O Ideal de Justiça e Sua Vida
Ives Gandra da Silva Martins*
John Rawls, que se tornou célebre na formulação de sua teoria da justiça como equidade – embora sem perfilar as posturas intuicista radical de Sidwick ou naturalista de Benthan – admite que uma solução utilitarista para a definição de justiça seria a de que “uma instituição ou uma ação são justas, desde que realizem o maior saldo líquido de satisfação” para seus parceiros, sendo estes os integradores de uma estrutura básica, a partir da posição original (p. 126, Justiça e Democracia, Ed. Martins Fontes, 2002).
John Rawls, como todos aqueles que procuraram a concepção do Estado Ideal, a partir de uma sociedade que busca um modelo próprio e mais eficiente para a convergência das divergências (como fizeram os filósofos Platão, Aristóteles, Campanella, Thomas More, Rousseau, Kant, Hegel, Marx, Benthan e até mesmo os mais práticos, como Locke e Montesquieu), alicerçou-se no princípio de que, em algum momento, os componentes da sociedade conformariam esse modelo, através do povo, de seus pensadores ou de autênticos líderes que os governem.
Alguns desses pensadores, todavia, não se iludiram, como Platão, Campanella e More, pois criaram uma sociedade de homens ideais. Outros, todavia, como Rosseau, Kant, Hegel, Marx e o próprio Rawls, utilizando-se das aproximações, por eles tidas por possíveis, entre o ideal desejado e o papel que, na sua concepção, a sociedade poderia desempenhar, formularam modelos integrativos. Não é despiciendo lembrar que, nada obstante as palavras chaves utilizadas por Rawls, como “estrutura básica”, “posição original”, “parceiros”, “justiça”, “equidade” etc., sua percepção da sociedade geradora do Estado justo continua sendo utópica, apesar das inúmeras variáveis que apresenta, em seus escritos.
Cada vez mais, convenço-me de que a sociedade tem pouca participação na definição do Estado e da Justiça, sendo aquele apenas uma “longa manus” da vontade de seus detentores, e esta, conformada, no interesse maior, dos que governam. A sociedade não tem poder e quando, muitas vezes, age, dando a impressão da independência de seus membros, não percebe o nível de manipulação que sobre ela exercem as lideranças, desejosas exclusivamente de poder. Há, evidentemente, exceções, representadas por verdadeiros estadistas, que atuam visando, exclusivamente, o bem estar da sociedade. A história, todavia, é um monótono repetir de situações que revelam a instrumentalização da sociedade, por parte de quem governa, destituída, que resta, de anticorpos e de consciência da importância de seu papel, na conformação do Estado.
Em outras palavras, o Estado é aquilo que os governantes definem ou modificam, segundo sua pessoal estratégia para manter o poder, adaptando as leis – como dizia Hart, em seu livro “The concept of law” – mais a seus interesses, que aqueles da sociedade, mesmo quando falam em nome do povo.
E o Poder Judiciário termina, como legislador negativo, nos diversos países, tendo que se conformar –salvo hipóteses de manifestas inconstitucionalidades, em regimes de democracia real e não apenas formal-, ao perfil jurídico do governo, com o que, não poucas vezes, Cícero tinha razão, ao dizer que: “summum jus, summa injuria”.
Tais considrações, eu as faço, no momento em que uma onda populista começa a tomar conta dos países vizinhos, com indiscutíveis violências à ordem jurídica e com simpática tolerância de nossos governantes. Muito embora a democracia brasileira tenha mecanismos de defesa que o primitivismo democrático boliviano, venezuelano ou equatoriano não demonstraram, até o presente, no campo do direito, vivemos, ainda, inflação legislativa de tal natureza, que provoca acúmulo monumental de questões nos Tribunais. Estes, em posição defensiva, tendem a se proteger, substituindo a justiça real, pela justiça formal, com o que, principalmente em matéria de direito público, as grandes questões são preteridas, no tempo, prevalecendo o fato consumado sobre o direito.
Assim é que questões, como sigilo bancário, norma anti-elisão ou imunidades do terceiro setor, nada obstante terem sido suscitadas em sede de controle concentrado e com pedido de medida cautelar, arrastam-se, desde o início do século, sem sinalização de breve julgamento. Assim, não poucas vezes, o direito mal forjado, torna-se, pelo fato de não ser atalhado pelo Poder Judiciário, tão logo chamado a pronunciar-se, intocável, para descrédito da lei suprema e das instituições.
Cada vez mais me convenço de que nós, que especulamos com teorias sobre poder, Estado e Direito, influenciamos muito pouco os governantes que fazem o que desejam, tendo como limite, não a Constituição – que é por eles modificada freqüentemente – mas apenas a força de outros, que também desejam o poder.
Nada obstante a evolução do ser humano, a teoria da justiça assumiu um aspecto pragmático: justiça é o que os detentores do poder, que têm a força, determinam que seja.
* Professor Emérito das Universidade Mackenzie e UNIFMU e da Escola de Comando e Estado maior do Exército. Presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, da Academia Paulista de Letras e do Centro de Extensão Universitária – CEU. Site: http://www.gandramartins.adv.br
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