Direito Penal

Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica

Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica

 

 

Pedro Luiz Mello Lobato dos Santos

 

 

Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica

 

Pretendemos demonstrar as possibilidades jurídicas de responsa-bilização da pessoa moral em âmbito penal. Para tanto, pretendemos destacar a relevância dos princípios gerais da atividade econômica com enfoque na defesa do meio ambiente. Certamente, porque, como asseverou o processualista Alexandre Câmara, a economia move a história e esta fundamenta a dinâmica social que impulsiona o direito. A fundamentação inicial deverá ter contornos nos princípios constitucionais, principalmente, quanto aos princípios de ordem econômico-ambiental.

 

Ultrapassado esses pontos, tratar-se-á de uma análise da responsabilidade geral do poluidor em contornos bem delineados no Direito Ambiental, caracterizando a ofensa ao bem jurídico ambiental e a conseqüente responsabilização nas esferas administrativa, civil e penal.

 

Em seguida, abordaremos, dentro da teoria geral do processo, as condições genéricas da ação penal, demonstrando a capacidade da personalidade jurídica da pessoa moral em responder a processo criminal, ou seja, demonstraremos a legitimatio ad causam passiva da pessoa jurídica em processo penal. Quer dizer, a possibilidade jurídica de esta figurar em pólo passivo no processo penal.

 

Analisar-se-á como tratou a responsabilidade penal a legislação ambiental que, por meio da lei 9605/98, inovou e declarou ser possível colocar a pessoa jurídica como sujeito ativo do crime que lesa este relevante bem jurídico de assento constitucional. É importante salientar a licença constitucional para que, dessa forma, dispusesse a famigerada legislação ambiental. Quais são as penalidades de ordem criminal e como podem ser imputados os fatos delitivos a pessoa jurídica.

 

Por fim, concluiremos o tema com a resposta da evolução da teoria do crime do Direito Penal, enfocando, principalmente, as inovações da doutrina com relação às teorias da culpabilidade, como elemento integrante do conceito analítico do crime.  Colocaremos em destaque os argumentos contrários e favoráveis, de acordo com análise minuciosa dos princípios constitucionais-penais garantistas  e das novas tendências de responsabilidade social que vem condicionando os aspectos punitivos do Direito Penal, conforme a sua elevação à categoria de segmento do direito que atua segundo os princípios gerais da política criminal.

 

 

Economia, Meio Ambiente e Direito

 

Os princípios gerais da atividade econômica definem que esta ordem deve assegurar a todos uma existência digna, valorizando o trabalho humano e a livre iniciativa, conforme os ditames da justiça social, observando a defesa do meio ambiente. Inclusive, mediante tratamento diferenciado, conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação.

 

É impossível imaginar uma sociedade moderna funcionar sem a existência de um sistema jurídico cuidadosamente formulado. Pretende-se demonstrar como alguns conceitos da teria econômica que envolvem o equilíbrio ambiental dependem da regulamentação das normas jurídicas, a fim de se estabelecer uma fonte econômica que não agrida o desenvolvimento sustentável. Ou seja, como os problemas econômicos afetam o elemento ambiental tendentes a modificar o quadro existente de normas jurídicas.

 

A ação do Estado, tanto do ponto de vista econômico quanto jurídico, supõe-se esteja voltada para o bem estar da população. O Direito tem como objeto o comportamento do homem em sociedade, devendo, portanto, as normas regularem as relações sociais. Sendo assim, normas constitucionais que visam à garantia do bem estar coletivo, finalidade do Estado Democrático de Direto, demonstram como o Estado deve intervir na economia para garantir um desenvolvimento sustentável.

 

Neste ínterim, a fim de garantir uma qualidade de vida razoável à população, os governos têm procurado criar normas jurídicas para proteger o meio ambiente. Sanções são criadas para punir homens e empresas poluidores. Tais normas, quando aplicáveis aos conglomerados de fornecedores de serviço fazem com que as empresas aumentem os gastos no modelo produtivo e, por conseguinte, incrementem tais valores no preço final do produto ou serviço, preço este que incide sobre a relação de consumo. Ainda assim, deve-se destacar um benefício social em termos de melhor qualidade de vida para a população como um todo. Doravante os modelos de produção e consumo não mais estejam interligados pelas necessidades humanas, tais modelos, hoje, atendem ao consumismo exacerbado imposto pela propaganda desmedida.

 

Diante deste quadro, percebe-se ser fundamental a intervenção do Estado para regular este modo de produção, condicionando as atividades empresarias aos requisitos impactantes no bem jurídico ambiental.

 

 

Dos Fundamentos Constitucionais

 

Da Ordem Econômica e Financeira

DOS PRINCÍPIOS GERAIS DA ATIVIDADE ECONÔMICA

 Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;

 

José Alfredo de Oliveira Baracho disserta que a relação entre a Constituição e o Sistema Econômico ou mesmo Regime Econômico, é freqüente nas constituições moderas, que contemplam pautas fundamentais em matéria econômica. Chega-se a falar que, ao lado de uma Constituição política, reconhece-se a existência de uma Constituição econômica.[1]

 

A Constituição trata de forma ampla a defesa do meio ambiente, como veremos mais a frente, dentro da ordem social. Observa-se que, para este fim, a EC. n°42/03 ampliou a defesa do meio ambiente, prevendo como princípio da ordem econômica a possibilidade de tratamento diferenciado, conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e dos seus processos de elaboração e prestação.

 

DO MEIO AMBIENTE

 

Art.225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

Com isso, a Constituição segue e até ultrapassa, as Constituições mais recentes e desenvolvidas, conforme ensina José Afonso da Silva:

 

“Na proteção do meio ambiente, toma-se consciência de que a qualidade deste se transformara num bem, num patrimônio, num valor mesmo, cuja preservação, recuperação e revitalização se tornaram num imperativo do Poder Público, para assegurar a saúde, o bem-estar do homem e as condições de seu desenvolvimento. Em verdade, para assegurar o direito à vida. “[2]

 

Partindo do conhecimento da extrema vulnerabilidade da natureza à intervenção tecnológica do homem, este está obrigado a inspirar as suas decisões com os olhos postos no provir, a fim de manter este planeta em condições de abrigar as futuras gerações. Por isso, o contexto contemporâneo é que constitui o horizonte relevante da responsabilidade de todos com este tema.

 

No âmbito constitucional, como assinala a maioria dos juristas, o capitulo do meio ambiente é um dos mais avançados e modernos do constitucionalismo mundial, contendo normas de notável amplitude e de reconhecida utilidade. No plano infraconstitucional, como reflexo e derivação dessa matriz superior, são igualmente adequadas e rigorosas as regras de proteção do meio ambiente e da qualidade de vida, em que pesem as dificuldades para tornar efetivos os seus comandos, em razão da crônica escassez de meios humanos e materiais, agravada pelo acumpliciamento criminoso de agentes públicos com notórios agressores da natureza. É contribuição da excelente obra do Ministro Gilmar Mendes e dos Procuradores da República Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Branco – Curso de Direito Constitucional.[3]

 

Trata-se de notável preocupação com os interesses difusos, em especial, com o meio ambiente equilibrado. Portanto, a Constituição de 1988 consagrou como obrigação do Poder Público à defesa, à preservação e à garantia da efetividade do direito fundamental no meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida.  Sendo assim, a Carta Política suscitou a utilização de todos os meios legislativos, administrativos e judiciais necessários à sua efetiva proteção, que possui um regime jurídico especial, segundo doutrina do constitucionalista Alexandre de Moraes, que exorbita o Direito Comum.[4]

 

 

Proteção do bem jurídico Ambiental

 

A estrutura finalística do direito ambiental, porquanto esse bem de uso comum do povo, para que se caracterize como um bem ambiental e seja traduzido como difuso, tem de ser essencial a sadia qualidade de vida.

 

O aspecto do termo coletivo, tem denotação mais ampla. Aqui, devemos compreender a lesão ambiental dentro dos conceitos trazidos pelo art.81 e seus incisos do Código de Defesa do Consumidor, quais sejam, os interesses e direito difusos, interesses ou direitos coletivos e os individuais homogêneos, transindividuais. Significa dizer que o desgaste ao bem jurídico ambiental transcende a lesão ao Estado brasileiro ou, simplesmente, não está só afeto ao bem-estar coletivo da sociedade brasileira, porquanto atinja de forma difusa todas as coletividades. O interesse transindividual, logo, é de natureza difusa, pois transcende a individualidade, ultrapassando o limite da esfera de direitos e obrigações de cunho individual. São interesses que depassam a esfera de atuação do conjunto de pessoas isoladas, para surpreendê-los em uma dimensão ainda maior. A lesão está difundida por todas as coletividades residentes neste planeta. Afetar o bem ambiental em solo nacional, significa dizer, por fim, que toda a comunidade mundial deva experimentar as conseqüências desta lesão.

 

A Constituição Federal trouxe, ainda, uma proteção, segundo o conceito do desenvolvimento sustentável, quando preconizou a imposição ao Poder Público e a coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

 

Destaca o ilustre Celso Antônio Pacheco Fiorillo, quanto ao desenvolvimento sustentável:

 

“Constata-se que os recursos ambientais não são inesgotáveis, tornando-se inadmissível que as atividades econômicas desenvolvam-se alheias a esse fato. Busca-se com isso a coexistência harmônica entre economia, direito e meio ambiente equilibrado. Permite-se o desenvolvimento, mas de forma sustentável, planejada para que os recursos hoje existentes não se esgotem ou tornem-se inócuos.”[5]

 

Portanto, os modelos de produção devem se adequar as necessidades básicas exigidas pela qualidade de vida do homem em sua dignidade fundamental. Em face da transformação social, política, econômica e tecnológica, percebeu-se a necessidade de um modelo estatal intervencionista, de forma suficiente, a se atingir a finalidade de reequilibrar o mercado econômico e estabelecer o bem ambiental estabilizado ao uso saudável por todos.

Conclui o autor Celso Antonio:

 

“a livre iniciativa, que rege as atividades econômicas, começou a ter outro significado. A liberdade de agir e dispor tratada pelo texto constitucional passou a ser compreendida de forma mais restrita, o que significa dizer que não existe a liberdade, a livre iniciativa, voltada a disposição de um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Este deve ser o objetivo. Busca-se, na verdade, a coexistência de ambos sem que a ordem econômica inviabilize um meio ambiente ecologicamente equilibrado e sem que este obste o desenvolvimento econômico.” [6]

Com estas palavras, percebemos a imprescindibilidade de se tratar o tema da responsabilidade penal da pessoa jurídica em consonância com os aspectos econômicos. A introdução das noções que, a todo tempo, são propedêuticas cujo fundamento encontra residência nos princípios constitucionais do meio ambiente equilibrado e do desenvolvimento econômico sustentável, é indissociável da apresentação do tema.

 

O fundamento constitucional foi lançado, quando elencado a demonstrar a relevância do bem jurídico ambiental. O norte legislativo deve ser guiado com estes conceitos aqui estabelecidos, pois, se o Direito Penal tem aplicação subsidiária frente aos demais ramos do direito, precisa-se frisar que estes não dão conta de proteger de forma suficiente o bem jurídico ambiental em face dos constantes ataques que o mesmo vem sofrendo em conseqüência de atividades econômicas desmedidas e até então desregradas quanto à punição criminal. 

 

 

Responsabilidade pelos Danos causados ao

Meio Ambiente

 

 Observe o art.225, §3° da Constituição Federal:

 

Art.225 – § 3º – As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.

 

A Constituição previu a tripla punição ao poluidor, seja ele tanto pessoa física quanto jurídica, do meio ambiente. Há sanção penal, por conta da responsabilidade penal prevista na Constituição e na lei 9605/98. Há sanção administrativa em decorrência da responsabilidade administrativa e há sanção civil, em razão da obrigação em reparar o dano causado.

 

O aspecto que une todas estas responsabilidades, sem dúvida, é a antijuridicidade, todavia, cada qual com suas peculiaridades. Dentre os critérios identificadores da natureza desses ilícitos, podemos identificar: o reconhecimento do objeto tutelado por cada área de atuação do direito e o reconhecimento do órgão competente a impor a persecução ao ilícito com a devida aplicação da penalidade correspondente.

 

Aqui, vislumbra-se a regra da cumulatividade das sanções, instituídas pela teoria da independência dos ramos do Direito, motivo pelo qual não há falar-se em bis in idem. As sanções civis, penais e administrativas, além de protegerem objetos diversos, a seu turno, cada uma está sujeita a um regime jurídico também diferente, embora a finalidade de todas se confundam na proteção do bem jurídico ambiental.

 

A responsabilidade civil decorrente dos danos causados ao meio ambiente é classificada como objetiva, porque independe da demonstração de dolo ou de culpa, ou seja, não se exige demonstração de elemento subjetivo para configuração desta modalidade.

 

A responsabilidade administrativa decorre de aplicação de sanções de ordem administrativa classificadas em lei, em virtude do princípio da legalidade, aplicadas por órgãos estatais vinculados direta ou indiretamente à entidade da Administração Direta respectiva. Aqui, vislumbra-se o exercício do Poder de Polícia da autoridade administrativa na concessão de licenças ou na punição ocasionada pelo ilícito.  Embora as sanções sejam de ordem administrativa, desça-se a necessidade de observância aos princípios de ampla defesa e do contraditório asseguradas pela Constituição, art.5°, LV.

 

Não obstante, o ordenamento jurídico pátrio levando em conta a repercussão social e a necessidade de uma intervenção mais severa do Estado, erigiu determinadas condutas mais ofensivas à categoria de tipos penais, sancionando o agente com multas, restrição de direitos e privação de liberdade. Trata-se da sanção de ordem penal.

 

Ademais, tendo em vista a falta de instrumentos compatíveis com a finalidade da sanção penal, tem o Estado procurado intervir apenas em situações que envolvam, em regra, ofensas de maior vulto à segurança da coletividade. É o princípio da intervenção mínima do Direito Penal que é tido como subsidiário frente aos demais ramos do Direito, uma vez considerada a sua ultima ratio.

 

Observe o art.5° da Constituição Federal que dispõe os direitos e garantias individuais e coletivos, o que definiu com relação aos atentados contra tais:

 

XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;

 

Verificada a importância do meio ambiente como direito fundamental, bem de uso comum do povo, o legislador infraconstitucional disciplinou os crimes ambientais preconizados na lei 9605/98. Lei esta que inovou e ousou, com a devida licença constitucional, ao declarar punível penalmente a pessoa jurídica.

 

 

Dos requisitos materiais da Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica pelos danos causados ao Meio Ambiente

 

As grandes degradações ambientais não ocorrem devido a ações isoladas, todavia constata-se que tal distúrbio vem sendo ocasionado por pessoas corporativas.

 

A penalização da pessoa jurídica foi uma inovação trazida pela Constituição Federal de 1988, quando assim declarou em seu art.225, §3°. Muita controvérsia se estabeleceu entre os penalistas que passaram a elencar conceitos teóricos que justificavam tal impossibilidade ou que fundamentavam a hipótese. Portanto, a possibilidade de a pessoa jurídica ser criminalmente responsabilizada não é pacífica.

 

Pondera-se que não é possível conceber um crime sem um substractum humano. Na verdade, o grande inconformismo da doutrina penal clássica reside na inexistência da conduta humana e a intranscendência da pena.

 

A política constitucional e infraconstitucional abriu tal possibilidade de punição, tendo em vista o grau de relevância do bem jurídico em perigo. Portanto, trata-se de política criminal, que, atenta aos acontecimentos sociais, ou melhor, a própria dinâmica que rege atualmente as atividades econômicas. Por isso, entendeu por bem tornar mais severa a tutela do meio ambiente.

 

Esta teoria foi tomada por empréstimo da doutrina francesa que adaptou o novo texto repressivo a esta nova ordem. No entanto, no Brasil, a hipótese abstrata não seguiu fielmente estes passos, porquanto não tenha havido uma preocupação de se criarem normas que esclareçam uma adequação da teoria do crime atual a nova ordem estabelecida.

 

Celso Antonio Pacheco Fiorillo, confiante na nova ordem constitucional e penal, assevera a problemática, destacando que:

 

“Inexistem normas que esclareçam a questão de sua culpabilidade e tampouco disposições processuais exclusivamente adaptadas ao processo crime da pessoa jurídica delinqüente.”

 

Ainda assim, data venia, seguimos confiante na evolução suficiente da teoria do crime, em especial no âmbito da constatação dos novos modelos da estrutura da culpabilidade, tendentes a alcançar o Direito Penal ao desenvolvimento de ciência mais ligada e incorporada as atividades de política criminal. Logicamente, que isso não significa dizer que tal modelo punitivo abre mão das garantias elencadas pelo devido processo legal, concernente à ampla defesa e ao contraditório, assegurados na Constituição Federal. Estabelece-se um grau de responsabilidade social das condutas lesivas destacadas pela ordem constitucional, principalmente, com relação às novas ordens de gerações de direitos fundamentais que o esquema jurídico contemporâneo tem nos apresentado.

 

Ademais, asseveramos que o modelo teórico, jurídico-normativo, vigente é capaz de esclarecer as dificuldades da transcendência da pena e estabelecer parâmetros confiáveis a denominar a conduta perpetrada pelos agentes, que, nesta qualidade, atuam em nome da pessoa moral. É o que passamos a dissertar.

 

 

Dos fundamentos contrários à Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica

 

Os principais fundamentos que são contrários a possibilidade de a pessoa jurídica ser criminalmente responsabilizada serão aqui elencados.

 

Nullum crimen sine culpa – A pessoa jurídica não tem vontade, suscetível de configurar o dolo e a culpa, indispensáveis presenças para o direito penal moderno. São os elementos subjetivos que compõem a conduta residente no fato típico. Com isso, passa-se a tornar o Direito Penal mais garantista, porquanto se tenha legalizado a intenção subjetiva do agente, ou seja, para que haja fato típico, deve haver uma conduta comissiva ou omissiva, dolosa ou culposa, perpetradas por um ser humano.  Percebe-se que tal elemento subjetivo, devido ao dolo natural, pretende compor a finalidade da ação que deve estar dirigida a produção de um resultado lesivo a um bem jurídico protegido na legislação penal.

 

A Constituição Federal não autorizou expressamente a responsabilidade penal da pessoa jurídica, sendo que os dispositivos das normas contidas nos artigos 225, §3° e 173, §5° seriam meramente declaratórios. Destacamos a posição de José Antonio Paganella Boshi:

 

“O texto do §3° do art.225 da Constituição Federal apenas reafirma o que é do domínio público, ou seja, que as pessoas naturais estão sujeitas a sanções de natureza penal e que as pessoas jurídicas estão sujeitas a sanções de natureza administrativa. O legislador constituinte, ao que tudo indica, em momento algum pretendeu, ao elaborar o texto da Lei Fundamental, quebrar a regra por ele próprio consagrada – art.5°, XLV – de que a responsabilidade penal é, na sua essência, inerente só aos seres humanos, pois estes, como afirmamos antes, são os únicos dotados de consciência, vontade e capacidade de compreensão do fato e da ação (ou omissão) conforme ou desconforme ao direito.”[7]

 

As penas destinadas à pessoa jurídica não poderiam ser privativas de liberdade que constituem o cerne das punições do Direito Penal. Afinal, aduz-se que, para aplicação de multa, bastaria o disposto no Direito Administrativo ou Civil.

 

As penas são personalíssimas, de forma que a punição a uma pessoa jurídica certamente atingiria o sócio inocente, que não tomou parte na decisão provocadora do dano ambiental.

 

O sujeito ativo do crime, segundo o penalista Rogério Greco, é aquele:

 

“que pode praticar a conduta descrita no tipo. Muitas vezes o legislador limita a prática de determinadas infrações penais a certas pessoas e, para tanto, toma o cuidado de descrever no tipo penal o agente que poderá levar a efeito a conduta nele descrita. Quando estamos diante dos chamados crimes comuns, o legislador não se preocupa em apontar o sujeito ativo, uma vez que as infrações dessa natureza podem ser cometidas por qualquer pessoa. Surge essa necessidade quando o delito é próprio, ou seja, aquele que somente pode ser praticado por um certo grupo de pessoas em virtude de determinadas condições pessoais. Nesses casos, quando estivermos diante de delitos próprios, o legislador terá de apontar, no tipo penal, o sujeito ativo.”[8]

 

Aduz ainda o renomado autor que o sujeito ativo só poderá ser o homem, complementando que a pessoa jurídica não comete crime. Quem poderia praticá-los seriam somente seus sócios. Societas delinquere non potest.

 

O sujeito ativo do delito não pode ser considerado como sendo somente aquele que tem uma conduta comissiva ou omissiva. De certa forma, até podemos assim considerar se levarmos em conta somente as características descritas no tipo penal incriminador. Certamente, porque, há um conjunto de normas de subordinação mediata que caracterizam a tipicidade como indireta que amoldam condutas não descritas no tipo, como condutas capazes de culpabilizar aquele que, de qualquer forma, concorre para a produção do resultado pretendido pelo agente do crime.  Estamos falando, por exemplo, dos casos do concurso de agentes pela participação, descrita no art.29 do Código Penal; ou, se se tratar de caso de tentativa, descrita no art.14 do mesmo estatuto. Não obstante, aquele que auxilia outrem na prática de crime, quer fornecendo apoio moral, quer fornecendo os instrumentos necessários a efetiva prática do crime, não pratica a conduta descrita no tipo penal incriminador, porém, não deixa de ser responsabilizado, devido à norma de extensão aqui festejada.

 

Ademais, há necessidade, conforme a teoria final da ação, do incremento do elemento subjetivo na conduta. Elemento este que deve vir previsto também no tipo penal incriminador, segundo o princípio da legalidade. Talvez este seja o maior entrave à possibilidade de responsabilizar a pessoa jurídica criminalmente, pois esta, diante de toda e qualquer hipótese, não tem consciência, portanto, não pode dirigir a gestão de seus negócios, a fim de estabelecer critérios delituosos para alcançar seu fim imediato, qual seja: o lucro.

 

Mais a frente, quando comentarmos a teoria do atuar por outro, veremos que a qualidade da omissão imprópria que os dirigentes assumam e, conseqüentemente, a pessoa jurídica também o faça, possibilita que sua finalidade precípua confirme sua intenção delitiva, porquanto, para obtenção do lucro, está disposta a corporação a lesionar o bem jurídico ambiental. Pensar de forma diversa é possibilitar a pessoa jurídica obter lucro transcendendo os limites legais e, para tanto, não haja uma responsabilização criminal adequada a sua personalidade.

 

Luiz Regis Prado, comentando acerca do dispositivo constitucional do art.225, §3°, definiu que:

 

“Mesmo que – ad argumentandum – o dizer constitucional fosse outro sentido – numa interpretação gramatical (a menos recomendada) diversa –, não poderia ser aceito. Não há dúvida de que a idéia deve prevalecer sobre o invólucro verbal.”[9]

 

Antes de analisar a jurisprudência destacada do Superior Tribunal de Justiça, colocamos que tal entendimento já foi revisto, sendo que a interpretação sobre o tema já houve mudado, como iremos apreciar em tópico oportuno:

 

REsp.622.724-SC – STJ – 5°turma

PENAL E PROCESSUAL PENAL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM RECURSO ESPECIAL. CRIMES CONTRA O MEIO AMBIENTE. DENÚNCIA. INÉPCIA. RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA RESERVA DE PLENÁRIO. INCONSTITUCIONALIDADE DE LEI OU ATO NORMATIVO NÃO DECLARADA. REDISCUSSÃO DA MATÉRIA. IMPOSSIBILIDADE.

II – Não há que se falar em violação ao princípio constitucional da reserva de plenário (art. 97 da Lex Fundamentalis) se, nem ao menos implicitamente, foi declarada a inconstitucionalidade de qualquer lei.

III – É nítida a pretensão do embargante em rediscutir a matéria já exaustivamente apreciada, quando argumenta que o acórdão embargado deixou de aplicar o disposto no art. 3º da Lei nº 9.605/98 em razão da interpretação dispensada ao art. 225, § 3º, da Carta Magna, todavia para o presente fim não se presta o incidente de esclarecimento.

IV – Em momento algum, frise-se, a quaestio foi decidida à luz de dispositivos constitucionais, porquanto, apenas procurou-se demonstrar que a responsabilidade penal se fundamenta em ações atribuídas às pessoas físicas. Destarte a prática de uma infração penal pressupõe necessariamente uma conduta humana. Logo, a imputação penal às pessoas jurídicas, carecedoras de capacidade de ação, bem como de culpabilidade, é inviável em razão da impossibilidade de praticarem um injusto penal.

Embargos de declaração rejeitados.

 

Trata-se de embargos de declaração ofertados pelo Ministério Público em persecução penal in judico, em que se pretendia neste Superior Tribunal o embargante rediscutir a matéria já exaustivamente apreciada, quando argumenta que o acórdão embargado deixou de aplicar o disposto no art. 3º da Lei nº 9.605/98 em razão da interpretação dispensada ao art. 225, § 3º, da Carta Magna.

 

Em seu voto, o Ministro Felix Fischer fundamentou a decisão no sentido de que o legislador brasileiro copiou o francês, sem, contudo, fazer as adaptações necessárias no âmbito do processo penal. Ademais, pelo sistema constitucional-penal garantista somente a conduta humana poderia, de forma finalistica, produzir um resultado típico lesivo ao meio ambiente.

 

Em que pese esta jurisprudência recente e ultrapassada, veremos mais a frente que as condições da ação, concomitantemente, a personalidade da pessoa jurídica, confirmada por um conceito teórico de realidade, viabilizam a possibilidade de esta figurar em processo criminal, bem como são viáveis as formas de execução penal nesta hipótese, quando adequadas doutrinariamente a sua pessoa.

 

Colacionamos o entendimento do grande penalista Rogério Greco que, quanto à questão abordada, raciocina da seguinte forma:

 

“…entendemos que responsabilizar a pessoa jurídica é um verdadeiro retrocesso em nosso Direito Penal. A teoria do crime que temos hoje, depois de tantos avanços, terá de ser completamente revista para que possa ter aplicação a lei 9605/98. Isso, porque, conforme frisou o Min. Cernicchiaro, já encontraremos dificuldades logo no estudo do fato típico. A pessoa jurídica, como sabemos, não possui vontade própria. Quem atua por ela são seus representantes. Ela como ente jurídico, sem o auxílio das pessoas físicas que a dirigem, nada faz. Não se pode falar, portanto, em conduta da pessoa jurídica…”[10]

 

Aduz, ainda o renomado autor, acerca do princípio da intervenção mínima, confirmando-se que já é suficientemente rápido o Direito Administrativo para inibir qualquer atividade lesiva praticada pela pessoa moral. Salienta que o Direito Penal é ultima ratio, de modo que os demais ramos do direito são suficientes dentro desta abordagem a proteger o bem jurídico em destaque. Conclui, afirmando que o Direito Administrativo faz estabelecer às autoridades administrativas um poder de polícia auto-executório capaz de dar a medida exata de eficiência na aplicação de punições desta ordem. Por fim, a pessoa jurídica não tem capacidades físicas de absorver uma restrição corporal, tendente a concluir por sua privação de liberdade.

 

Obviamente, o poder de polícia é fundamental a dar ordem de forma auto-executória as atividades emanadas das autoridades públicas, como também são dotadas de poder coercitivo necessário a aplicar sanções desta ordem. Porém, é perfeitamente cabível a coexistência deste ataque administrativo em concomitância com a persecução criminal in judicio ou et extra, sem deixar de considerar todo o arcabouço de garantias constitucionais conferidos ao réu no devido processo legal, assegurados a ampla defesa e o contraditório. Estamos aqui destacando que é possível cumular estas ordens sancionatórias, sem deixar de esclarecer que ainda concorrem as sanções oriundas da responsabilidade civil.

 

Com relação à lesividade do bem jurídico ambiental, dispõe-se que transcende a proteção conferida pelos demais ramos do direito, no sentido de que estes falharam ao tentar protegê-lo, porquanto possamos notar ainda existirem, diuturnamente, constantes ataques a este direito fundamental que se confunde com o meio ambiente. Por isso, muito pelo contrário, o caráter fragmentário do Direito Penal fundamenta a sua atuação para reprimir e prevenir eventuais abusos, inclusive os perpetrados pela pessoa moral.

 

As mais duras e severas críticas emanam dos ensinamentos dos ilustres Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli, em defesa acalorada da tese garantista desenvolta ao redor da teoria do nullum crimen sine conducta, asseverando ser esta uma garantia jurídica elementar. A obra em destaque é o excelente Manual de Direito Penal Brasileiro:

 

“Quem quiser defender a vigência de um Direito Penal que reconheça um mínimo de respeito à dignidade humana, não pode deixar de reafirmar que a base do delito – como iniludível caráter genérico – é a conduta, identificada em sua estrutura ôntico-ontológica. Se esta estrutura é desconhecida, corre-se o risco de salvar a forma mas evitar o conteúdo, porque no lugar de uma conduta humana se colocará outra coisa.”[11]

 

Para os renomados autores a conduta, sob o aspecto ôntico-ontológico, tecnicamente expressa completa identidade entre esta e o delito, ou seja, coaduna-se este conceito com o jurídico-penal. Portanto, a conduta confunde-se com o delito ou não, isto é, não pode haver delito sem conduta.

 

Aduzem os excelentes autores que a pretensão de punir as pessoas jurídicas, em particular as sociedades mercantis, sob o argumento político-penal do auge da delinqüência econômica tem acúmulo da teoria Kelseniana, segunda a qual – no cúmulo do formalismo jurídico – as pessoas físicas e jurídicas não são mais que feixes de direitos e obrigações, ou seja, pontos de imputação. A conduta humana, no entanto, não teria seu equivalente no ato jurídico da empresa, isso porque, não se poderia falar na vontade em sentido psicológico no ato da pessoa jurídica.

 

E acrescentam:

 

“Os argumentos políticos-penais para sustentar a responsabilidade penal das pessoas jurídicas também não passam de argumentos de efeito e, no fundo, falsos. Afirmar que a pessoa jurídica não pode ser autora de delito não implica negar a possibilidade de punir seus diretores e administradores, nem que a pessoa jurídica possa ser objeto de sanções administrativas que, em substância, não podem ser diferentes das que pretendem legislar em sede penal (multa, suspensão da personalidade, intervenção, dissolução). Tampouco prejudica nossa posição o fato de que as sanções administrativas poderiam ser aplicadas pelo próprio juiz penal, pois trata-se de uma mera questão de competência jurisdicional.”[12]

 

Outro ponto colocado de forma contrária a responsabilidade penal da pessoa jurídica seria, ainda, conforme os princípios constitucionais, a impossibilidade de imputar objetivamente um fato definido como crime, ausentes os conceitos subjetivos da conduta, ou seja, a responsabilidade desapercebida do dolo e da culpa.

 

Observa-se este efeito no dissertar de Luiz Vicente Cernicchiaro:

 

“Os princípios, contudo, formam um sério obstáculo. Um deles, viu-se, é o princípio da responsabilidade pessoal – fixa a relação psicológica entre o homem e a conduta – ao lado do princípio da culpabilidade.” “A culpabilidade – tome-se o vocábulo no sentido do elemento subjetivo, ou significando reprovabilidade – é própria do homem. Não se censura a pessoa jurídica mas sim quem atua em seu nome.”[13]

 

Trata-se de uma das vertentes do princípio da culpabilidade: não há responsabilidade penal objetiva, esta deve ser eivada de elementos psicológicos que conduzem a conduta a estar impregnada por elementos subjetivos que reflitam as definições jurídicas do dolo e da culpa. Como a pessoa jurídica não teria vontade, tampouco conduta, somente poderia delinqüir se fosse responsabilizada objetivamente pelos danos causados, como ocorre na esfera civil.

 

Destacamos que a pessoa jurídica, em especial, a sociedade, tem finalidade determinada para obtenção de lucro. Por isso, façamos confundir esta intenção com sua vontade, porquanto, em determinados momentos, tal finalidade encontra-se tão exacerbada que esbarra as atividades desta pessoa nos danos à ordem econômica ou ao meio ambiente.

 

Ademais, em fase de responsabilidade civil, há hipóteses em que a pessoa jurídica somente é responsabilizada se comprovado dolo ou culpa por parte do funcionário que age, nesta qualidade, representando suas ações. Não se trata de relação de consumo, tampouco de responsabilidade ambiental, em que a responsabilidade é objetiva. Porém, longe destas situações, a responsabilidade é aferida segundo o ato ilícito perpetrado por seus agentes, quer pela intenção direta em promover dano, quer pelo resultado produzido pela negligência, imprudência ou imperícia, o que é percebido, principalmente, no direito civil obrigacional.

 

Por fim, colaciona-se o entendimento de que punir a pessoa jurídica seria o mesmo que punir o sócio administrador, que veria o patrimônio deste ente ser prejudicado e, por sua vez, ele próprio seria alvo do prejuízo. Seria, portanto, uma afronta ao princípio da intranscendência, por meio do qual, a pessoa do delinqüente não pode ser ultrapassada para se punir terceiros, se o resultado somente foi causado por finalidade da conduta exclusiva daquele. É o que dispõe o art.5°, XLV, da Constituição Federal:

 

XLV – nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido;  

 

Em interessante lição, o Juiz de Direito Guilherme de Souza Nucci assim respondeu:

“Se as penas são personalíssimas de modo que a punição a uma pessoa jurídica certamente atingiria o sócio inocente, que não tomou parte na decisão provocadora do crime, logicamente, é preciso destacar que a sanção incidirá sobre a pessoa jurídica, mas não sobre o sócio especificamente. Se este vai ser prejudicado ou não pela punição é outro ponto, aliás, fatal de ocorrer em qualquer tipo de crime. Se um empresário ou um profissional liberal for condenado e levado a prisão, pode sua família sofrer as conseqüências, passando privações de ordem material, embora não tenha participado da prática da infração penal.”

 

Concordamos com o autor, certamente, porque o dever do sócio gerente é fiscalizatório, ou seja, deve este controlar todas as atividades desempenhadas pela empresa, a fim de que não se admita qualquer tipo de conduta realizada por seus funcionários tendentes a lesionar bens jurídicos tais como a ordem econômica, a ordem de consumo ou mesmo o meio ambiente. Ademais, comprovada a sua omissão, esta é relevante para o Direito Penal e, de acordo com o acervo probatório, será o sócio penalizado por sua omissão como se estivesse efetivamente cometido o delito. Confirmar o contrário é admitir o empresário se esconder por trás da pessoa jurídica para cometer crimes, o que é muito comum, principalmente, quando se tratar de delitos de ordem econômica- financeira.

 

 

Da Pessoa Jurídica Delinqüente e Da Teoria do Crime

 

As pessoas jurídicas têm vontade, não somente porque têm existência real, mas porque forçam o seu reconhecimento. Sérgio Salomão Shecaira, em sua obra Responsabilidade penal da pessoa jurídica, ensina que elas fazem com que se reconheça a sua vontade, não no sentido próprio que se atribui ao ser humano, resultante da própria existência natural, mas em um plano pragmático-sociológico, reconhecível socialmente. Essa perspectiva permite a criação de um conceito novo denominado ação delituosa institucional, ao lado das ações humanas individuais.[14]

 

As penas privativas de liberdade não são o cerne do Direito Penal, portanto não seja esta modalidade de pena a única característica marcante deste ramo da ciência jurídica. Atualmente o desenvolvimento penal garantista, devido ao fundamento constitucional que se resta estabelecido, tem afastado até mesmo da pessoa física a pena de encarceramento, porque muitas vezes não é reeducativa e perniciosa para a ressocialização.

 

Ademais, a Constituição Federal nos arts. 173, §5° e 225, §3°, após ter elencado os bens jurídicos da ordem econômica e do meio ambiente, respectivamente, como relevantes, declarou estar apto o Direito Penal a cuidar da responsabilidade criminal da pessoa jurídica nestes casos. Observe:

 

Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.

§ 5º – A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular.

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

  § 3º – As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.

 

Trata-se do princípio da referência constitucional, segundo o qual toda e qualquer criminalização deve ter na Constituição Federal os elementos e referências, aliados ao princípio da necessidade, ou seja, ter como preocupação limitar-se a tutelar os bens constitucionais. Ora, não há dúvidas com relação à relevância do bem jurídico econômico, tampouco acerca do bem jurídico ambiental. Neste sentido, a legislação infraconstitucional, lei 9605/98, destacou a possibilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica. No entanto, não o fez a legislação que trata dos crimes contra a ordem tributária, ordem financeira, relações de consumo e economia popular. Motivos estes que, aliados ao princípio da legalidade e ausência de norma de extensão que possibilite tal tipo de punição, ainda, nestes casos, não é punível criminalmente a pessoa jurídica, por ausência de previsão legal, embora haja licença constitucional para tanto, conforme o art.173, §5°, supramencionado.

 

Como já afirmado, a pessoa jurídica, em especial a sociedade legalmente instituída, tem finalidade econômica, ou seja, seu objeto principal é o lucro. É contraditório, para não dizer obscuro, dissertar no sentido de que a pessoa jurídica não tem vontade própria para delinqüir, mas, no ato de sua criação, esta já nasce com finalidade econômica bem definida. Em certos aspectos, a obtenção de lucro se torna tão evidente e necessária que as atividades da empresa acabam esbarrando nos limites da legalidade, quer quando frustram os pagamentos de tributos ou lesionam a ordem de consumo, quer quando não investem o necessário para criar parâmetros de impacto ambiental, lesionando, por fim, o meio ambiente. Será possível definir que a finalidade das ações perpetradas pelos agentes desta pessoa jurídica não tinham objetivos econômicos?

 

Ademais, já destacamos também, que nem sempre a responsabilidade civil da pessoa jurídica é dita objetiva, por isso, em alguns casos, deve-se perseguir o elemento subjetivo dos agentes que atuaram representando a empresa, a fim de que se possa responsabilizá-la pelos danos causados a terceiros, o que é muito comum, em âmbito do direito obrigacional. Será que se não está avaliando o elemento subjetivo da atuação empresarial? Por que não o fazer em sede penal.

 

Ainda, no campo da conduta, passamos a dissertar acerta das normas de extensão que possibilitam aos agentes praticar crimes, sem que, para tanto, tenham que realizar os elementos objetivos constantes nos tipos penais incriminadores. É o que se estabelece na tipicidade indireta. Podemos perceber este tipo de norma quando o direito regula, na parte geral, os casos de concurso de agentes pela participação delituosa, casos de tentativa ou as omissões qualificadas. Aproveitamos aqui o concurso de pessoas e as omissões relevantes impróprias. Define o art.29 do Código Penal que: quem de qualquer modo, concorre para o crime, incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade. Deixando os aspectos da culpabilidade de lado, por enquanto, foquemos a primeira parte da cabeça do artigo citado. Com esta construção teórica, define-se que há auxílio moral e material dispensados pela pessoa jurídica aos agentes que, nesta qualidade, atuam em sua representação, quando não é possível destacar que diretamente a pessoa jurídica representa o próprio mandante do delito, no momento em que estabelece os critérios obrigatórios aos seus agentes para atuar criminosamente. Neste sentido, os sócios-administradores são responsáveis diretos pelos fatos lesivos, bem como também o é a pessoa jurídica. Seria forma de conduta comissiva.

 

Ainda se vislumbra uma conduta omissiva que, devido à sua relevância, observa-se o delito comissivo por omissão cujos sujeitos ativos podem estar representados tanto pela pessoa jurídica quanto pelos sócios gerentes. O art. 13, §2°, do Código Penal define que a omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. Certamente, o dever de agir na obrigação de cuidado e na proteção exigidos pela lei tem destino certo aos administradores e a pessoa jurídica, bem como estes, devido ao risco do empreendimento, possuem a responsabilidade de impedir o resultado ou, por fim, se criaram risco da ocorrência do resultado com seu comportamento anterior. A exigência destes requisitos não é cumulativa. Incorrendo em uma dessas hipóteses, passam a ser responsáveis os administradores ou as pessoas jurídicas, conforme o caso, ou até ambos. Todavia, se a conduta do funcionário está completamente isolada das exigências impostas pelos administradores ou pela política da empresa, há que se afastar a responsabilidade de ambos, uma vez que a atividade desempenhada pelo agente resta dissociada do exercício da sua função no negócio proposto. Inclusive, há ocasiões em que as normas internas da empresa proíbem a conduta praticada por este funcionário. Aqui, esclarecemos que, permitir a punição criminal da pessoa jurídica, ofenderia o princípio da culpabilidade, porque se confundiria com uma imputação objetiva, logo inconstitucional a persecução penal além daquele que provocou o resultado lesivo.

 

A culpabilidade como princípio possui três vertentes. A proibição da responsabilidade objetiva, exigindo-se elemento subjetivo na conduta; o fundamento da aplicação da pena na exigência de sua individualização, como assevera o art.59 do Código Penal; e a culpabilidade inerente a espécie que forma o conceito analítico do crime.

 

Como salientam os autores, para se definir o grau de evolução do Direito Penal, devem-se identificar quais são as teorias adotadas pelo Código repressivo a formar o conceito teórico da culpabilidade.

 

A maior parte da doutrina esclarece ter o Código Penal brasileiro adotado a teoria finalista, mediante a qual a culpabilidade, o juízo de reprovação pessoal, o desvalor da conduta que gera o resultado lesivo, grau de censurabilidade social da conduta, é regida por uma teoria normativa pura, ou seja, não há um elemento subjetivo na avaliação da culpabilidade da pessoa. Outrora, quando o Código adotava a teoria causal, tínhamos uma culpabilidade puramente psicológica que evoluiu a uma qualidade de elemento normativo psicológico, teoria neo-causal. Isso porque, o dolo e a culpa eram avaliados em sede de culpabilidade, mas não no fato típico, como ocorre no direito contemporâneo. Tínhamos o chamado dolus malus, porque dentro do elemento subjetivo existia outro de natureza normativa que se confundia com a potencial consciência da ilicitude.

 

Portanto, com o advento da teoria finalista, o dolo e a culpa migraram para o fato típico, mais especificamente para a conduta. Hoje, não há mais como se avaliar a tipicidade dissociada do elemento psicológico impregnado na conduta, pois o agente que não age com finalidade de danificar o bem jurídico protegido pela norma, ou que não age com a falta de cuidado exigido pela lei, não estará praticando um crime. Ampliou-se o conceito de legalidade penal e o direito passou a ser mais garantista. Por isso, a intenção do agente deve estar em conformidade com a previsão da lei.

Pois bem, surgem duas novas teorias. A teoria social da ação e a teoria funcionalista. Por aquela, a relevância social da ação é verificada à medida que a conduta produza efeitos danosos na relação do indivíduo com o ambiente social em que está inserido. Destaca-se que o dolo e a culpa, como elementos subjetivos, passam a ostentar uma dupla posição. Estão presentes no fato típico e na culpabilidade. Portanto, sua segunda avaliação teria o condão de estabelecer critérios mais bem definidos para a individualização da pena.

 

Conforme a teoria funcionalista, confirmada pelas questões que a imputação objetiva pretende resolver, dá ao fato criminoso o limite da relevância causal, no sentido em que se avalia a função social do agente e a relação material da sua conduta com os crimes de resultado. Portanto, o Direito Penal passa a ser ampliado à categoria de responsabilidade. Ademais, passa-se a estabelecer a culpabilidade a uma forma de responsabilidade que afere, segundo o desvalor da conduta, uma necessidade preventiva da pena. Ou seja, o Direito Penal começa a ter maior influência dentro dos aspectos da política criminal e do estudo da criminologia.

 

Ambas as teoria são duramente atacadas pela doutrina, porque, segundo os autores, o direito passaria a ser mais volátil, criando-se maior instabilidade do ordenamento jurídico, devido à insegurança de conceitos doutrinários e jurídicos indefinidos. Não acreditamos seja assim. Confiamos que o Direito Penal brasileiro não tenha se inclinado por um única escola com exclusividade. O referido Código parece aproximar-se da teoria social da ação, ao exigir que o juiz avalie o grau de culpabilidade do agente, para graduar a pena, para definir com contornos mais bem definidos a individualização desta. Observe o art.59 do Código Penal:

 

 

DA APLICAÇÃO DA PENA

Fixação da pena

Art. 59 – O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: (grifo nosso)

 

Outra forma de mensuração da culpabilidade exigida pela lei é a avaliação da medida da culpabilidade para responsabilizar um co-autor ou um partícipe. Art.29 do mesmo diploma legislativo.

 

Na avaliação da culpabilidade, o exame do dolo e da culpa é indispensável, por isso se infere que o dolo e a culpa não são somente avaliados no tipo, mas também na culpabilidade. Certamente, porque devemos concluir que é mais grave, censurável, um dolo direto do que o dolo eventual, bem como é mais culpável a culpa consciente do que a inconsciente. Dessa forma, apoiamo-nos nos ensinamentos de Júlio Fabrinni Mirabete.[15] O apoio também vem destacado nos ensinamentos de Heleno Cláudio Fragoso.[16]

 

Portanto, dentro da estrutura do conceito analítico do crime, não vimos impedimentos a colocação da responsabilidade penal da pessoa jurídica. Ademais, percebemos não ser um retrocesso a sua responsabilidade, tampouco acreditamos que os conceitos trazidos pelas novas teorias da culpabilidade sejam indefinidos ou inseguros juridicamente. A tendência doutrinária, teórica e até jurisprudencial já colocam a responsabilidade da pessoa jurídica no cerne do ordenamento jurídico, a fim de aplicar repressiva e preventivamente entraves aos delitos ambientas.

 

 

Legitimatio ad causam passiva da pessoa jurídica

 

A teoria geral do processo identifica elementos essenciais ao regular exercício do direito da ação. A ação é direito público subjetivo que no caso é exercida exclusivamente pelo órgão do Ministério Público, art.129, I, da Constituição Federal, por se tratarem os delitos ambientais, os crimes são de ação penal pública incondicionada.

 

As condições da ação, de forma genérica, são as seguintes: legitimidade ativa, interesse de agir, possibilidade jurídica do pedido e a justa causa.

 

Com relação à possibilidade jurídica do pedido, confirmamos ser viável o pedido condenatório da pessoa jurídica, tendo em vista que a legislação ambiental adequou as penas dos crimes ambientais às pessoas jurídicas. No caso, as penas que esta pode experimentar são: a prestação de serviços à comunidade; a interdição temporária de direitos; a suspensão total ou parcial das atividades; e a prestação pecuniária.

 

Logicamente, se o pedido condenatório elencar uma pena restritiva de liberdade a pessoa jurídica, este pedido, por evidente, será impossível, por isso a ação penal não cumprirá seu ciclo completo de formação; sendo, portanto, considerada inepta. Observe o que dispõe o Código de Processo Penal reformado, com relação às condições da ação:

 

Art. 395.  A denúncia ou queixa será rejeitada quando: 

I – for manifestamente inepta; 

II – faltar pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal; ou  

III – faltar justa causa para o exercício da ação penal. (grifo nosso)

 

O revogado art.43 do mesmo estatuto legislativo dispunha que a denúncia ou queixa seria rejeitada quando for manifesta a ilegitimidade da parte. Tal entendimento, portanto, permanece, uma vez que o art.395, II, acrescentado pela lei 11719/08, que reformou o Código de Processo Penal, apoiou-se na construção doutrinária exigindo uma interpretação sistemático-teleológica para incluir a legitimidade da parte dentro da condição de exercício da ação penal.

 

Segundo o grande processualista Paulo Rangel, a legitimidade ad causam passiva faz com que a ação seja proposta em face do autor do fato. Acrescenta que:

 

 “A questão da possibilidade de poder ser a pessoa jurídica ré em uma ação penal, hodiernamente, é aceita pela nova ordem constitucional. O preceito do art.173, §5° da CRFB adotou a chamada teoria da realidade, de Otto Gierke, em que, sem sombra de dúvidas, adota a responsabilidade penal dos entes jurídicos, remetendo à lei ordinária a tarefa de estabelecer os tipos e as conseqüentes sanções compatíveis com sua especial natureza.”[17]

 

Recomenda o renomado autor que a criação da lei 8137/90 autorizaria a possibilidade da responsabilidade da pessoa jurídica pelo cometimento dos crimes contra a ordem tributária, ordem econômica e as relações de consumo. Porém, ousamos divergir com relação à legislação penal extravagante apontada, porquanto esta não tenha trazido em seu bojo a festejada norma de extensão que viabilize a pessoa jurídica ser sujeito ativo destes tipos de crimes, como, aliás, fê-lo a lei 9605/98 em seus arts. 2° e 3°, com a devida licença constitucional, conforme anteriormente abordado.

 

A pessoa jurídica tem uma qualidade que é marcante, pois, por meio dela pode este ente figurar em pólo passivo ou ativo em processos de quaisquer espécies. Tratamos da personalidade jurídica que é inerente a sua qualidade de existência. A pessoa jurídica passa a existir, segundo a teoria da realidade e a lei civil, a partir do momento que existe registro público em cartório da sua pessoa, da sua finalidade e da sua razão social, bem como passa a ter definido em seu estatuto quem são seus sócios e os gerentes administrativos. Neste ínterim, estas são as pessoas que comparecem ao processo para confirmar e defender os interesses da respectiva sociedade. Então, a personalidade jurídica é o atributo que caracteriza a possibilidade de agir da pessoa jurídica, bem como figurar em processo judicial.

 

 

Da Responsabilidade penal da Pessoa Jurídica e seus fundamentos

 

A responsabilidade da pessoa jurídica atende a um antigo reclamo de toda a sociedade, ou melhor, de todas as sociedades, contra privilégios inaceitáveis de empresas que degradam o meio ambiente.

 

A Constituição Federal de 1988, consolidando uma tendência mundial de atribuir maior atenção aos interesses difusos, conferiu especial relevo à questão ambiental, ao elevar o meio ambiente à categoria de bem jurídico tutelado autonomamente, destinando, assim, um capítulo inteiro à sua proteção.

 

A referência às pessoas jurídicas, no entanto, não ocorreu de maneira aleatória, mas como uma escolha política, diante mesmo da pequena eficácia das penalidades de natureza civil e administrativa aplicadas aos entes morais. É sabido, dessa forma, que os maiores responsáveis por danos ao meio ambiente são empresas, entes coletivos, através de suas atividades de exploração industrial e comercial. No entanto, a incriminação dos verdadeiros responsáveis pelos eventos danosos nem sempre é possível, diante da dificuldade de se apurar, no âmbito das pessoas jurídicas, as responsabilidades dos sujeitos ativos dos delitos.

 

A responsabilização penal das pessoas jurídicas surge, assim, como uma figura que tende, não somente a punir as condutas lesivas ao meio ambiente, porém pretende prevenir a prática de tais delitos, função essencial da política ambiental, que clama por preservação. O caráter preventivo da penalização, pois, prevalece, com efeito, sobre o punitivo. A realidade, infelizmente, tem mostrado que os danos ambientais, em muitos casos, são irreversíveis a ponto de temermos a perda significativa e não remota da qualidade de vida no planeta. Por isso, há uma tendência mundial no sentido de se admitir a aplicação de sanções de natureza penal as pessoas jurídicas pela prática de atividades ofensivas ao meio ambiente.

 

A responsabilização penal da pessoa jurídica, sendo decorrente de uma opção eminentemente política, depende, logicamente, de uma modificação da dogmática penal clássica para sua implementação e aplicação. Ocorre que a mesma ciência que atribui personalidade a esta pessoa deve ser capaz de atribuir-lhe responsabilidade penal. Por isso, define-se o direito como ciência dinâmica, cujos conceitos jurídicos variam de acordo com um critério normativo, mas não naturalístico. Logo, a responsabilidade penal não cabe mais ser vista pelos reflexos da Escola Clássica tradicional, todavia deve ser entendida à luz de uma nova responsabilidade, classificada como social.

 

A conduta da pessoa jurídica é a sua atividade desempenhada, segundo a atuação das finalidades deste ente organizado pela atuação de seus administradores, quando realizada em proveito próprio ou simplesmente do ente coletivo. Por isso, a sua punição está descrita e prevista na lei ambiental, de modo que não pode ser ignorada. As construções teóricas não podem configurar obstáculos para sua aplicabilidade prática cujas adaptações serão realizadas com o fim de dar sustentação à opção política do legislador.

 

As pessoas jurídicas são entes reais, vivos e ativos, independentes dos indivíduos que as compõem. Tem uma personalidade real, dotada de vontade própria, com capacidade de ação e de praticar ilícitos penais. Logo, o ente corporativo é uma realidade social, sujeito a direitos e deveres, capaz de tripla responsabilização: civil, penal e administrativa.

 

In casu, existe uma imperiosa necessidade de mudança, por meio dos novos conceitos teóricos aptos a resolver os conflitos supra-individuais existentes na atualidade e sequer imaginados pela visão tradicional do Direito Criminal. Há que se considerar também que a ação praticada pela pessoa jurídica, chamada de ação institucional, tem natureza diversa da ação humana. Desse modo, constrói-se o sistema da dupla imputação penal.

 

Por meio deste sistema, segundo Fausto de Sanctis, as pessoas jurídicas possuem vontade própria e se exprimem pelos seus órgãos. Devido esta vontade, é possível o cometimento de infrações, de forma consciente, visando a satisfação de seus interesses.[18]

 

Por esta teoria, a ação institucional decorre de um fenômeno de inter-relação envolvendo cada um dos participantes e a própria instituição, como resultado de uma confluência de fatores que é independente da vontade de seus membros ou diretores ou, mesmo, de seus sócios. Sua conduta é formada pelos aspectos normativos, organizacionais e o interesse final econômico.

 

Passemos a abordar a teoria do atuar por outro. Observemos a norma de extensão trazida pela lei 9605/98, em seu arts. 2° e 3°:

 

Art. 2º Quem, de qualquer forma, concorre para a prática dos crimes previstos nesta Lei, incide nas penas a estes cominadas, na medida da sua culpabilidade, bem como o diretor, o administrador, o membro de conselho e de órgão técnico, o auditor, o gerente, o preposto ou mandatário de pessoa jurídica, que, sabendo da conduta criminosa de outrem, deixar de impedir a sua prática, quando podia agir para evitá-la.

Art. 3º As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade.

Parágrafo único. A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato.

 

Por esta teoria, há responsabilização penal da pessoa física que atue em representação de outra pessoa física ou de pessoa jurídica pelas condutas delitivas que vierem a cometer. Os referidos dispositivos legais adotam esta teoria, assim como outros dispositivos espalhados pelo Código Penal, anteriormente comentados, que ampliam hipóteses de punições para aquele que atua representando interesses de outrem, pessoa física ou jurídica. Desconsiderar tal hipótese é não permitir aplicação das normas de extensão que viabilizam, por exemplo, incriminar o mandante e autor intelectual de um crime.

 

Nota-se que a segunda parte do art.2° estipula a responsabilidade do representante da pessoa jurídica por conduta omissiva, deixando de impedir a prática de um crime ambiental, quando podia evitá-la. É mais uma confirmação da norma de subordinação que institui a relevância da omissão poder ser uma construção teórica na culpabilidade da estrutura do atuar por outro, importado do Direito Penal alemão, regra esta seguida pelo Código Penal e pela legislação ambiental brasileiros.

 

No Brasil, já se tem notícia jurisprudencial de condenação de pessoa jurídica por delito contra o meio ambiente. Observe o que decidiu o Tribunal Regional Federal da 4° Região:

 

TRF – 4° REGIÃO 2001.72.04.002225-0 ACR – APELAÇÃO CRIMINAL 06/08/2003 ÉLCIO PINHEIRO DE CASTRO

Decisão

A TURMA, POR UNANIMIDADE, NEGOU PROVIMENTO À APELAÇÃO, NOS TERMOS DO VOTO DO RELATOR PENAL. CRIME CONTRA O MEIO AMBIENTE. EXTRAÇÃO DE PRODUTO MINERAL SEM AUTORIZAÇÃO. DEGRADAÇÃO DA FLORA NATIVA. ARTS. 48 E 55 DA LEI Nº 9.605/98. CONDUTAS TÍPICAS. RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA. CABIMENTO. NULIDADES. INOCORRÊNCIA. PROVA. MATERIALIDADE E AUTORIA. SENTENÇA MANTIDA. 1. Segundo entendimento doutrinário e jurisprudencial predominante, a Constituição Federal (art. 225, § 3º) bem como a Lei nº 9.605/98 (art. 3º) inovaram o ordenamento penal pátrio, tornando possível a responsabilização criminal da pessoa jurídica. 2. Nos termos do art. 563 do CPP, nenhum ato será declarado nulo, se dele não resultar prejuízo à defesa (pas de nullité sans grief). 3. Na hipótese em tela, restou evidenciada a prática de extrair minerais sem autorização do DNPM, nem licença ambiental da FATMA, impedindo a  egeneração da vegetação nativa do local. 4. Apelo desprovido.

CABIMENTO, RESPONSABILIDADE PENAL, PESSOA JURÍDICA.   INEXISTÊNCIA, CITAÇÃO PESSOAL, DIRETOR, CONDIÇÃO, CO-RÉU, NEGAÇÃO, PREJUÍZO, DEFESA, MOTIVO, COMPARECIMENTO, INTERROGATÓRIO, ASSINATURA, MANDADO DE CITAÇÃO, QUALIDADE, REPRESENTANTE LEGAL, EMPRESA. DESNECESSIDADE, PROVA PERICIAL, CRIME, SUJEIÇÃO, DIVERSIDADE, MEIO DE PROVA. CONDENAÇÃO, ATIVIDADE CLANDESTINA, EXPLORAÇÃO, MINERAL, DANO ECOLÓGICO, FLORA. SUBSTITUIÇÃO DA PENA.

 

Ademais, note abaixo a impossibilidade do trancamento da ação penal pelo indeferimento de habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça:

 

HC43751/ES – QUINTA TURMA 15/09/2005

HABEAS CORPUS. CRIMES AMBIENTAIS. INÉPCIA DA DENÚNCIA: INOCORRÊNCIA. EXISTÊNCIA DE INDÍCIOS DE AUTORIA E MATERIALIDADE. EXAME DE PROVAS. AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. RESPONSABILIZAÇÃO PENAL DA PESSOA JURÍDICA. CABIMENTO. MITIGAÇÃO DO PRINCÍPIO DO “SOCIETAS DELINQUERE NON POTEST”. RESPONSABILIDADE SOCIAL. VIOLAÇÃO DO ART. 225, §3º, DA CF/88 E DO ART. 3º DA LEI 9.608/98. POSSIBILIDADE DO AJUSTAMENTO DAS SANÇÕES PENAIS A SEREM APLICADAS À PESSOA JURÍDICA. NECESSIDADE DE MAIOR PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE.

Descabe acoimar de inepta denúncia que enseja a adequação típica, descrevendo suficientemente os fatos com todos os elementos indispensáveis, em consonância com os requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal, de modo a permitir o pleno exercício do contraditório e da ampla defesa. A alegação de negativa de autoria do delito em questão não pode ser apreciada e decidida na via do habeas corpus, por demandar exame aprofundado de provas, providência incompatível com a via eleita.

Ordem denegada.

 

É importante que o Superior Tribunal de Justiça pacifique a jurisprudência sobre o tema, tendo em vista que as decisões ainda são um pouco destoantes de um consenso.

 

Ademais, notemos o que decidiu o Supremo Tribunal Federal em um pedido de trancamento de ação penal por via de habeas corpus:

 

HC 85190/SC

Relator(a):  Min. JOAQUIM BARBOSA Julgamento:  08/11/2005           Órgão Julgador:  Segunda Turma

EMENTA: HABEAS CORPUS. PEDIDO DE TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ALEGAÇÃO DE INÉPCIA DA ENÚNCIA. DIREITO CRIMINAL AMBIENTAL. RESPONSABILIDADE DE DIRIGENTES DE PESSOA JURÍDICA. ART. 2º DA LEI 9.605/1998. Rejeitado pedido de trancamento de ação penal, dada a expressa previsão legal, nos termos da legislação ambiental, da responsabilização penal de dirigentes de pessoa jurídica e a verificação de que consta da denúncia a descrição, embora sucinta, da conduta de cada um dos denunciados. Habeas corpus indeferido.

Decisão

A Turma, por votação majoritária, indeferiu o pedido de habeas corpus, nos termos do voto do Relator, vencido o Presidente, que o deferia. Ausentes, justificadamente, neste julgamento, a Senhora Ministra Ellen Gracie e o Senhor Ministro Gilmar Mendes. 2ª Turma, 08.11.2005.

 

Nesta jurisprudência deste Egrégio Supremo Tribunal Federal, constatou-se que nenhum dos votos foi proferido de forma contrária a responsabilidade penal da pessoa jurídica denunciada juntamente com os sócios. Ora, sabendo-se que há possibilidade de se conceder habeas corpus de ofício, quando verificada alguma ilegalidade não constante direta ou indiretamente no pedido, denegando a ordem, o STF permitiu o processo crime em face da pessoa jurídica.

 

Guilherme de Souza Nucci, em sua obra Lei penais e processuais penais comentadas destacou a importância da condenação criminal e a efetividade do cumprimento da sentença, salientando, para tanto, a oficialidade dos órgãos de persecução criminal, observemos:

 

“é preciso considerar que a condenação que a condenação na esfera penal é moralmente mais efetiva que pronunciamentos judiciais em outras áreas. Tanto é realidade que qualquer pessoa, indiciada em inquérito policial, entendendo tratar-se de um constrangimento ilegal, pode impetrar habeas corpus para fazer cessar o referido abuso. Uma ação penal, promovida sem justa causa, é um pesado fardo a suportar, valendo também a impetração de habeas corpus para o seu trancamento. Ademais, vale lembrar que a atuação de autoridades com maior força de atuação no campo dos delitos ambientais – como o delegado de polícia, o membro do Ministério Público e o juiz – torna muito maior a possibilidade de se apurar e punir a infração ambiental cometida por pessoa jurídica”[19]

 

E complementa o Juiz de Direito de São Paulo:

 

“Entendemos que é momento de cessar o mito da punição penal exclusiva da pessoa física, quando se sabe que, no mundo todo, cada vez mais a delinqüência se esconde por trás de pessoas jurídicas – reais ou de mera fachada – , mas que servem aos propósitos da criminalidade de grande relevo, como os crimes ambientais e, logicamente, os econômicos, financeiros, contra as relações de consumo, tributários, entre outros. A pessoa jurídica, criminalmente punida, pode sofrer danos irreparáveis à sua imagem diante da coletividade, bastando haver cultura suficiente para isso. Pensamos que, com o passar do tempo, também o brasileiro, como já ocorre em outros países, passará a dar importância a quem degrada o meio ambiente de maneira criminosa, podendo rejeitar, por exemplo, a compra de produtos originários de pessoas jurídicas delinqüentes, dando maior ênfase a finalidade preventiva do Direito Penal.”[20]

 

Com relação à análise da desconsideração da pessoa jurídica, em comento no art.4° da lei ambiental, o autor definiu que, embora seja instituto importante, transferindo a responsabilidade da pessoa jurídica aos sócios, caso aquela se torne insolvente, diz respeito o referido artigo a área cível, mas não a penal.

 

Art. 4º Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.

 

Logicamente, considerar tal possibilidade seria o mesmo que admitir a transcendência da pena, o que denotaria flagrante ofensa ao Direito Constitucional, como já foi abordado.

 

Fernando Galvão, promotor de justiça do Distrito Federal, em interessante tese, asseverou:

 

“A responsabilidade penal da pessoa jurídica é de natureza indireta, por fato praticado pela pessoa física que age em seu nome e interesse, aplicando-se os mesmos parâmetros dogmáticos utilizados para a responsabilização civil da pessoa jurídica, por atos praticados pelas pessoas físicas que agem em seu nome.”[21]

Mais uma vez colacionamos o entendimento de Salomão Shecaira, em relato sobre o caráter fragmentário do Direito Penal:

 

“dependendo do bem jurídico atingido, sempre tendo como referência e também o caráter subsidiário e fragmentário que o Direito Penal conserva, são insuficientes as multas administrativas ou a responsabilidade civil. Elas não tem a publicidade do processo criminal, permitem a negociação entre a empresa e as autoridades administrativas, e não traduzem a força coercitiva que se pode atribuir às penas criminais. Ademais, não podemos admitir como uma empresa possa ter uma culpa administrativa por um ilícito e não uma culpa penal, tendo, porém, como resposta estatal uma medida com o mesmo caráter de uma pena.”[22]

 

Diante de todas as justificativas que até aqui colocamos, sempre com a maxima venia, com relação àqueles que dispuseram em contrário, estas últimas análises, defendidas pelos penalistas de renome, refletem a forma com que pensamos e a forma com que precisamos os argumentos bem colocados na oportunidade deste trabalho.

 

Acreditamos que o Direito Penal é uma ciência que deve ser calcada nos fundamentos históricos da sociologia, porquanto deva acompanhar o conjunto de transformações que a sociedade apresenta, adequando-se para dar sempre a maior eficácia possível às normas dentro da realidade social em que se encontrem.

 

É tremendo paradoxo admitir uma ciência que permita a existência de um ente jurídico dotado de personalidade e atividade capazes de conduzir negócios com objetivos econômicos que não se adéqüem à estabilidade das relações sociais, simplesmente, em razão de técnicas jurídicas obscuras e contraditórias que não admitam um conceito predefinido tendente a resguardar o equilíbrio do convívio social.

 

Em nome da ordem jurídica econômica, consumeira e ambiental, clamou a Constituição desta República Federativa pela persecução criminal adequada aos entes que pretendessem desrespeitar tais bens jurídicos.

 

Colocar a responsabilidade criminal às pessoas jurídicas, de nenhuma forma, significa transcender os aspectos constitucionais assegurados e conquistados sob duras penas pelas sociedades que se encontrem sob o manto do Estado Democrático de Direito. Muito pelo contrário, porque, aqui, defendemos, em todos os momento, a observância do due process of law, respeitados os direitos à ampla defesa e ao contraditório aos quais qualquer pessoa tem direito, seja ela pessoa natural, seja pessoa jurídica.

 



[1] BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O princípio da subsidiariedade: conceito e evolução. Cadernos de direito constitucional e ciência política, n°19, p.11.

[2] Silva, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, Malheiros Editora, ed.28°,  pag. 847.

[3] Mendes, Gilmar Ferreira; Coelho, Inocêncio; Branco, Paulo Gustavo Coelho Branco. Curso de Direito Constitucional, editora Saraiva e IDP – Instituto Brasileiro de Direito Público, ed.3°,  pags. 1373 e 1374.

[4] Moraes, Alexandre de – Direito Constitucional, 19° edição, editora Atlas, São Paulo, 2006.

[5] Fiorillo, Celso Antônio Pacheco – Curso de Direito Ambiental brasileiro, 7° edição, São Paulo, Saraiva, 2006.

[6] Idem, nota 5.

[7] Boschi, José Antonio Paganella – Das Penas e seus critérios de aplicação, p.133

[8] Greco, Rogério – Curso de Direito Penal, 5° edição, pg. 195, Rio de Janeiro: Impetus, 2005

[9] Prado, Luiz Regis – Curso de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral, p.147.

[10] Greco, Rogério – Curso de Direito Penal, 5° edição, pg.197, Rio de Janeiro: Impetus, 2005

[11] Zafaroni, Eugenio Raúl; Pierangeli, José Henrique – Manual de Direito Penal Brasileiro, vol.1, pg. 355: Parte Geral, 7° edição, São Paulo, editora Revista dos Tribunais, 2008.

[12] Idem, nota 10.

[13] Cernicchiaro, Luiz Vicente; Costa Jr., Paulo José da – Direito Penal na Constituição, p.138-139.

[14] Shecaira, Sérgio Salomão – Responsabilidade penal da pessoa jurídica, p.148 e 94-95.

[15] Mirabete, Júlio Fabrinni – Manual de Direito Penal, v.I, pg.291, São Paulo, Atlas, 1989.

[16] Fragoso, Heleno Cláudio – Lições de Direito Penal, Rio, Forense, 1985, pg.337.

[17] Rangel, Paulo – Direito Processual Penal, Ed. Lúmen Juris, pgs. 234-235, 11°edição, Rio de Janeiro, 2006.

[18] Sanctis, Fausto – Tratado de Derecho Penal – Parte General – Estúdio Programático,p.65

[19] Nucci, Guilherme de Souza – Leis penais e processuais penais comentadas, editora Revista dos Tribunais, pg.470.

[20] Idem, nota 18.

[21] Galvão, Fernando – Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica, p.122.

[22] Ob. cit. pg.21

Como citar e referenciar este artigo:
SANTOS, Pedro Luiz Mello Lobato dos. Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direitopenal-artigos/responsabilidade-penal-da-pessoa-juridica/ Acesso em: 17 fev. 2025