Atahualpa Fernandez*
Atahualpa Fernandez Bisneto**
Explicar o Direito
A doutrina jurídica tradicional, e em particular a filosofia do direito, se interrogam desde sempre acerca do modo como as regras sociais e as normas jurídicas surgem e se impõe na sociedade, ao que se acrescenta a questão relativa à maneira como essas regras e normas se legitimam. Também se manteve durante séculos a tese de que o ser humano é sociável por natureza e, portanto, somente na sociedade organizada alcançava o indivíduo humano sua mais plena e perfeita realização. Assim, as normas e a organização sócio-política seriam uma seqüela necessária do próprio ser do homem, a dimensão ou componente imanente de sua natureza moral e racional.
Com a chegada da época moderna entra em crise essa justificação teleológica e metafísica da ordem social e de suas normas. O ser humano deixa de ver-se como puro autor racional de um guión pré-escrito e prescrito com anterioridade e se torna autor de sua própria vida e suas realizações sociais. Manter-se-á até nossos dias a idéia comum de que não há sociedade sem normas, mas as normas já não são mais a expressão de nenhum fim (teleológico ou transcendente) pré-estabelecido, senão um produto propriamente humano, evolucionado, contingente e variável.
A correlação entre normas jurídicas e natureza humana se torna explícita e a questão da origem, evolução e natureza dessa natureza (humana) e de seus produtos normativos (sócio-adaptativos) passa a constituir um problema teórico e central das mais modernas filosofias e teorias sociais normativas. Frente ao tradicional desdobramento do sujeito em indivíduo moral (ou quase divino) e ser genérico portador de uma racionalidade quase que absoluta, o sujeito moderno se concebe ao mesmo tempo como o resultado de um processo biológico de hominização e um processo histórico de humanização.
Já não somos portavozes de uma racionalidade (ou divindade) de alguma forma transcendente que se nos impõe e converte nossas vidas e agrupações em realização de um fim predeterminado, senão uma espécie que descobriu que determinados comportamentos e vínculos sociais são necessários para resolver problemas adaptativos relativos à sobrevivência, ao êxito reprodutivo e à vida em comunidade, e aceitou a necessidade de assegurá-los e controlá-los mediante um conjunto de normas e regras de conduta. O sujeito moral deixa seu lugar ao ser humano produto da evolução por seleção natural.
O problema da tradição jurídica filosófica e da ciência do direito (ainda predominantes) é o de que trabalham muitas vezes como se os humanos só tivessem cultura, uma variedade significativa e nenhuma história evolutiva. De fato, no âmbito do jurídico quase sempre se relega a um segundo plano – ou simplesmente se desconsidera – a devida atenção à evolução da natureza humana e à estrutura e ao funcionamento material do cérebro humano como fonte dos instintos e predisposições que permitem criar e explorar os vínculos sociais relacionais que lá estão. Não há que estranhar-se, pois, de que o processo de realização do direito (de elaboração, interpretação e aplicação) seja um dos mais problemáticos e contestados publicamente de todas as empresas jusfilosóficas. E uma vez que tanto o direito como a ética carecem das bases de conhecimento verificável da natureza humana necessários para obter predições de causa e efeito e juízos justos baseados nelas, necessitamos, para compor o conteúdo e a função do direito, tratar de descobrir como podemos ou devemos fazê-lo a partir do estabelecimento de vínculos com a natureza humana.
Aliás, diga-se de passo, um dos “fetiches” mais comuns é o de assegurar – principalmente para os alunos dos cursos jurídicos – uma concepção ontológica substancial do direito que reside, em última instância, em “algo” predeterminado (ou vinculado de forma absoluta) por uma indefinida e indecifrável “natureza” considerada sempre igual, por um sistema universal e imutável de princípios e valores ou, com mais atualidade, pela expressão da juridicidade oferecida por um corpo de normas (o ordenamento jurídico) postas pelo legislador, isto é, como um sistema autônomo de leis (im-) postas (com anterioridade) pelo poder (seja este de que natureza for: religiosa, econômica, militar, política, etc.).
E não somente isso. Os operadores jurídicos, quando abordam o estudo do comportamento humano e do direito, têm o costume de falar de diversos tipos de explicações: sociológicas, antropológicas, normativas, axiológicas e outras, apropriadas às perspectivas de cada uma das respectivas disciplinas e áreas de conhecimento, quer dizer, sem sequer considerarem a (real) possibilidade de que exista somente uma classe de explicação para a compreensão da juridicidade na sua projeção metodológica. Mas tal explicação unitária de base existe. Desde o ponto de vista teórico é possível imaginar uma explicação que atravesse as escalas do espaço, do tempo e da complexidade unindo os fatos aparentemente inconciliáveis do social e do natural, sempre e quando se parta de um cenário mais credível da emergência do fenômeno jurídico devidamente sustentado em um modelo darwiniano sensato sobre a natureza humana – que não é uma construção social pós-moderna, senão uma construção natural muito antiga que recapitula a história filogenética da linhagem humana.
Dito de outro modo – e em termos muito gerais –, de que os grupos humanos atuais nasceram a partir de grupos de Homo erectus, e estes a partir de grupos de Australopithecus, e estes, por sua vez, de antepassados comuns aos humanos e chipanzés que, não obstante serem de maneira provável uns animais com uma certa vida social, nasceram da sociedade de um elo perdido entre símios e macacos, e assim por diante, até chegar ao ponto em que começamos, como uma espécie de animal essencialmente social, prioritariamente moral, particularmente cultural e decididamente diferente. Em síntese, de que para uma compreensão mais adequada do comportamento humano normativo é necessário ver a vida ética e social humana como um produto da história evolutiva que nos precede, com antecedentes em outras espécies. Longe de ser uma tábula rasa difusa, a arquitetura cognitiva humana, altamente diferenciada e especializada, é um mosaico de vestígios cognitivos dos estágios antigos da evolução humana, previamente adquiridos por nossos ancestrais hominídeos.
E embora não haja uma resposta simples à pergunta de se a moralidade (o direito e a justiça) é um fenômeno cultural ou um fenômeno biológico, o certo é que a importância da mútua relação entre evolução biológica e a emergência de uma conduta moral e jurídica mais complexa, nos momentos em que a espécie humana estava desenvolvendo suas capacidades cognitivas e a linguagem articulada, parece estar fora de qualquer dúvida razoável: o processo evolutivo proporcionou ao ser humano a habilidade e os requisitos para desenvolver uma moralidade (que por sua vez deu origem a juridicidade), assim como um conjunto de necessidades, de emoções e de desejos básicos que, com o passo do tempo, deram lugar a nossa atual e astronomicamente grande riqueza moral e jurídico-normativa.
Daí que se nos atemos aos modelos standard do atual discurso jurídico é possível inferir que estes resultam insuficientes, enquanto que: a) descuidam ou não tratam em absoluto de aspectos muito importantes do problema da legitimação do direito a partir de uma prévia concepção acerca da natureza humana e de sua história evolutiva ; b) não oferecem um método que permita, por um lado, analisar adequadamente nossas capacidades, habilidades e limitações ao levar a cabo a operacionalização dos processos racionais de argumentação jurídica e, por outro lado, avaliar seus resultados e impactos no que se refere às nossas intuições e emoções morais (tanto as culturalmente formadas como, e principalmente, as de raiz biológica); e c) têm um interesse muito limitado (se é que contam com algum) para o contexto humano de factibilidade ou aplicabilidade das propostas que lhes servem de fundamento, ao tempo que resultam escassamente críticos em relação aos modos de articulação e as conseqüências dos vínculos sociais relacionais (de autoridade, de comunidade, de igualdade e de proporcionalidade) por meio dos quais os humanos constroem estilos aprovados de interação e de estrutura social.
Pois bem, esse parece ser o ponto central a partir do qual se deve estabelecer o debate entre a tendência naturalista da melhor ciência contemporânea e a tradição dos filósofos e teóricos do direito que, não obstante, insistem em sustentar que é possível outorgar à cultura a parte que corresponde a natureza e, dessa forma, em não admitir a continuidade entre o reino animal e o mundo humano, entre o universo da natureza e o da cultura, isto é, essa parte de animalidade que há em nós e que toda uma tradição religiosa e filosófica pretendeu (e continua pretendendo) ocultar. Em resumo, deixando de falar do que realmente importa e que tanto gosta de ocultar-se sob o manto perverso de eufemismos e abstrações. O real é sempre mais importante que os devaneios, as idiossincrasias e as ficções filosóficas : descendemos de animais que viveram em comunidade durante milhões de anos; o mítico “contrato social” estava já inventado muito antes de que a espécie humana aparecesse sobre o planeta, e nenhuma referência à moral, ao direito ou à “natureza humana” pode silenciar estas raízes.
E não se trata, depois de tudo, de um problema de pouca importância, de um mero exercício mental para os juristas e os filósofos acadêmicos. A eleição de uma das duas formas de abordar o direito supõe uma grande e relevante diferença no modo como nos vemos a nós mesmos como espécie, estabelece uma medida para a legitimidade e a autoridade do direito e dos enunciados normativos, e determina, em última instância, a conduta e o sentido do raciocínio prático ético-jurídico.
Explicamos: as faculdades de direito parecem estar, na atualidade, submetidas a uma espécie de aliança ímpia tácita entre a verborréia relativista pós-moderna e pós-estruturalista, anti-científica e anti-racionalista, e uma retórica autocomplacente, pretendidamente muito “científica”, dominada sobretudo por um positivismo e/ou jusnaturalismo substancial ontológico e pela teoria da eleição racional: enquanto os pós-modernos fogem da realidade social, científica e política com delirantes imposturas (“tudo é texto” e truanices parecidas), os outros, os “científicos”, os “filósofos dos direitos humanos” fogem da realidade social e científica construindo triviais pseudomodelos teóricos que não passam, com frequência, de grotescas paródias argumentativas sem qualquer escrutínio empírico minimamente sério, senão carentes da menor autoconsciência respeito da realidade biológica que nos constitui, dos problemas filosóficos e neuropsicológicos profundos que implica qualquer teoria da ação intencional humana, e em particular, de uma teoria da racionalidade reformada. Enfim, por uma completa falta de precisão relativa a adesão de seus respectivos discursos à natureza humana.
É nessa paisagem cognitivamente hostil à realidade por parte das faculdades de direito que os juristas fiéis à “pureza do direito” parecem estar sempre imunes a toda argumentação que não se ajuste ao seu sistema de crenças, um tipo de resistência construída durante anos de adoutrinamento universitário. Não há dúvida de que a sabedoria herdada é assombrosa, fascinante e inteligente. Mas se baseia principalmente em suposições, como sabemos pela informação científica e histórica atual. Ao longo da história humana, vários foram os autores que elaboraram teorias morais e jurídicas, interpretações e histórias sobre o que significa ser humano, sobre o que significa existir e sobre como devemos viver. Tudo isso forma parte de nosso rico passado.
Não obstante, a crua e dura realidade é que essas idéias férteis, metafóricas e atrativas – já sejam filosóficas ou religiosas – são meros relatos, se bem alguns mais demonstráveis que outros. O que realmente resulta insólito é que se siga questionando a existência da natureza humana, quando os novos dados proporcionam bases científicas e históricas para fundamentar novos modos de entender a natureza e nosso passado evolutivo. Sabemos que existe algo que denominamos natureza humana, com qualidades físicas e manifestações inatas e inevitáveis em muitas e diversas situações. Sabemos que algumas propriedades fixas da mente são inatas, que todos os seres humanos possuem certas destrezas e habilidades das que carecem outros animais, e que tudo isso conforma a condição humana. E hoje sabemos que somos o resultado de um processo evolutivo que, para bem ou para mal, modelou nossa espécie. Somos animais éticos. O resto das histórias acerca de nossas origens e de nossa natureza não são mais que isso: histórias que consolam, enganam e até motivam, mas histórias ao fim e ao cabo.
Essa a razão pela qual defendemos a idéia de que já é chegada a hora de voltar a definir o que é um ser humano, de recuperar e redefinir em que consiste a natureza humana ou simplesmente de aceitar que os humanos são muito mais do que um mero produto de fatores sócio-culturais. E ainda que muitas perguntas sigam sem resposta – e dada a resistência a aceitar que as respostas a certas perguntas de uma disciplina possam vir de outros campos de investigação -, podemos pelo menos aduzir novas razões para sustentar ou refutar explicações que até agora permanecem no limbo da filosofia e da ciência do direito. O que nos ensinam do mundo jurídico é minúsculo em comparação com a imensidade do real que ainda somos incapazes de perceber. Talvez por isso não resulte ser uma tarefa fácil transcender as fronteiras e as limitações dos “dogmas do momento” aos quais, de uma maneira ou outra, continuamos atrapados. Afinal, as idéias que soem prosperar são as que contribuem a conservar os sistemas que lhes permitem ser transmitidas.
O problema é que vivemos sempre graças a uma atividade fisiológica que podemos dirigir mediante conteúdos que vão mais além da fisiologia ou da cultura. Pertencemos a dois mundos: o mundo do corpo/cérebro (dos quais emerge a mente) e o mundo das criações culturais fundadas na atividade neuronal (uma sincronia em rede), mas que a transcendem. Isso somos. Depois, dispomos de normas de conduta bem afinadas porque nos permitem maximizar nossa capacidade de predizer, controlar e modelar o comportamento social respeito à reação dos membros de uma determinada comunidade. E nada disso deveria surpreender uma vez que são duas as capacidades humanas que funcionam como fatores particularmente determinantes na formação e transmissão das normas jurídicas: a primeira, provavelmente compartida com outros animais, é a busca incessante de causas e efeitos; a segunda, o raciocínio ou juízo social – insolitamente desenvolvida nos humanos -, que consiste na capacidade de pensar nas pessoas e nos motivos que lhes levam a atuar (o que os cientistas chamam “teoria da mente”).
A combinação dessas capacidades gerou certas características da função mental que formam parte da crença ético-jurídica: nossa capacidade para fazer abstrações e deduções causais e para inferir intenções não percibidas. Dessa forma, o direito se torna possível quando o impulso de encontrar e inferir explicações causais se combina com a capacidade – e a propensão – de nossos cérebros de subministrar níveis avançados de cognição social. Juntas, estas duas capacidades nos permitem gerar complexas idéias culturais que vão desde pôr multas aos condutores por haver cruzado com o semáforo em vermelho até a justiça. E uma vez que a sociedade usa leis para encorajar as pessoas a se comportar diferentemente do que elas se comportariam na falta de normas, esse propósito fundamental não somente torna o direito altamente dependente da compreensão das múltiplas causas do comportamento humano, como, e na mesma medida, faz com que quanto melhor for esse entendimento da natureza humana, melhor o direito poderá atingir seus propósitos.
Assim entendido, o problema passa a ser o de dar respostas satisfatórias às seguintes perguntas: Qual é a função do direito no contexto da existência humana? Qual a razão das normas jurídicas (e morais) e por que são universais? Qual é a explicação acerca de como é possível que tenhamos invariavelmente, enquanto espécie, regras respeitantes à maneira como nos devemos conduzir?
Pois bem, começaremos por argumentar, em primeiro lugar, sobre a necessidade de se admitir que o direito não é um fim em si mesmo, senão um instrumento ou artefato cultural, uma invenção humana, que deveríamos procurar modelar e utilizar inteligentemente para alcançar propósitos ético-políticos que vão mais além do próprio direito: uma certa paz, uma certa liberdade, igualdade e fraternidade, enfim, uma certa justiça.
O direito não é mais nem menos que uma estratégia sócio-adaptativa – cada vez mais complexa, mas sempre notavelmente deficiente – empregada para articular argumentativamente – de fato, nem sempre com justiça –, por meio da virtude da prudência, os vínculos sociais relacionais elementares através dos quais os homens constroem estilos aprovados de interação e estrutura social. Um artefato cultural que deveria ser manipulado para desenhar um modelo normativo e institucional que evite, em um entorno social prenhado de assimetrias e desigualdades, a dominação e a interferência arbitrária recíprocas e, na mesma medida, garantindo certa igualdade material, permita, estimule e assegure a titulariedade e o exercício de direitos (e o cumprimento de deveres) de todo ponto inalienáveis e que habilitam publicamente a existência dos cidadãos como indivíduos plenamente livres.
Por outro lado, diremos que o desenvolvimento dos sistemas normativos implicou processos causais gerados pelas inevitáveis colisões de interesses próprios da coexistência social e em vista da necessidade de inferir os estados mentais, de controlar e de predizer o comportamento dos indivíduos, isto é, de antecipar as consequências do comportamento dos demais em empresas que requerem a competição ou a cooperação de vários indivíduos. Dito de outro modo, criamos um sistema complexo de justiça e de normas de conduta para canalizar nossa tendência à “agressão” decorrente da falta de reciprocidade e dos defeitos que emergem dos vínculos sociais relacionais que estabelecemos ao longo de nossa secular existência.
Tais normas, por resolverem determinados problemas sócio-adaptativos práticos, modelam e separam os campos em que os interesses individuais, sempre a partir das reações do outro, podem ser válidos, social e legitimamente exercidos, isto é, plasmam publicamente não somente nossa capacidade (e necessidade) de predizer e controlar o comportamento dos demais senão também o de justificar e coordenar recíproca e mutuamente, em um determinado entorno sócio-cultural, nossas ações e interações sociais. Estes artefatos, se plasmam grande parte de nossas intuições e emoções morais, não são construções arbitrárias, senão que servem ao importante propósito de, por meio de juízos de valor, tornar a ação coletiva possível – o que, em certa medida, vem a ser confirmado pela recente descoberta das chamadas “neuronas espelho” que, longe de ser uma mera curiosidade, parecem ser muito importantes para compreender a maioria dos aspectos da natureza humana, como a avaliação dos atos e intenções dos demais decorrente de nossa capacidade de elaborar uma “teoria da mente” para prever o comportamento de nossos congêneres.
Daí a razão pela qual as normas jurídicas não são simplesmente um conjunto de regras faladas, escritas ou formalizadas destinadas a constituir uma razão (determinante e/ou moral) para o atuar dos indivíduos. Em vez disso, as normas representam a formalização de regras de condutas sociais sobre as quais uma alta percentagem de pessoas concorda, que refletem as inclinações comportamentais e oferecem benefícios potenciais e eficientes àqueles que as seguem: quando as pessoas não reconhecem ou não acreditam nesses benefícios potenciais, as normas são, com frequência, não somente ignoradas ou desobedecidas – pois carecem de legitimidade e de contornos culturalmente aceitáveis em termos de uma comum, consensual e intuitiva concepção de justiça -, senão que seu cumprimento fica condicionado a um critério de autoridade que lhes impõem por meio da “força bruta”.
Claro que, de uma maneira geral, resulta impossível fixar uma origem do direito, nem mesmo se o entendemos da maneira mais ampla e flexível imaginável. Mas temos sustentado que essa origem tem que ver com um desafio adaptativo que os seres humanos tiveram que afrontar: um desafio que nasceu da necessidade humana de entender e valorar o comportamento de seus congêneres, de responder a ele, de predizê-lo e de manipulá-lo e, a partir disso, de estabelecer e regular as mais complexas relações da vida em grupo. Outras espécies como a do chimpanzé tem pressões seletivas muito similares e, ainda assim, não desenvolveram nossos sistemas de normas estabelecidos através de códigos explícitos. Cabem poucas dúvidas, pois, acerca do caráter do direito como ferramenta destinada a resolver conflitos grupais e de manter vivo um limite (ainda que mínimo) de altruísmo e cooperação entre os membros de nossa espécie. Mas o carater distintivo não significa que o direito (assim como a moral) se veja livre de qualquer tipo de fator ou influência que provem das circunstâncias específicas em que se produziu a evolução coordenada do cérebro humano, dos grupos de hominídeos e de suas soluções culturais.
Sob esta perspectiva, parece razoável supor que os perversos defeitos teóricos de que ainda padecem a filosofia e a ciência do direito decorre principalmente do desprezo ao fato de que o comportamento individual se origina a partir da intercessão de nosso sofisticado programa ontogenético cognitivo e do entorno sócio-cultural em que movemos nossa existência, ou seja, de que o comportamento humano está guiado, fundamentalmente, por nossa arquitetura cogntiva inata cuja gênese deverá então ser reintegrada na história evolutiva própria de nossa espécie.
Estas considerações podem ajudar a compreender o fenômeno presente da moralidade e juridicidade humana sem desligá-lo de suas origens e, sobretudo, sem hipostasiá-lo como o elemento essencial de nossa descontinuidade com o mundo animal. As descobertas provenientes de outras áreas do conhecimento oferecem razões poderosas que dão conta da falsidade da concepção comum da psicologia (e da racionalidade) humana e o alcance que isso pode chegar a ter para o atual edificio teórico e metodológico da ciência juridica, para a concepção acerca do homem como causa e fim do direito, e consequentemente, para a tarefa do jurista-interprete de dar “vida hermenêutica” ao direito positivo.
E isso tem grande importância para a filosofia e a ciência do direito pois, de não ser assim, de não se encontrar restringido cognitivo-causalmente o domínio das preferências humanas (que impõe constrições significativas para a percepção e o armazenamento discriminatório de representações sócio-culturais e que conforma o repertório de padrões de atividade de nosso cérebro dos quais emerge nossa conduta), se pode perfeitamente admitir a alteração da natureza humana em qualquer sentido que se deseje e, em igual medida, negar a primera e básica premissa da contribuição científica de que o Homo sapiens é uma espécie biológica cuja evolução foi forjada pelas contigências da seleção natural em um ambiente enriquecido por relações sócio-culturais e de que temos um cérebro (herdado por via do processo evolutivo) gerado para enfrentar-se a realidades tangíveis e equipado com as ferramentas necessárias para, como um verdadeiro motor semântico ou uma máquina de fabricar modelos da mente de outras pessoas, manipular os significados e procesar as informações sociais relevantes para resolver os problemas de nosso coexistir evolutivo.
Também se podem dar passos para uma compreensão das condições de possibilidade e limites do fenômeno jurídico, procurando sempre chegar a soluções menos injustas e moralmente aceitáveis se se atende ao princípio ético – extraído diretamente de nossas intuições e emoções morais mais profundas – segundo o qual o direito deve ser manipulado de tal maneira que suas consequências sejam sempre compatíveis com a maior possibilidade de evitar ou diminuir a miséria e o sofrimento humano (ou seja, que não se produza sofrimento quando seja possível prevení-lo, e que aquele que é inevitável se minimize e grave com moderação aos membros individuais da sociedade, aos cidadãos).
Por certo que isso implica numa perspectiva inter ou transdisciplinar cuja idéia básica, transcendendo os estritos limites de uma interdisciplinariedade restrita às ciências humanas, consiste em propor que várias disciplinas contidas nas ciências sociais e do comportamento tornem-se mutuamente coerentes e compatíveis com o que é conhecido nas ciências naturais, ou seja, um leque de explicações que se complementem nos diversos níveis de análise e que sejam todas mutuamente compatíveis. Esse diálogo (perspectiva ou postura) ou reconciliação epistemológica pressupõe simultaneamente uma reforma das estruturas do pensamento – para usar a expressão de Edgar Morin: o verdadeiramente importante não é justapor os aportes das diversas ciências, senão o de enlaçá-los, de saber mover-se entre saberes compartimentados e uma vontade de integrá-los, de contextualizá-los ou globalizá-los.
Somente uma nova estrutura de pensamento pode permitir-nos conceber as ciências como conjunção, como implicação mútua, o que se costuma ver como disjuntiva: o ser humano considerado simultaneamente como um ser biológico, cultural, psicológico e social. E já existem numerosos modelos procedentes das ciências da vida que integram os comportamientos sociais como consequência de determinados traços derivados do ser humano. O objetivo consiste em detectar a presença em nossa espécie — essencialmente social e relacional — de certas estratégias sócio-adaptativas que apareceram graças a que contribuíram à sobrevivência e ao êxito reprodutivo. É mais: sem tais estratégias surgidas durante o longo período de nossa história evolutiva para resolver problemas evolutivos, nossa espécie não poderia haver conseguido prosperar.
Compreender a natureza humana, sua limitada racionalidade, suas emoções e seus sentimentos parece ser o melhor caminho para que se possa formular um desenho institucional e normativo que, reduzindo o sofrimento humano, permita a cada um viver com o outro na busca de uma humanidade comum. E em que pese o fato de que a tendência para a separação entre o material e o espiritual tem levado, todavia, a que se absolutizem alguns desses valores – desligando-os das suas origens e das razões específicas que os viram nascer e apresentando-os como de essência espiritual, como uma transcendência que ultrapassa o próprio homem -, o direito somente adquire uma base segura quando se vincula à nossa arquitetura cognitiva altamente diferenciada e especializada, quer dizer, a partir da natureza humana unificada e fundamentada na herança genética e desenvolvida em um entorno cultural. Poder-se-ia dizer, pois, que os códigos da espécie humana são uma conseqüência peculiar de nossa própria humanidade, e que esta, por sua vez, “constitui o fundamento de toda a unidade cultural”.
Em resumo: a moral (e consequentemente o direito), mais que uma invenção recente, é parte da natureza humana e está evolutivamente enraizada na socialidade dos mamíferos (ainda que a tendência a medir cuidadosamente nossas ações frente ao que poderíamos ou deveríamos haver feito, nosso diálogo interior que eleva o comportamento moral a um nível de abstração e autoreflexão seja uma característica singularmente humana). E embora o processo de seleção natural não tenha especificado nossas normas e valores morais, nos há dotado de uma estrutura neuronal psicológica com determinadas tendências e habilidades necessárias para desenvolver uma bússola interna que tenha em conta tanto nossos próprios interesses como os interesses da comunidade em seu conjunto.
De fato, se se borrasse o conjunto de cérebros humanos da face da terra, a moral e o direito desapareceriam ao mesmo tempo. As normas de conduta (morais ou jurídicas) e teorias jurídicas seguiriam plasmadas em livros guardados em estantes de bibliotecas abandonadas. Todas estas obras do gênio humano não teriam já a oportunidade de viver cada vez que uma mirada humana recai sobre elas. A moral e o direito não existem mais que no cérebro do homem ao que vai dirigido e que somente ele é capaz de produzir e compreender. Somente os cidadãos individuais têm direito ou sentido de justiça e bondade, e as têm precisamente em seu cérebro, na forma de representações plasmadas em suas conexões neuronais. Toda nossa conduta, nossa cultura e nossa vida social, tudo quanto fazemos, pensamos e sentimos, depende de nosso cérebro. O cérebro é a sede de nossas idéias e emoções, de nossos temores e esperanças, do prazer e do sofrimento, da linguagem, da moral, do direito e da personalidade. Se em algum órgão se manifesta a natureza humana em todo o seu esplendor, é sem dúvida em nosso volumoso cérebro. O resto é mitologia.
E como, pessoalmente, acreditamos que a realidade é real e que a ciência é um modo excelente de perceber como essa realidade funciona, o que pretendemos deixar claro é que essa nova “estrutura de pensamento” dirigida a uma reconciliação epistemológica não somente põe em cheque uma grande porção dos logros teóricos tradicionais da filosofia e da ciência do direito, como, e muito particularmente, possibilita uma revisão das bases ontológicas e metodológicas do fenômeno jurídico a partir de uma concepção mais empírica e robusta acerca da natureza humana.
A partir daí, a iniludível natureza humana serviria para impor o que poderíamos chamar as “regras do jogo”, mas não o resultado final. O mais significativo, não obstante, da aproximação naturalista é a possibilidade de fixar, dentro dessas regras do jogo, certos valores de alto rango que se deduzem do caráter e do sentido do direito como instrumento, uma estratégia sócio-adaptativa, para a convivência social. Por muito que a diversidade cultural e a facilidade da aculturação permitam impor de partida quase qualquer regra jurídica – e a História nos mostra todo um catálogo de propostas que levam a situações monstruosas – as regras “aberrantes” acabam por resultar, no fundo, como ilegítimas, porque contrárias às intuições e emoções morais fixadas pela seleção natural. Pese a seu enfoque não evolucionista, a Teoria da Justiça de Rawls se baseia precisamente nesse suposto.
Para além do modelo episódico dominante
É certo que ainda não conseguimos resolver o problema da mútua relação entre o natural e o cultural, ou seja, os meios pelos qual a evolução biológica e a cultura influíram sobre a natureza humana, e vice-versa. Mas para entender a condição humana – e o direito é parte dessa condição e a sua idéia (idéia de direito) é o resultado da idéia do homem – há de compreender ao mesmo tempo os genes, a mente e a cultura, e não por separado a maneira tradicional da ciência e as humanidades: a dinâmica, em conjunto, entre os genes e o entorno é o que constitui e configura o ser humano; e é o cérebro o que nos permite analisar, raciocinar, formular teorias e juízos de valor, interagir com os demais e adaptar-nos a todos os contextos.
Algo passa com as ciências sociais e, nomeadamente, com a ciência do direito. E é já um tanto ridículo a esta altura seguir falando de sua “imaturidade”, porquanto já não há motivos para este tipo de argumentação: nem são mais jovens que as ciências naturais, nem pode dizer-se tampouco que seus cultivadores tenham sido espíritos menos refinados ou avisados que os que se dedicaram a cultivar as ciências naturais. A filosofia e a ciência do direito não podem oferecer uma explicação ou uma descrição do “direito real”, do fenômeno jurídico ou da racionalidade jurídica, nem menos esgotar-se nelas, porque sua perspectiva não é primordialmente explicativa nem descritiva, senão normativa. Podem e devem aprender coisas das ciências da vida e da mente, na medida em que somente uma compreensão realista da natureza humana, considerada sob uma ótica muito mais empírica e respeitosa com os métodos científicos, poderá levar-nos a reconstruir as melhores e mais profundas teorias acerca do direito e de sua função na constituição da sociedade.
Dito de outro modo, o direito adquirirá um grau maior de rigor enquanto se reconheçam e se explorem suas relações naturais com um panorama científico mais amplo (um novo panorama intelectual que antes parecia distante, estranho e pouco pertinente). Os mecanismos cognitivos são adaptações que se produziram ao longo da evolução através do funcionamento da seleção natural e que adquiriram formas particulares para solucionar problemas adaptativos de larga duração relacionados com a complexidade de uma existência, de uma vida, essencialmente social.
Por conseguinte, já não mais parece lícito e razoável construir-se castelos normativos “no ar” acerca da boa ontologia, da boa metodologia, da boa sociedade ou do direito justo. Porque uma teoria jurídica (o mesmo que uma teoria normativa da sociedade justa, ou uma teoria normativa e metodológica da adequada realização do direito), para que suas propostas programáticas e pragmáticas sejam reputadas “aceitáveis”, têm antes que conseguir o nihil obstat, o certificado de legitimidade, das ciências mais sólidas dedicadas a aportar uma explicação científica da mente, do cérebro e da natureza humana que os mitos aos que estão chamadas (e destinadas) a substituir. E o mais curioso de tudo é o fato de que sabemos que isso, embora incoveniente, é verdadeiro, mas insistimos em arquivar naquela pasta mental em que todos nós guardamos as verdades inegáveis que não se ajustam aos nossos sistemas de crenças.
Einstein disse certa vez que uma motivação importante para se construir novas teorias é um “esforço em direção à unificação e à simplificação”. E porque o direito é complexo demais para poder ser forçado a ir para o leito procustiano de teorias herméticas e desconectadas, nossa tese é a de que os novos avanços da ciência cognitiva, da neurociência cognitiva, da primatologia, da antropologia evolutiva, da genética do comportamento e da psicologia evolucionista – enfim, das ciências da vida e da mente – permitirá uma melhor compreensão da mente, do cérebro e da natureza humana e trará consigo a promessa de cruciais aplicações práticas no âmbito da compreensão do fenômeno jurídico, de sua interpretação e aplicação prático-concreta: constituem uma oportunidade para refinar nossos valores e juízos ético-jurídicos, assim como estabelecer novos parâmetros ontológicos e critérios metodológicos sobre cimentos mais firmes e consistentes.
Assim que estamos firmemente convencidos de que chegou o momento de transladar o problema do direito a um plano distinto e mais frutífero. E ainda que uma perspectiva naturalista não possa determinar se o câmbio é adequado nem que medidas devem ser adotadas para criar, em caso de optar por ela, um desejado câmbio, seguramente poderá servir para informar sobre uma questão de fundamental relevância prático-concreta: quem operacionaliza o direito pode procurar atuar em consonância com a natureza humana ou bem em contra essa natureza, mas é mais provável que alcance soluções eficazes (consentidas e controláveis) modificando o ambiente em que se desenvolve a natureza humana do que empenhando-se na impossível tarefa de alterar a própria natureza humana.
O objetivo de uma boa formação jurídica deveria ser o de fomentar a virtude de compreender melhor a natureza humana e, a partir daí, tratar de fomentar a elaboração de um desenho institucional e normativo que permita a cada um conviver (a viver) com o outro na busca de uma humanidade comum: o modo como se cultivem determinados traços de nossa natureza e a forma como se ajustem à realidade configuram naturalmente o grande segredo do fenômeno jurídico, da justiça, do homem como causa, princípio e fim do direito e, consequentemente, para a dimensão essencialmente humana da tarefa de elaborar, interpretar, justificar e aplicar o direito. Enfim, de um direito que há de servir à natureza humana e não ao contrário.
Depois de tudo, longe de ser inimiga das teorias tradicionais, essa nova postura naturalista é um aliado indispensável das mesmas. Não se trata de subestimar o abundante trabalho realizado até o momento no campo do pensamento jurídico e de sua realização prático-concreta em prol de uma alternativa adaptacionista, senão mais bem assentar dito trabalho sobre os cimentos que merece: uma visão realista, naturalista, potencialmente unificada do lugar que ocupamos na natureza.
E se nada disso for suficiente, talvez não seja nenhum exagero recordar que há poucas coisas mais perigosas que a certeza jurídica endogâmica.
* Pós-doutor em Teoría Social, Ética y Economia /Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política / Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California,Santa Barbara; Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha; Especialista em Direito Público /UFPa.; Professor Titular/Unama (licenciado); Professor Colaborador (Livre Docente) e Investigador da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana/ Laboratório de Sistemática Humana); Membro do MPU (aposentado).
** Advogado; Doutorando em Direito Público (Ciências Criminais) e em Cognición y Evolución Humana/ Universitat de les Illes Balears/UIB ; Research Scholar en el Laboratorio de Sistemática Humana/UIB.
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