Tales Castelo Branco, um criminalista modelo
Francisco César Pinheiro Rodrigues*
Sempre estranhei o contraste entre a redoma de silêncio em torno de pessoas vivas de grande valor e o estrondo de elogios — e mais: sinceros! — que se segue a seu falecimento. Por que não elogiaram antes?
Como os advogados jovens precisam de modelos de conduta, de estímulos, com o presente artigo acrescento um novo retrato à galeria de nomes inspiradores. Principalmente considerando a especialmente espinhosa — e ponha espinhos nisso… — profissão de advogado criminalista. Demonstra, também, que “abaixo do Equador” também florescem aqueles grandes “lawyers” e “counselors” tão admirados em livros e filmes americanos e ingleses, onde a justiça é respeitada (ao contrário do…). Brasileiros que já assistiram sessões júris na Inglaterra certamente ficaram impressionados com a frieza e objetividade com que trabalham os advogados ingleses. Advogadas moças com cara de fuinha, usando perucas brancas e falando tão baixo que a galeria mal pode ouvir, dissecam as provas apresentadas pela parte contrária. Sabem que as causas são ganhas com o uso da razão, não com surtos emocionais.
O modelo brasileiro, aqui, é o Dr. Tales Castelo Branco, que está vivo, goza de plena saúde e é um profissional realizado. Ainda em vida, é reconhecido como um grande criminalista. Preside o IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo, escreve obras jurídicas de peso — em público — e contos — em particular. É um homem realizado, feliz, cordial, muito firme — quando necessário —, e principalmente, um perfeccionista.
O leitor deve estar se perguntando: “Por que tanto elogio a esse criminalista? Não é ele o defensor de um cliente famoso a quem proibiu de responder perguntas na CPI?” É ele mesmo. E vou explicar aqui o direito e até mesmo o dever profissional do criminalista no que se refere a orientar o cliente, evitando que se prejudique.
Conheci Tales Castelo Branco logo após me formar. Não dispondo de colocação em um escritório de advocacia, e precisando “me iniciar” na profissão em um ponto qualquer, oferecia-me para defender gratuitamente réus pobres e indefensáveis, principalmente na Vara Auxiliar do Júri e no próprio Júri. Casos perdidos eram comigo mesmo. “Se ninguém quer, pode nomear o dr. Francisco”, dizia o simpático e algo sádico escrevente ao juiz. “Bombas” de todos os formatos, mas sempre “bombas”. Outros advogados, iniciantes, não aceitavam porque não queriam “se queimar” com muitas condenações. E, para agravar a situação, eu não tinha nenhum talento para a oratória em voga no júri. Emotiva, lacrimosa, cheia de “sangue quente, pulsante de vida”, adjetivos sanguíneos até hoje na moda, depois que o sangue realmente escorreu.
Lidava, preponderantemente, com homicidas não profissionais, que haviam sido dominados pelo ódio e, logo após o gesto louco, se arrependiam. Lembro-me de um senhor — não era meu cliente — que matou o sócio porque achava que estava sendo furtado. Ficou tão arrependido que, preso, suicidou-se atirando-se sobre a chapa aquecida de um grande fogão destinado a assar carnes. E mesmo quando o meu “assistido” era acusado de outros crimes, a impressão que surgia de alguns contatos é que a permanente falta de dinheiro contribuía muitíssimo para empurrar as pessoas para buscar, na marginalidade, o que não conseguira obter pelas vias normais. Havia, também, claro, os maus elementos — maus mesmo —, com uma certa “vocação” para violar todas as regras, legais e morais, mas esses geralmente tinham como conseguir um jeito de pagar advogados experimentados. Os “párias”, menos inteligentes e enérgicos, estavam sempre indefesos. Como eu dialogava mais com eles do que com os “espertos”, permaneceu em mim certa solidariedade para com os desgraçados. Minha única qualidade, embora involuntária — e portanto não meritória —, é a empatia para com os que estão por baixo, de uma forma ou outra.
Foi nessa época que tive alguns atentos contatos com o Tales Castelo Branco, que, embora trabalhando por conta própria, freqüentava um grande escritório, o do Américo Marco Antônio, um luminar da advocacia criminal em São Paulo. Naquela época eu já notava no Tales, em conversas informais entre colegas, precoce tendência à erudição e capacidade de bem ordenar o pensamento. Uma coisa depois da outra. Logicamente, sem atropelo, repetições e retornos ao que foi dito antes. E isso não era tão comum no grupo. Mesmo entre os advogados existiam os meio “loucões”, mais preocupados com frases de impacto.
Apreciava no Tales essa capacidade de bem ordenar a fala e os argumentos. Lendo algumas peças jurídicas suas, agora impressas, nota-se essa preocupação com o começo, meio e fim. Principalmente com a verossimilhança na explicação dos fatos. Qualidades essenciais na argumentação, em tribunais, cujos componentes encaram com sorrisos enigmáticos de Gioconda os por vezes encomendados e bem pagos arroubos “pulsantes” do defensor apoplético.
A verossimilhança não é uma qualidade recomendável apenas para romancistas. Advogados também devem ter a preocupação de não insultar a inteligência do julgador. O magistrado — em regra fortemente intelectualizado —, precavido por dever de ofício, habituado a ler versões bem antagônicas dos fatos, não pode nem deve ser tratado como um ingênuo, capaz de “engolir” qualquer explicação sem lógica. Se determinado prato de defesa é difícil de “engolir”, que não seja servido à mesa. Ou, se servido, que o seja com “molhos”razoáveis, argumentos com um mínimo de respeito para com a inteligência alheia. E o Dr. Tales, pelo que li dele, mantém essa compostura.
Naqueles tempos, havia outro advogado de júri invulgarmente inteligente, simpático e eloqüente, que merece, aqui, en passant, ser lembrado porque era também um homem de caráter, o Antonio Augusto de Almeida Toledo, o “Toledinho”. Nunca se interessou por escrever livros, achando, com razão, que já havia demais. Penso, lembrando-me de uma anedota, que se um cliente, aflito, telefonasse para ele às três horas da manhã dizendo que acabara de matar, com quatro tiros, o amante de sua mulher, o “Toledinho” o interromperia dizendo: ”Espera! Engano seu! Você pensa que o matou!”. O “Toledinho” era tão inteligente, tão bom argumentador que, guardando eventualmente na alma algum pecado menor — jamais fruto da maldade ou desonestidade —, conseguiria convencer o próprio São Pedro, porteiro do céu, de que seu passado era tão puro quanto seu coração. E São Pedro, mesmo tudo conhecendo, abriria suas portas, rindo, dominado por sua simpatia e bondade essencial.
Voltando ao Tales, estive presente, um ano atrás, no seu escritório, quando ele dialogava, pela primeira vez, com um cliente que lhe pedi para defender. Nessa oportunidade, Tales interrompia o novel constituinte quando ele insistia na sua inocência. Não queria saber isso. Queria conhecer os fatos, com exatidão, não a opinião do acusado sobre a própria culpa. Não era um julgador do réu. E quando o cliente, instintivamente, afastava-se de um detalhe mais espinhoso — como que ansioso para mostrar ao Tales o quanto era inocente —, nosso homenageado o forçava, com educação mas firme, a retomar o caminho da estrita e amarga realidade. Não agisse assim, estaria incompletamente senhor dos fatos, podendo ser surpreendido pela acusação. Parecia-me fazer questão de conhecer os fatos mais que a parte contrária. Queria conhecer todos os detalhes que poderiam, próxima ou remotamente, ajudar ou prejudicar a posição do cliente. Daí, talvez, sua fama de detalhista. Um modelo para aqueles jovens advogados que se sentem naturalmente inclinados para a quase sempre ingrata advocacia criminal. Uma simples minúcia pode, como se diz, “virar a mesa”. Tolstoi, o grande romancista russo, impressionava imensamente graças ao tremendo manuseio do detalhe. Mas detalhe e preguiça são incompatíveis.
Quem assistiu, na TV, a sessão da CPI mista em que um cliente famoso do Tales recusava-se a responder a inúmeras perguntas, dizendo cumprir ordem de seu advogado, deve ter tido má-impressão do papel dos criminalistas. Eu mesmo, particularmente, já sustentei, em artigo despretensioso, que o advogado, nas CPIs, não deveria poder interferir nem orientar o cliente no momento do depoimento, porque isso atrapalha a revelação da verdade. E interrogatório não é “mesa redonda” nem palco de ventriloquia. Minha anterior opinião teria pertinência se vivêssemos numa sociedade ideal, talvez futura, em que todos somente buscariam a própria transparência. Alguém acredita que os profissionais, em todas as áreas, dizem sempre a verdade, sacrificando lucros e vantagens na busca exclusiva da perfeição moral? Uma brevíssima consulta à própria consciência mostra que não é bem assim. Como dizia um livro e filme antigos, há,“Em cada coração, um pecado”.
Um médico famoso que for contratado ou designado para curar um ditador odiado estará proibido de utilizar sua “expertise” na cura do controverso paciente? O mesmo ocorre com o criminalista. Ele não age como juiz do cliente. A “luta pelo Direito”, pregada no Código de Ética, obrigará, por acaso, o criminalista a entrar com embargos declaratórios, pedindo aumento de pena do cliente, quando o juiz, na sentença condenatória, tiver esquecido — afinal, “errou” — de levar em conta uma circunstância agravante? O zelo pelo Direito ainda não chegou a esse ponto, em parte alguma do planeta. E convém lembrar que quando, eventualmente, um réu — realmente culpado — foi, por uma falha probatória qualquer, absolvido, não se pense que ele deixou de sofrer alguma forma de punição, ainda que não penal. Para pessoas “normais” — não marginais —, a simples existência, contra ele, de um processo criminal, geralmente longo, já é um castigo moral considerável. Uma espada de Dâmocles em infindáveis noites de insônia. Lembre-se que pelo menos uma “multa” ele pagou, obrigado a desembolsar os honorários contratados. Se, segundo a teoria penal mais moderna, o destino da pena é “recuperar”, o simples processo funciona, freqüentemente, como forte elemento de recuperação, se o réu não era um profissional do crime.
Nossa legislação tolera interferências do advogado quando o cliente depõe nas CPIs e o Tales seria um advogado omisso, fraco, se, por timidez, não utilizasse aquilo que a legislação autoriza ao advogado fazer, mesmo que isso inspire antipatia popular. O dever maior do advogado é usar seu saber jurídico e a boa psicologia em favor do cliente, desde que não viole a lei nem prejudique pessoas inocentes. E o Tales sabe muito bem agir assim no exercício da profissão que abraçou com entusiasmo e senso de proporção. Por tudo isso, fica aqui minha homenagem a esse grande e amável advogado que vem, há décadas, se dedicando à difícil tarefa de caminhar no fio da navalha, defendendo o homem que errou, ou foi vítima de um erro.
(19-01-2007)
* Advogado, desembargador aposentado e escritor. É membro do IASP Instituto dos Advogados de São Paulo. Website do autor: http://www.franciscopinheirorodrigues.com.br
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