? A resposta reside no fato que devemos assumir uma nova postura.

Para tanto, neste sentido, a melhor postura jurídico-filosófica a ser assumida é a impostura jurídico-filosófica[12]. É se desencaixar do ilimitado quebra-cabeça jurídico para que possamos observá-lo sem a necessidade de formalização e padronização. Observá-lo não mais com amarras limitando a exploração filosófica, existindo assim uma impostura que reflita a possibilidade de atuação livre.

A impostura jurídico-filosófica está para a postura jurídico-filosófica tradicional como aquele que olha para a repressão social tradicional fundamentada no puro moralismo e contra ela se opõe, não por considerar o comportamento errado ou certo, mas sim por não aceitar a repressão justificada pela mera repressão, por não aceitar uma tradição social de violência banal, sem ao menos a utilização de um juízo racional.

Esta impostura propõe a realização de um diálogo coerente entre as correntes doutrinárias, com a vantagem de não ser necessariamente vinculada a certas premissas que compõem a própria ideia. É, em certo sentido, a interação teórica e filosófica onde podemos conciliar e explorar o que as diversas teorias e entendimentos tem de melhor a oferecer, com a independência de poder negar ou proclamar suas ideias sem repressões ou desacolhimentos decorrentes de uma obrigação em seguir uma tradição ou padrão de pensamento.

Todavia, devemos realizá-lo sem nunca desrespeitar ou corromper os ideais construidos pelas teorias escolhidas para serem estudadas. Não há espaço para a desonestidade intelectual na impostura jurídico-filosófica. Seu caráter desobediente à tradição não se confunde com tumulto ou mixórdia. Que fique claro, para que não ocorram prejuízos, que tal impostura jurídico-filosófica não implica necessariamente em uma insegura relativização científica, ou ainda a liberdade para que, em uma tentativa pífia, afirme-se refutar grandes reflexões e conclusões passadas. Longe disso, a impostura jurídico-filosófica diz respeito à atuação do pesquisador para o futuro.

A impostura jurídica proposta como posicionamento em face à tradição jurídica brasileira é uma postura revolucionária, rebelde, e se posiciona em divergência a um conservadorismo técnico-formalista na esfera jurídica, que, por vezes, impede a conciliação e o diálogo entre as mais diversas possibilidades de projetos políticos-jurídicos que possibilitem o reconhecimento e valorização de novos sujeitos sociais e instituições normativas.

Sua preocupação é atinente ao pensamento jurídico-filosófico como meio de libertação, é imanente à ousadia de propor aquilo que não é proposto apenas pelo assustador medo da reprovação coletiva irracionalmente fundamentada em uma tradição jurídica conservadora.

Também, não há que se falar em impostura jurídico-filosófica sem falarmos de performatividade desta “impostura”. Por se opor ao tecnicismo-formalista no Direito esta postura se propõe a não estar fixada apenas em estatutos teóricos, sem nunca considerar a realidade, ao contrário, deve expressar uma real preocupação aos detalhes e necessidades sociais. A característica prática do estudo e aplicabilidade plausível devem ser fatores considerados pela impostura jurídico-filosófica quando for adotada pelo jusfilósofo enquanto pesquisador.

Por vezes, podemos confundir a impostura jurídico-filosófica como se esta fosse uma teoria, todavia, ela não apresenta um conjunto de regras sistematizadas, apesar de ainda aplicadas a uma área específica de estudo, portanto, não se trata de uma teoria nem poderia ser, pois esta não é sua proposta; nem poderia ser um estatuto metodológico, pois não determina um agrupamento de orientações destinados à técnicas e procedimentos de pesquisa.

Trata-se, em sua própria significação simples, de uma postura por parte do jusfilósofo enquanto pesquisador. Mesmo que esta postura trate-se de uma impostura, de uma insurreição contra as amarras da tradição, deve ser tida como uma cortesia, um ato gentil que estende a mão às novas possibilidades existentes decorrentes de uma maior tolerância ao estudo sério do Direito e da Filosofia do Direito. É, de fato, um “provir”, uma descendência comportamental perceptível.

Assumir a impostura é promover as consequências de um posicionamento elegante e harmonioso do jusfilósofo à novidade e à possibilidade.



[1]Especialista em Filosofia e Teoria do Direito pela PUC-Minas. Especializando em Gestão Social (Políticas Públicas, Redes e Defesa de Direitos) pela Anhanguera. Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Amazonas, com habilitação em Direito Internacional. Advogado.

[2]SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de Direitos Humanos. Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 48. Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Coimbra. 1997 (p. 16-17).

[3]Antonio C. Wolkmer, Historia do Direito no Brasil, 2003, p. 105.

[4] Op. cit., p. 133

[5] Op. cit., p. 135

[6]Antonio C. Wolkmer, Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico, 2015, p. 117.

[7] Op. cit., p. 121.

[8] Op. cit., p. 128-170.

[9]Eduardo C. B. Bittar, Introdução ao Estudo do Direito: humanismo, democracia e justiça, 2019, p. 34.

[10]Id., Metodologia da Pesquisa Científica: Teoria e Prática da monografia para os cursos de Direito, 2019, p. 186.

[11]Antonio C. Wolkmer, Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico, 2015, p. 233.

[12]É importante evidenciar que a ideia de uma impostura puramente filosófica não é inédita, já sendo apresentada nos textos de Rafael Trindade e Rafael Lauro em seu projeto denominado “Razão Inadequada”, e desenvolvida no podcast denominado “Imposturas Filosóficas”. Assim, a perspectiva apresentada aqui se trata de uma respeitosa releitura própria da ideia aplicada ao estudo jurídico-filosófico com inspiração nas lições do professores referidos; sobre isso v. < https://razaoinadequada.com/mais/imposturas-filosoficas/>.

Como citar e referenciar este artigo:
GARCEZ, Wendell Pereira Barreto. Uma nova (im)postura para uma filosofia jurídica de brasileiros para brasileiros. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2020. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/filosofiadodireito/uma-nova-impostura-para-uma-filosofia-juridica-de-brasileiros-para-brasileiros/ Acesso em: 12 nov. 2024