Direito Penal

Violência Doméstica e os Direitos Humanos

Violência Doméstica e os Direitos Humanos

 

 

Cândido Furtado Maia Neto*

 

 

A lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências, possui avanços legislativos no sentido de desburocratizar o sistema de administração de justiça penal, uma vez que o juízo criminal amplia a sua competência de julgamento nas causas que eram exclusivas, antigamente, para o juízo cível e do juízo de família, como sobre as questões de indenizações, reparações de danos causados pelos agressões, bem como quanto as medidas judiciais pertinentes e aplicadas para as guardas de menores, separações ou dissoluções conjugais.

 

Pode-se dizer, a modo de direito comparado que a mencionada e nova lei brasileira, possui aproximação a Ley Orgánica nº 1/2004, de 28 de diciembre, de Medidas de Protección Integral contra la Violencia de Género, da Espanha. Devemos destacar que na Europa, na atualidade, uma das maiores preocupações a respeito dos Direitos Humanos da Mulher, especialmente quando se fala da mulher vítima de violência, em todos os sentidos. Esta lei espanhola é uma das mais perfeitas e completa, no que se refere ao assunto violência de gênero.

 

Trata-se de tentar uma melhor solução para as “brigas de marido e mulher”, que gera a violência doméstica e familiar. Sendo a mulher, fisicamente mais fraca e também em muitos lares dependente economicamente do marido, cônjuge ou convivente, acabava não registrando a ocorrência, fazendo com que a impunidade imperasse na maioria dos casos, e quando a polícia, o Poder Judiciário e o Ministério Público tinham conhecimento e possuíam informações sobre a violência, já era tarde, visto que pelo lapso temporal, não mais possuíam condições de produzirem as provas suficientes para responsabilização do autor porque já havia se configurada a decadência da ação penal ou também a renúncia tácita.

 

Na nova lei brasileira constam medidas de cunho jurídico-penal-civil, bem como medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar, para a preservação da saúde física e mental, o aperfeiçoamento moral, intelectual e social, no sentido de resguardar toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, lesão, sofrimento físico, sexual, psicológico, dano moral ou patrimonial.

 

O objetivo da lei é dar mais eficácia aos Direitos Humanos das vítimas de gênero, reafirmando a proibição de qualquer espécie de discriminação, seja a nível constitucional como ao nível das cláusulas dos documentos internacionais de Direitos Humanos, assegurando às mulheres as condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, bem como o acesso à justiça, à cidadania, à liberdade e à dignidade, para o devido respeito a convivência familiar e comunitária (art. 3º).

 

Dispõe o art. 7º as formas de violência doméstica e familiar contra a mulher:

 

I – a violência física, entendida como qualquer conduta que atente contra a integridade ou saúde corporal;

 

II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;

 

III – a violência sexual, entendida como qualquer conduta que constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de direitos sexuais e reprodutivos;

 

IV – a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer necessidades;

 

V – a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.

 

No âmbito da política pública da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não-governamentais, a norma operacionaliza a integração do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública com as áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação, onde a assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar deverá ser prestada de forma articulada, conforme os princípios e as diretrizes da Lei Orgânica da Assistência Social, do Sistema Único de Saúde e do Sistema Único de Segurança Pública.

 

Mantêm e aprimora o atendimento pela autoridade policial e pelo Ministério Público, dando ao Poder Judiciário maior abrangência de aplicabilidade legal, mantendo obviamente as questões de ordem constitucional quanto às garantias individuais no processo penal, vinculadas ao Estado Democrático de Direito; posto que no processo, ao julgamento e à execução das causas cíveis e criminais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher aplicar-se-ão as normas dos Códigos de Processo Penal e Processo Civil e a legislação específica relativa à criança, ao adolescente e ao idoso que não conflitarem com o estabelecido nesta Lei (art. 13).

 

“Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva do agressor, decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade policial. O juiz poderá revogar a prisão preventiva se, no curso do processo, verificar a falta de motivo para que subsista, bem como de novo decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem” (art. 20); restando os mesmos critérios para a medida cautelar já prevista no Código de Processo Penal, nos termos do art. 311 e 312, para os outros delitos, em geral. E o art. 313 do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), passa a vigorar acrescido com o inciso IV – “se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da lei específica, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência”, como justificativa e circunstância para a decretação de prisão preventiva.

 

Poderão ser criados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, órgãos da Justiça Ordinária com competência cível e criminal, pela União, no Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher. Dando-se destaque, mais uma vez o que já estabelecia a Lei nº 9.099/95, onde os atos processuais poderão realizar-se em horário noturno, conforme dispuserem as normas de organização judiciária. Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher que vierem ser criados poderão contar com uma equipe de atendimento multidisciplinar, a ser integrada por profissionais especializados nas áreas psíco-social, jurídica e de saúde, nos termos da Lei de Diretrizes Orçamentárias, e ainda prevê curadorias e serviço de assistência judiciária (art. 29 e 34).

 

O critério de competência para os delitos definidos no Código de Processo Penal, art. 69, é alterado, dando-se prevalência ao local do domicílio ou da residência da vítima para o processamento e julgamento do feito (art. 15), deixando o local do fato ou do crime para segundo plano.

 

Todas as infrações de violência contra a mulher, passam a ser crimes de ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida, onde só se admite a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público. Não mais a renúncia tácita ou expressa particular ou privada.

 

Um detalhe importante é que todos os crimes existentes da legislação penal brasileira, seja aqueles tipificados no Código Penal ou em lei penal extravagante, praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995, mas sim a nova lei nº 11.340/06, em conjunto com as regras do Código de Processo Penal.

 

A alínea f do inciso II do art. 61 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), que se refere a circunstância agravante da pena passa a vigorar com a seguinte redação: “com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, ou com violência contra a mulher na forma da lei específica”

 

Já o art. 129 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), que tipifica o crime de lesão corporal passa a vigorar com as seguintes alterações, incluindo-se o “§ 9o “se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade”, cominando pena de detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos; e na hipótese do crime ter sido cometido contra pessoa portadora de deficiência, a pena será aumentada de um terço”.

 

O art. 152 da Lei no 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal), passa a vigorar com a seguinte redação: “nos casos de violência doméstica contra a mulher, o juiz poderá determinar o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação”.

 

O legislador tentou, através da nova norma, desburocratizar e agilizar o processo de julgamento dos crimes de violência contra a mulher, mas é preciso ressaltar que o sistema penal ainda mantém o regime aberto (art. 33, § 2º “c” do CP) para os delitos cujas sanções não ultrapassem a 4 (quatro) anos; ao nosso ver, na verdade, tem-se com esta nova norma positiva uma espécie de simples ampliação das medidas alternativas já existentes no Código Penal (Lei nº 7.209/84, com nova redação dada pela Lei nº 9714/1998, para o artigo 43). A nova lei nº 11.340/06, apenas aumentou a pena a prevista no artigo 129, que trata da lesão corporal e acrescentou na agravante da letra f já existente, o termo “violência contra a mulher”, conforme a previsão já existente na lei nº 10.886/04, que tipificou a violência doméstica, acrescentando os parágrafos ao art. 129 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, que criou o tipo especial denominado “Violência Doméstica”, o § 9º tinha a seguinte redação se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, cominando pena – detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano; e o § 10, nos casos previstos nos §§ 1º a 3º, que se refere a lesões de natureza grave, contra mulher, aumenta-se a pena em 1/3 (um terço).

 

Poder-se-ia dizer que a nova lei traz repetições e mais repetições de dispositivos legais já previsto em outras normas, e sem nenhuma preocupação quanto a técnica jurídica e legislativa, em total desconhecimento e descompasso quanto ao que se refere a prevalência das qualificadoras ante as circunstâncias agravantes genéricas, no momento da aplicação da pena pelo magistrado.

 

Um destaque importante que se deve considerar na nova lei, é a vedação da aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa (art. 17). É de se afirmar que a sanção de cesta básica foi uma invenção da jurisprudência brasileira, aos moldes do conhecido “jeitinho brasileiro”. Não existente na sistemática pátria, seja na Carta Magna, alíneas do inciso XLVI, do art. 5º, como no art. 32 do Código Penal, mas mesmo assim foi aceito pela magistratura e pelo Ministério Público, ao nosso ver, sanção aplicada incorretamente, por ser extra-legal.

 

Os Direitos Humanos das vítimas de violência familiar ou doméstica possuem prevalência, desta forma a ofendida deverá ser sempre notificada de todos os atos processuais relativos ao agressor, especialmente dos pertinentes ao ingresso e à saída da prisão, sem prejuízo da intimação do advogado constituído ou do defensor público. É a perspectiva de uma nova vitimologia à luz da justiça penal reparadora, construtiva e protetiva.

 

O juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, medidas protetivas de urgência, como a suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003; o afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida; bem como a proibição de determinadas condutas, entre as quais, a aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor; proibição do agressor freqüentar de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida.

 

O juiz criminal poderá ainda, quando necessário, sem prejuízo de outras medidas, encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento; determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos; e determinar de imediato a separação de corpos.

 

Sabe-se que o direito penal é uma disciplina de controle social, tem sido, por esta razão utilizada pela classe social dominante, através de discursos políticos flagrantemente demagógicos. Dizer agora, que com a vigência da nova lei nº 11.340/2006, apelidada de “Maria da Penha”, que tudo será resolvido com a mais perfeita ordem e eficiência, que não mais ocorreram delitos ou violência contra a mulher, não passa de falácia, sendo o mesmo que acreditar em um “direito penal preventivo” ou funcionalista capaz de reduzir as taxas de reincidência criminosa.

 

 

* Promotor de Justiça de Foz do Iguaçu-PR. Membro do Movimento Ministério Público Democrático.Professor Pesquisador e de Pós-Graduação (Especialização e Mestrado). Associado ao Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI). Pós Doutor em Direito. Mestre em Ciências Penais e Criminológicas. Expert em Direitos Humanos (Consultor Internacional das Nações Unidas – Missão MINUGUA 1995-96). Secretário de Justiça e Segurança Pública do Ministério da Justiça (1989/90). Assessor do Procurador-Geral de Justiça do Estado do Paraná, na área criminal (1992/93). Membro da Association Internacionale de Droit Pénal (AIDP). Conferencista internacional e autor de várias obras jurídicas publicadas no Brasil e no exterior. E-mail: candidomaia@uol.com.br

 

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Como citar e referenciar este artigo:
NETO, Cândido Furtado Maia. Violência Doméstica e os Direitos Humanos. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direitopenal-artigos/violencia-domestica-e-os-direitos-humanos/ Acesso em: 22 fev. 2025