Filosofia do Direito

Futuro da democracia

Uma proposta de debate entre o Critical Legal Studies e os desafios que o Liberalismo Antidemocrático e a Democracia Iliberal apresentam à Democracia Liberal

Mauro Fernando dos Santos[1]

RESUMO

O presente trabalho pretende demonstrar/descrever que as ambições trazidas pelos Critical Legal Studies podem contribuir como meio de resistência intelectual a crise de legitimidade da democracia no que tange à aplicação e interpretação do direito. A crise democrática se caracteriza na medida em que a vontade da maioria tenta reduzir direitos individuais característicos do liberalismo. Em que pese o vigor do CLS ter se reduzido com o tempo essa corrente interpretativa traz não obstante insights estimulantes para debate no ambiente onde a democracia dissocia-se da proteção a direitos definidores do liberalismo clássico e que pareciam siameses a ela. Ainda que a CLS defenda que vige um sistema de exploração das classes étnicas, econômicas e sociais menos favorecidas por grupos mais privilegiados e que os valores liberais apenas camuflam a relação de dominação ao conceber o papel ativo do julgador na aplicação da norma jurídica e explicitar a adoção de seu papel ideológico apresentamos as justificativas teóricas para o projeto emancipatório proposto pelo CLS.

O FUTURO DA DEMOCRACIA

A democracia está em risco ou perdeu seu vigor? Essas perguntas poderiam parecer anacrônicas em fins do século XX. Pelo menos se referissem ao regime onde do império da lei, haja a possibilidade real de alteridade de governo com respeito a regras previamente definidas sobre eleições, garantias mínimas de liberdade aos cidadãos e um razoável parâmetro de direitos assegurados frente ao próprio Estado.

Havia assim razões para acreditar que essa síntese entre democracia e valores liberais clássicos, acrescidos de variadas doses de direitos de segunda e terceira geração, apresentava-se como paradigma irretorquível de um porvir para o século XXI.

Essa foi a conclusão elaborada por FUKUYAMA[2] que na esteira dos acontecimentos que sucederam à queda do Muro de Berlin afirmou que a falência de ideias sérias tornaria insustentáveis regimes fortes tanto de esquerda quanto de direita.

Em regimes de direita sempre carregando um déficit de legitimidade que levaria a seu estiolamento nas hipóteses de fracasso ou mesmo de sucesso na condução de medidas econômicas ou de restauração de ordem que viesse a implementar. Sendo óbvio o porquê do questionamento em ocorrendo o fracasso de suas medidas, o questionamento sobre a legitimidade decorreria na hipótese contrária pela melhoria dos padrões culturais e econômicos da sociedade que gradualmente passa a não mais tolerar regimes fechados. Já em regimes de esquerda como demonstra o mesmo autor a falência dá-se após a superação de fases do terror havendo uma degeneração de controles sobre a sociedade, em especial o sistema de crenças da inevitalidade do sistema. Assim ocorreu nas sociedades pós-totalitárias que se converteram em democracias ou em simples regimes autoritários combinados com razoável liberdade econômica.

O sucesso das democracias pode ser contrastado com o período anterior à grande guerra mundial quando era exceção, sendo a maioria governos autoritários e fascistas, onde os trens chegavam na hora como metáfora da ordem instalada, ou mesmo governos totalitários com hegemonia de classe ou racial. Na segunda metade do séc. XX há um nítido incremento do número de democracias até chegar a hegemonia no final do século.

Não haveria, segundo esse autor, no sistema liberal-democrático uma ausência de contradições internas que lhe socavassem a tal ponto que o próprio sistema não possa solucioná-lo internamente, que poderiam levá-lo ao colapso em decorrência de uma crise de legitimidade. Adverte que ainda que existam problemas ainda que potencialmente graves esses não se confundem com verdadeiras contradições sistêmicas, e que mesmo existindo opções não democráticas acessíveis os povos tomaram a iniciativa de lutar por direitos democráticos ainda que contrariamente a seus interesses econômicos, o que provaria que o fenômeno da democratização não se compreende exclusivamente pelo viés da economia, de forma que se constata que para o surgimento da democracia urge que haja democratas, isto é, “um Homem especificamente Democrático, que deseja e molda a democracia ao mesmo tempo que é moldado por ela” [3].      

Todavia uma cada vez maior ascensão de partidos que possuem como estratégia a redução de liberdades e direitos que se imaginavam amálgamas a regimes democráticos. Partidos que chegaram ao poder em diversos países com propósitos variados, mas que buscaram a concentração de poderes a ponto de reduzir a legitimidade de instituições liberais, comprometendo direitos e liberdades individuais. Percebe-se a inusitada dissonância entre a democracia e o liberalismo. Assiste-se assim na atualidade nas palavras de MOUNK o surgimento de uma democracia iliberal e como sua contraparte um liberalismo antidemocrático[4].

Explicação que se percebe hoje tanto em países recentemente convertidos à democracia quanto em países com democracia consolidada a vontade popular manifestada em eleições democráticas pendendo para partidos ou pessoas de vieses iliberais, ao passo que nesse mesmo sistema prescinde-se da vontade popular para a proteção de direitos individuais.

Manifestações ao redor do mundo de rejeição de partidos tradicionais e o surgimento à esquerda e à direita de agrupamentos que tem em comum a oposição a políticas públicas pouco sintonizadas com anseios reais da população são tachadas como populistas. A significar todos aqueles que não comungam os valores da elite intelectual e administrativa esses grupos ao não se sentirem representados por partidos tradicionais e tecnocratas buscam em líderes carismáticos a satisfação de seus anseios.

O temor de um espectro de um passado não tão distante quando líderes carismáticos amparados em pequenos grupos organizados acolheram discursos simplistas para problemas complexos, mas que encontraram adeptos entusiasmados e uma vasta camada da população silenciosa ou anestesiada não deve ser desprezado. Regimes fechados e militarizados apoiados por movimentos de massa, com fortes doses de nacionalismo, estatismo das principais atividades econômicas ou estratégicas segundo suas convicções, e que procura manter sob domínio governamental a produção ou controle da economia e de qualquer outra manifestação cultural ou popular. Historicamente serviu de inspiração a regimes semelhantes em vários países da Europa ou como método de tomada de poder para o nazismo, sendo emulado fortemente na América do Sul por Vargas e Peron.

A questão, no entanto, é diferente hoje eis que ao contrário do período do fascismo não se apresenta no momento qualquer alternativa ideológica à democracia. Além do mais sempre ecoa o célebre discurso que entoa que “a democracia é a pior forma de governo que existe, com a exceção de todas as outras formas experimentadas de tempos em tempos”. O problema é que o populismo ao dar voz ao medo de parte considerável da população mostra-se eventualmente iliberal, porém nunca antidemocrático.   Assim, a democracia apresenta-se de forma suficientemente maleável para conviver com regimes iliberais. Sempre paira no ar como eterna desconfiança a experiência chilena onde houve uma justaposição entre um regime antidemocrático e princípios econômicos liberais. E o sucesso inegável deste último não levou como esperavam aqueles que aceitaram trabalhar para um regime que se não desprezavam pelo menos punham sérias restrições.    

Embora seja precoce aquilatar se efetivamente esse fenômeno aponta para a vulnerabilidade da democracia liberal como sustenta o autor o certo é que efetivamente manifestações de populismo minam direitos liberais clássicos como liberdade de expressão.

O Estado ainda que se pretenda como autárquico incorpora limitações externas circunscrevendo-se aos limites da soberania até aqueles decorrentes da aceitação do Estado Democrático de Direito iniciados no Estado liberal, passando pelo estado democrático. Neste o poder soberano absoluto, traço distintivo da soberania interna, é banido, sendo limitada a vontade do cidadão ou de sua maioria, curvando-lhe à lei constitucional e aos direitos fundamentais[5].    

A ideia de autolimitação do poder decorre inicialmente da própria natureza das coisas que, salvo tratando-se de entes transcendentes, não concebe qualquer ente ilimitado no espaço ou infinito no tempo. No plano político esse limite se esgota na consecução de sua finalidade projetada na sua própria formação, dele não devendo se apartar sob pena de tornar-se ilegítimo, ou como melhor sintetiza Telles Jr. “o fundamento da autoridade de um Governo reside na sua fidelidade à ideia que ele deve realizar”. E prossegue o mestre:

“Sendo legítimo o órgão do Poder, o Governo não é arbitrário, não é livre para impor ordenações quaisquer, uma vez que se constitui instrumento de uma determinada ideia de ordem social – ideia que não vem dele, mas da própria Nação, do próprio Povo.” [6]

Por sua vez, a obediência à lei decorre da convicção generalizada de que se origina de um Governo legítimo, o qual por sua vez é legitimado pelo consentimento dos governados, que escolhem obedecer a normas por ele produzidas, na medida em que foram selecionadas entre aquelas que são necessárias para os fins sociais[7].

Na medida em que não mais encontra fundamento em bases teológicas, e por afastarmos a priori a violência como fundamento de qualquer governo representativo, surge o consenso como único fundamento de governos legítimos. A legitimidade democrática surge assim como justificativa para a transferência de direitos até então inalienáveis como a representação política

CONSENSO E CONFLITO NA SOCIEDADE DEMOCRÁTICA

Convém aqui ponderar que consenso na sociedade democrática não significa ausência de conflitos, mas a constatação de que em uma sociedade de massas o consenso deve ser conquistado mediante mecanismos legais. Segundo Faria esses mecanismos, essenciais para o governo de uma sociedade de massas, devem ser capazes de simultaneamente manter a crença e a lealdade em torno das instituições políticas e da ordem jurídica em vigor e satisfazer, efetivamente, as necessidade de grande parte da população e dos grupos mais fortes nela abrangidos aptos a obter de forma mais violenta um poder de barganha superior ao seu peso eleitoral[8].    

Essa estratégia segundo Faria levou ao êxito da ininterrupta experiência democrática americana, ao contrário da européia continental, eis que os grandes confrontos políticos, não se converteram em ruptura da lealdade às instituições, assumindo a forma de disputas constitucionais[9].

A obtenção de consenso não significa comungar ao final de mesmos valores, mas a admissão de acordo sobre a maneira de discordar. Em conclusão semelhante e fundado nessas premissas Bobbio chega a apresentar uma definição mínima de democracia, contrapondo àquela de autocracia, sendo caracterizada como um conjunto de regras fundamentais ou primarias “que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos”[10].

Semelhante definição defendia por Faria que relaciona a consolidação da sociedade burguesa e da lógica do pensamento político ocidental como resultado da associação entre a noção de legitimidade e de democracia, na medida em que esta seria “o regime dos sistemas abertos, ou seja, aqueles que procuram garantir a manutenção das regras do jogo, a sobrevivência dos textos constitucionais, a impessoalidade e o rodízio de poder, e a ação dos diferentes grupos sociais, sem a eliminação das partes descontentes e da maneira menos coercitiva possível[11].

Para o mestre de Turim em se tratando de decisões coletivas e vinculantes para os demais membros do grupo impõem-se que sejam deliberadas ou decididas pelo maior número possível de membros e que sejam observadas regras de procedimento como a da maioria. Mas fundamentalmente, um conceito mínimo de democracia deve assegurar a garantia de direitos mínimos de liberdade, de opinião, de expressão, de reunião, de associação, ou seja, deve haver reconhecimento de direitos invioláveis do indivíduo.

Como conseqüência da necessidade de reconhecimento desses direitos e garantias surge a recíproca correlação entre o estado liberal e o estado democrático, na medida em que a democracia garante a existência e persistência das liberdades fundamentais e estas são necessárias para o exercício do poder democrático. E conclui:

“Em outras palavras é pouco provável que um estado não liberal possa assegurar um correto funcionamento da democracia, e de outra parte é pouco provável que um estado não democrático seja capaz de garantir as liberdades fundamentais. A prova histórica desta interdependência está no fato de que estado liberal e estado democrático, quando caem, caem juntos.”[12]

A repulsa à violência e a existência de mecanismos ou procedimentos institucionais de decisão fundados em tradições garantem a legitimidade democrática a qual permite que seja possível livrar-se de um governo sem derramamento de sangue como sustenta Karl Popper como marco definidor da democracia, ao mesmo tempo o liberalismo sustenta-se “não em um consenso de convicções, mas na fertilização mútua das opiniões e seu conseqüente desenvolvimento.”[13] Fatos que mostram mais uma vez a estreita relação entre democracia e liberalismo. Para BOBBIO o Estado Liberal e o Estado Democrático são interdependentes: é necessário assegurar-se certas liberdades para o exercício do poder democrático, assim como este é necessário para garantir a existência e continuidade das liberdades fundamentais. E vaticina que costumam cair juntos o Estado Liberal e o Estado Democrático[14].

Pode-se sempre objetar que dado que a liberdade individual é considerada valor fundamental para o liberalismo clássico, o direito de resistência é inerente ao Estado Liberal. No contratualismo de LOCKE o soberano só detém os direitos que foram repassados pelos súditos para o fim de proteção da propriedade. Sendo esta compreensiva da liberdade, vida e riqueza, embora o uso mais extenso por Locke no Segundo Tratado sobre o Governo seja o conceito restrito de propriedade. Sendo assim cabível será a legítima resistência na hipótese de usurpação por tiranos ou déspotas que descuram o encargo de utilizar o poder para preservar os membros daquela sociedade em suas vidas, liberdades e posses[15].

Porém rebrota a questão de como manifestar o direito de resistência contra atentados aos direitos individuais quando essa sombra advém de governos majoritariamente eleitos para esse fim ou que não esconderam seus propósitos e foram mesmo muito claros que esse seria seu objetivo?

A resposta pode está nas instituições que suavizam o poder democrático. Entretanto MOUNK recorda que instituições supostamente democráticas possuem raízes antidemocráticas. Se a origem da democracia parlamentar inglesa fora forjada da luta entre o rei e o parlamento sem qualquer alusão inicial àquela, o mesmo ocorrera na América com a eleição de representantes para traduzir e filtrar a opinião popular em políticas públicas. Assim, segundo o mesmo autor, instituições originalmente aristocráticas passaram a ser vistas como exemplos de exercício da democracia[16].

A parte essa constatação histórica, que demonstra a plasticidade das instituições com todos os riscos e oportunidades possíveis, a moderna democracia encontra-se cada vez mais desafiadas. Quer por desafios internos, como regulamentações técnicas e de política monetária, quer por problemas externos e superiores ao alcance do Estado-nação, como problemas ambientais e migratórios. São desafios que exigem extensa burocracia e cada vez mais um aparato de especialistas que minam o poder legislativo.

O mesmo autor lembra que não se trata mais de uma oposição elite/povo como temia-se anteriormente, mas surgiram aos poucos como forma de resposta a desafios reais enfrentados pelas políticas públicas. O resultado foi que além da perda do poder dos representantes do povo, erodiu-se a democracia quando cada vez mais tecnocratas, imunes à contestação popular ao contrário dos legisladores, tornaram-se responsáveis pela condução de seguimentos-chave da Administração. Ocorre um distanciamento entre o povo/cidadão/eleitor e o legislador, conseqüentemente com a produção legislativa, ao mesmo tempo em que este perde seu poder para tribunais, burocracia, bancos centrais e organizações e tratados internacionais [17].

O paradoxal é que são exatamente essas instituições que mesmo sem legitimidade popular garantem a preservação e criação de direitos. Esse liberalismo antidemocrático carregaria, porém uma fragilidade de berço na medida em que protege direito prescindindo da vontade popular o que em última instância pode exigir a força para cumprir sua missão.

Como acima expusemos esse aparato tecnocrático na ausência de representatividade do parlamento tem o poder de suavizar o poder democrático. Tanto de uma forma que reputamos positiva, assumindo que os valores liberais representam uma evolução da sociedade e constituem o cerne de um pacto civilizatório, para reprimir excessos decorrentes de propostas ou medidas que atentem contra direitos individuais; assim como de uma forma negativa ao privilegiar políticas liberais ou princípios que não representem de fato direitos individuais, mas princípios não testados e gerados da mente fértil de aprendizes de feiticeiros.

Nesse desiderato é possível às cortes judiciais, em seu papel de controle de constitucionalidade, assumir um papel contramajoritário ao invalidar normas e atos dos demais poderes em defesa de direitos fundamentais e proteção de regras do jogo democrático[18]. Esse papel assumido pelo Judiciário, ainda que não eleito de forma popular, mostra-se conforme a antiga tradição de supremacia da Constituição.

Em que pese esse papel de controle de constitucionalidade e assumir-se como fiel da balança e como terceiro desinteressado que de forma racional e dotado de objetividade enfrenta questões técnicas, mesmo que lide com conceitos jurídicos indeterminados e antinomias, e tenha ainda de posicionar-se sobre temas de grandes controvérsias, onde aparentemente não existe uma resposta clara das normas de forma a exigir exerça a função de criação legislativa. Recebe ainda assim crítica do movimento Critical Legal Studies por não assumir que essa atividade é carregada de ideologia.

Céticos com a confiança excessiva na modernidade como era da racionalidade e inevitabilidade dos direitos humanos os CSL contestam as principais tradições do saber jurídico. Com claro viés esquerdista critica o positivismo como sendo legitimador de um status quo capitalista que se ampara em um discurso de coerência como se constituído de regras e princípios justos, mas que na verdade escamoteiam as relações assimétricas de raça, gênero e econômica. Seu ceticismo e sua crítica à formação dos juristas como perpetuador dessas relações são sintetizadas por MORRISON.

Os adeptos do CLS eram céticos acerca da própria base do liberalismo moderno e acreditavam que boa parte da prática jurídica facilitava as formas de dominação jurídica que constituíam a organização social injusta e desigual que os CLS julgavam encontrar na organização social moderna. A formação jurídica justificava a organização social moderna ao dar-lhe uma certa justificação racional, em vez de afirmar que era simplesmente resultado de complexos processos de poder político.[19]

Esse movimento, considerado assim por assumir múltiplas vertentes, adota outra estratégia para se contrapor à própria tradição judicial. Todos têm em comum desvelar o caráter político da função judicial. Trabalha com a ideia que o direito constitui-se em aparato técnico de normas, decisões e precedentes, tribunais que legitima um regime econômico liberal e naturaliza no sentido de tornar inevitáveis as relações de poder apenas contingentes. É aquilo que UNGER[20] denomina fetichismo institucional:

“A crença de que concepções institucionais abstratas, como a democracia política, a economia de mercado e uma sociedade civil livre, tem uma expressão institucional única, natural e necessária.”  

Esse fetichismo condicionaria a linguagem e os debates da política comum que por sua vez dão-se em estruturas institucionais também derivadas desse mesmo fenômeno, ao tempo que limitam versões alternativas do pluralismo político e econômico. O sistema é, todavia, dinâmico sendo provável que divergências institucionais de democracias e mercados sejam fruto de variações institucionais decorrentes de pressões de ambições econômicas e rivalidade política, e não de uma intenção deliberada. A constatação é que democracias representativas, economias de mercado e sociedades civis livres podem assumir formas jurídico-institucionais muito diferentes daquelas que vieram a predominar nas democracias industriais ricas[21].

Ao apresentar as existentes instituições jurídicas e econômicas não como uma necessidade a ser acatada, mas como uma visão encolhida de uma possibilidade entre uma ampla gama de possibilidades a serem aproveitadas, intenta a CLS demonstrar que a aceitação da atual estrutura institucional não passa de ceticismo conservador que se contrapõe ao denominado experimentalismo institucional.

Para os CLS o direito posto e reproduzido por gerações de juristas advindos de camadas favorecidas da sociedade americana em faculdades de elite com a pretensão de um discurso jurídico objetivo e neutro longe de objetivar tão-somente a função de técnica de controle social na verdade mascaram seu real objetivo que é sustentar de forma racional um particular regime econômico. O direito não fugiria ao contexto das demais ciências em seu papel ideológico a gerar crenças e valores para justificar o papel privilegiado das classes dominantes. O Direito é política declaram e a racionalidade é também aqui entendida como um dos meios adotados para o mesmo fim.

A própria discussão sobre a racionalidade especificamente jurídica de resto fecunda em qualquer teoria geral de direito mostra-se particularmente estimulante para caracterizar outra vertente da CLS que partindo dos mesmos questionamentos sobre o papel do direito no Estado Liberal adota a estratégia de proceder internamente a campos específicos do direito para desvelar por meio de uma estratégia denominada trashing contradições que demonstrariam as filiações ideológicas das doutrinas jurídicas adotadas (MORO, 2010)[22].

Essa opção de desnudamento interna aos ramos do direito evidentemente não desqualifica a análise teórica mais ampla, ao contrário cerra com algumas das múltiplas formas e estratégias com que se apresenta o CLS.

Embora seja o mais emblemático representante dessa estratégia dita minimalista DUNCAN KENNEDY demonstra que na aplicação do direito, ou seja, na concretização de normas carregadas de generalidade na resolução de conflitos acaba por expor o caráter ideológico do sistema jurídico. A estranheza decorre de não ser o sistema judicial o ambiente onde seria legítimo o debate ideológico. Sustenta-se ingenuamente que o processo discursivo exclua positivamente a ideologia. Haveria assim deste o advento dos movimentos jurídicos do sec. XIX a necessidade de considerar-se o direito racional, ou seja, o direito seria criado de forma objetivamente correta porque não decorre da ideologia do magistrado ou tribunal.

Argumenta-se que a atuação judicial é imunizada da ideologia e que sustenta a existência de restrições institucionais, a necessidade de que a sentença seja racional, além de uma obrigação moral de sinceridade por parte dos julgadores seriam contrapesos que reduzem as inclinações pessoais dos juízes e que confinam os tribunais a movimentos moleculares de forma que alterações drásticas seriam raras e ocorreriam em longo prazo. Para DUNCAN KENNEDY a questão não é se os alcançam os resultados pretendidos no processo de criação judicial de normas com base em um interesse pessoal, mas na maneira como compromissos ideológicos dos juízes, no que inclui o compromisso de não atuar ideologicamente, ingressam na sua criação e ainda as conseqüências de sua presença[23].

Ele assume que não é plausível conceber a atividade do juiz sem incluir a criação do direito. Ao criar a norma o juiz pretende que essa norma prevaleça ainda que argumente que se trate de caso de necessidade jurídica no intuito, por exemplo, de colmatação de lacunas ou resolver antinomias. Subvertem-se assim princípios caros ao Liberalismo Clássico como a garantia do exercício de direitos individuais, regra da maioria e império da Lei.

A divisão entre poderes aparta a aplicação do direito de juízos subjetivos de eleições políticas ao julgamento de lides entre partes que exigem igual respeito pelo Judiciário na medida em tem direito à determinação de seus direitos, independente da forma como foram criados ou reconhecidos, por um processo que não esteja contaminado pelas preferências políticas subjetivas da maioria. Essa garantia típica do momento da aplicação do direito seria distinta daquele afeito ao processo de criação de direito já que requer emprego de juízos de valor, os quais são subjetivos e políticos. O processo de criação de direito possui um caráter político e deve ser controlado por aqueles que operam segundo uma norma de responsabilidade perante seus eleitores.

Todas as considerações traçadas no parágrafo anterior não evitam a aplicação de ideologia em decisões judiciais. Isso porque mediante um mecanismo denominado Comportamento Estratégico que nada mais é que a eleição, fundada em motivações externas, de trabalhar para desenvolver uma das possíveis soluções do problema jurídico em questão no lugar de outra.

Ao contrário das teorias positivistas em suas mais aclamadas versões que antevêem uma moldura onde o juiz extrai as possíveis soluções para os conflitos jurídicos que se lhes apresentam ou mesmo admitem existência da textura aberta como forma de justificar a incompletude do sistema e possibilitar o exercício da discricionariedade judicial em casos considerados difíceis, KENNEDY defende que os intérpretes na identificação das lacunas, antinomias, zonas de penumbras ou moldura fazem-no de forma estratégica de forma a deslocar a lide a uma área de penumbra ou de claridade frente ao ordenamento.

A constatação de que a norma estava determinada para aquela situação apresentada significa que a tentativa do intérprete fora inexitosa no deslocamento para uma das áreas e a conclusão que seu caráter de norma determinada ou indeterminada é um efeito contingencial, já que depende de fatores diversos, inclusive do tempo gasto na tarefa ou da competência do juiz, constituem para KENNEDY a prova do comprometimento das teorias positivistas, já que o direito seria algo fluído a demonstrar que as decisões não são justificadas somente pela lei, mas que incluem sempre juízes, juristas e advogados como parte da decisão.

Como fizemos questão de retratar a existência de liberdades clássicas constitui-se como precursor e espelho do Estado Democrático. O ressurgimento de movimentos originados da vontade popular que põem em risco essas liberdades (Democracia Iliberal), no entanto são garantidas por instituições originalmente elitistas na medida em que surgiram como contraponto aos riscos da igualdade jurídica inerentes aos regimes democráticos. Essas instituições internas e externas (tratados) comandadas por tecnocratas tornaram-se garantes de liberdades (liberalismo antidemocrático), ainda que surgidas já nos primórdios da primeira experiência constitucional e democrática moderna como o controle de constitucionalidade por parte de tribunais que podem anular revogara atos e normas que atentem contra direitos individuais e as regras básicas do jogo democrático.

Contudo mesmo esta pode em algumas situações e regiões tal como as demais instituições sofrer um déficit democrático. Face ainda ao cada vez mais evidente afastamento entre liberalismo e democracia, na esperança que sirvam para o debate em um tema onde não se apresenta qualquer solução de curto prazo dentro dos esboços teóricos já testados pela sociedade moderna e que dê conta simultaneamente de uma ordem política que assegure as liberdades, admitidas como trunfos civilizacionais, assim como as regras assecuratórias de seu gozo. Os riscos tanto para a democracia como para o estado Liberal mostram-se evidente na citada admoestação de BOBBIO de que os dois costumam cair juntos.

Mostram-se assim pertinentes as contribuições do movimento CLS que considera que as instituições jurídicas, conceitos e materiais jurídicos servem para justificar as relações de poder existentes, de forma que rompem com a neutralidade e objetividade da ciência jurídica e se assumem como atores políticos que intentam um projeto de transformação social.

Inicialmente UNGER que admite que a linguagem e o discurso jurídico são condicionadas por uma crença de que as concepções institucionais abstratas, de todo surgidas de interações e colisões de interesses e ambições as mais diversas, possuem uma única e necessária expressão na área jurídica, bem na política e econômica, restringe a visão de outras possibilidades igualmente defensáveis de oportunidades a serem escrutinadas e experimentadas, ao passo que para KENNEDY desvelou o papel da ideologia e os mecanismos adotados pelos verdadeiros detentores do poder ainda que inconscientemente para negar sua participação no processo de criação judicial de normas.

São assim contribuições trazidas pelo CLS que expusemos na tentativa de contribuir para o imbróglio para trazer esperança que para se concretizar requer evidente esforço e espírito de luta e como assegurou FUKUYAMA ao ser entrevistado após 25 da edição de seu livro que preconizava o fim da história com a vitória da democracia liberal como única alternativa racional a ser posta para nações civilizadas, constatou que apesar de óbvias falhas e necessidade correções a maioria dos países permanência democráticos, finalizando com a conclamação:

Democracias sobrevivem e têm êxito apenas porque as pessoas estão dispostas a lutar pelo estado de direito, direitos humanos e responsabilidade política. Tais sociedades dependem de liderança, habilidade organizacional e de pura boa sorte[24].

Referências Bibliográficas

BARROSO, Luís Roberto. Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, Vol. 9, N. 4, 2018, p. 2171-2228

BOBBIO, Noberto. O futuro da democracia. Trad. Marco Aurélio Nogueira – São Paulo: Paz e Terra, 2000.

 FARIA, José Eduardo. Poder e legitimidade: uma introdução à Política do Direito. São Paulo; Editora Perspectiva. 1078.

FUKUYAMA, Francis. O fim da História e o último homem. Trad. Aulyde Soares Rodrigues. Rio de Janeiro: Rocco, 1992

           _________________ https://www.fronteiras.com/artigos/no-lfim-da-historiar-a-democracia-continua-de-pe. Visualizado em 23 de junho de 2019

 TELLES Jr., Goffredo. O povo e o poder. São Paulo: Malheiros Editores. 2003

KENNEDY, Duncan. Izquierda y derecho. Buenos Ayres: Siglo Veintiuno Editores, 2010.

LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Tradução: Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. São Paulo: Editora Vozes

WAYNE MORRISON. Filosofia do Direito: dos gregos ao pós-modernismo. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes,2006.

MORO, Guillermo.(2010). Introdução. In: Duncan KENNEDY, Izquierda y derecho. Buenos Ayres: Siglo Veintiuno Editores, 2010.  

MOUNK, Yascha. O povo contra a democracia: por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la. Trad. Cássio de Arantes Leite. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2019.

POPPER, Karl R. Em busca de um mundo melhor. Trad. Milton Camargo Mota. São Paulo: Martins Fontes, 2008

UNGER, Roberto Mangabeira. O DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA. Trad. Caio Farah Rodriguez Marcio Soares Grandchamp, com consultoria do autor. São Paulo: Boitempo, 2004.



[1] Mestrando em Direito Pontifícia Universidade Católica

[2] 1982, p. 69.

[3] Idem, p. 175

[4] 2018, p.124

[5] Idem, p. 33

[6] TELLES Jr, Goffredo. p. 65

[7] Idem, p. 60.

[8] FARIA, José Eduardo. p. 64

[9] idem. p. 65

[10] BOBBIO, Noberto. p. 18

[11] FARIA, José Eduardo. p. 62

[12] Idem, p. 21

[13]Popper, Karl. 2008. p.200.

[14] 2002, p. 33.

[15] LOCKE, p. 82.

[16] P.77

[17] MOUNK, p. 80.

[18] Barroso, 2018, p. 2198

[19] WAYNE MORRISON. Filosofia do Direito. 2006, p. 541

[20] 2004, p. 17

[21]UNGER, Idem, ibidem

[22] Moro, 2010, p. 14

[23] 2010, p. 110.

[24]

Como citar e referenciar este artigo:
SANTOS, Mauro Fernando dos. Futuro da democracia. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2021. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/filosofiadodireito/futuro-da-democracia/ Acesso em: 26 jul. 2024