Ordenamento jurídico, ciências penais e os direitos humanos
Cândido Furtado Maia Neto*
Ao estudarmos a Teoria do ordenamento jurídico, obrigatoriamente, devemos primeiro compreender a validade e a importância dos princípios que regem um penal democrático, por exemplo o princípio da “hierarquia vertical das normas”, e o que significa “non bis in idem”, na sua mais ampla aplicação, bem como a máxima do direito penal substantivo, isto é, ser a “última ratio” do sistema repressivo estatal, cuja relação governo-cidadania deve sempre prevalecer o respeito integral aos Direitos Humanos, assegurados pelos Documentos internacionais – Pactos, Tratados, Declarações e Convenções -, aderidos pelo processo legislativo interno dos governos não autoritários.
A Teoria do ordanemento jurídico foi até agora pouco tratada, do ponto de vista da Teoria Geral do Direito, posto que é o Direito positivo e natural que vem se preocupando com a matéria, avançando cientificamente e aprofundando o tema, visando inclusive esclarecer a repugnante doutrina do “positivismo jurídico” do século xviii impregnado e/ou acobertado (nos dizer de R. Zaffaroni), até os dias de hoje. Está indesejável herança cultural manipula o princípio do livre convencimento do juiz e cria o abominável conceito de juiz apolítico.
O ordenamento jurídico por natureza é complexo, precisa ser compreendido e aplicado em seu conjunto, pois os ramos das ciências jurídicas e/ou as normas, ilícitos e penas nunca poderiam existir isoladamente.
Para entendê-lo necessário se faz um estudo mais aprofundado do direito, ou melhor das ciências jurídicas, como um conjunto de normas que formam um sistema integrado.
Esta complexa harmônia determina, cria e faz executar a entidade de sanções, ou o catálogo das penas, via os mais diversificados ilícitos, seja, penal, civil, administrativo, comercial, etc.
Comenta, Norberto Bobbio: “…não existem ordenamentos jurídicos porque há normas jurídicas, mas existem normas jurídicas porque há ordenamentos jurídicos…” -direito público internacional e interno.
Considere-se que toda ação implica em uma norma geral, em atenção a unidade do sistema legislativo, consequentemente estamos falando do princípio da validade soberana e/ou da hierárquia vertical das normas positivas, de acordo com o tempo e espaço.
A integração norma superior (“lex fundamentalis”) com a infra-constitucional estabelece o reenvio aplicativo-executivo dos ramos das ciências criminais, ou da recepção de normas.
No tocante ao direito penal nos Estados democráticos à norma somente pode ser aprovada por uma fonte, isto é, via Parlamento (Poder Legislativo), cf. estabelece a Carta Magna nacional, “ex vi” do disposto no art. 22, I, CF.
A infinidade de normas (penais), multiplicação ou a inflação das leis criminais, viola flagrantemente o princípio da representação popular, onde o Chefe do Executivo (nos regimes ditadorias) legisla criando e aprovando delitos e cominando sanções, ferindo desta forma os ditames da razâo (Direito natural) através de sua vontade superior (Direito positivo, na maioria das vezes injusto); assim, o ordenamento jurídico, serve também para regular o modo de produção das leis. Temos portanto, normas para produção de outras normas, vez que não estão no mesmo plano – segundo a estrutura hierárquica -, as inferiores dependem das superiores, segundo as fase e seus graus de validade executiva e produtiva.
O Direito positivo, indubitavelmente está subordinado ao Direito Natural.
Destaco, que no ordenamento jurídico” há uma excessão permissivas ao princípio da representação popular, que não atenta contra o poder originário legislativo, onde o juiz está autorizado a estabelecer normas jurídicas, aplicando a lei segundo a “equidade”. Chama-se “juízo de equidade” a resolução de um caso “in concreto”, em que o magistrado não busca a norma ordinária preestabelecida, mas a razão, a lógica e a Justiça, trata-se do ditame de reta razão (“dictamenm rectae rationis”), em base ao princípio da hierarquia e soberania vertical das leis, esta é a exigência “mor” de validade estrutural do sistema democrático aplicativo das ciências e sanções penais e/ou do exercício do “ius persequendi” e o ” ius puniendi” estatal.
Nesta hipótese do Direito Judiciário (“decisium” ou jurisprudência), atende os valores superiores mais justos (dando-se a cada um o que é seu ou o que é devido – “suum cuique tribuere”), consagrados constitucional e universalmente pelos Direito Humanos. Já o Direito Positivo é expressão do(s) mais forte(s) e não do mais justo, ou, uma técnica posta a serviço da política, seu conteúdo não é estritamente jurídico, se não político.
O ordenamento jurídico”, terminologica e objetivamente significa “totalidade ordenada” entre um relacionamento de coerência entre si de tipo dinâmico, um todo harmônico, um bloco sistêmico e compacto.
As normas, não pode ser incompatíveis, já afirmou outrora Justiniano no Digesto, o direito não tolera antinomias.
Há que se abrir campo também para o instituto das interpretações. Nos regimes liberais somente admite-se, no direito penal democrático e humanitário, a interpretação restritiva e/ou extensiva em benefício do réu/acusado (“interpretação favorabilis prevalece sobre a odiosa”), bem como, somente a analogia “in bonan partem” é autorizada.
O culto exagerado da lei ou o feiticismo legal, vem da Escola Exegética – final do sec. xix e início xx -, que impõs até os dias de hoje a cegueira intelectualista, fazendo da função judicial uma função puramente mecânica. A Exege impede que o juiz considere os fatos, proibindo sua participação na criação do Direito e o mais grave, obriga-o a aplicar a lei sem lógica e sem racionalidade.
Se o Direito Positivo é uma técnica posta a serviço da política, muitas vezes até partidária, porque o juiz não pode ou não deve interpretar a lei, objetivando minimizar o conflito social, em base a valores e princípios supremos, como tarefa principal do Poder Judiciário na sua missão constitucional de prestação jurisdicional devida à cidadania.
Torna-se oportuno destacar o que disse certa vez Jerome Frank – juiz federal norte-americano -, quando fêz um paralelo entre a interpretação judicial e a interpretação musical: “Quando o juiz interpreta uma norma jurídica faz um trabalho similar ao de um pianista ou de um violinista quando interpreta uma partitura musical. Não existe dúvida de que o pianista ou o violinista criam algo quando interpretam uma obra musical qualquer. O mesmo ocorre, por exemplo, quando uma orquestra toca a sinfõnia de Beethoven; na execução se aporta algo distinto à partitura musical que se interpreta. E podemos chegar a ainda a dizer, que a música não existe realmente se não quando é interpretada; direito não vive sua vida plena e autêntica, se não quando é interpretada; o juiz, por outro lado cria o Direito “in concretum”, interpretando construtivamente o sistema, isto é, sem poder ignorar o ordenamento jurídico, o músico também não pode ignorar a partitura, porém lhe é permitido a criação de novas notas musicais”.
As proposições incompatíveis resolve-se pelo critério da interpretação, da validade da “lex superior” – Direito Natural -, revogando-se expressamente (caso do Direito Judiciário) ou tácitamente (na hipótese do uso da prevalência dos princípios do Direito Natural/Direitos Humanos – interpretação “ab-rogante”), as normas inferiores. Se diz que a tarefa do Direito Natural é oferecer remédio as imperfeições do direito positivo.
A inaplicabilidade dos critérios acima mencionados, e/ou da aplicabilidade incorreta de tais princípios quebra a estrutura do “ordenamento jurídico”, agride o fundamento do Estado de Direito democrático e o princípio da legalidade.
O legalismo em si, o positivismo ou o tecnicismo jurídico, só pode caminhar na trilha das regras complexas do ordenamento em seu todo, por isso, o direito penal deve ser usado como a “ultima ratio” de todos os ramos das ciências jurídicas e a pena privativa de liberdade, como a “ultima ratio” das sanções catalogadas no Código penal.
De outro lado, argumenta-se que os princípios gerais do direito (natural) são normas generalíssimas do sistema e, se são normas podem e devem ser aplicados nos casos “in concreto”.
Diante deste fato, mister se faz propugnar mais pelo processo de descriminalização e/ou despenalização, e por propostas minimalistas e/ou reducionistas do direito penal.
O princípio “nom bis in idem” na sua cosmovisão moderna e humanitária, relaciona-se amplamente integrado ao ordenamento jurídico e não de forma estanque ou isolado em uma área apenas do direito. Sua aplicação e interpretação deve ser ampliativa, obviamente em favor do réu.
Na verdade a expressão “sem prejuízo da aplicação de sanções civis e/ou penais”, presente nos últimos artigos das leis em geral, atenta flagrantemente contra o princípio “non bis in idem”, pois categoricamente, determina a possibilidade de duplo processamento, legalmente proibido pelos Documentos internacionais de Direitos Humanos.
Duplo processamento gera dupla penalização, e um fato, no Direito Democrático, é ou só deve gerar um tipo de “ilícito”, seja penal, civel, administrativo e assim por diante.
De maneira categorica prescreve uma das claúsulas do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, adotado em 1966 pela Assembléia Geral das Nações Unidas, fazendo parte da legislação pátria, ou melhor, do direito público interno brasileiro, artigo 14, item (7): “Ninguém poderá ser processado ou punido por um delito pelo qual já foi absolvido ou condenado por sentença passada em julgado, em conformidade com a lei e os procedimentos penais de cada país”.
Cada conduta social precisa definida no ordenamento jurídico, qual a espécie de gravidade, sua implicação e adequação ao sistema processual e de punição mais viável. Os ilícitos penais, por exemplo, somente devem ser considerados segundo a sua gravidade máxima, onde outros ramos não podem solucionar a questão ou não possuem meios sancionatórios correspondentes a proporcionalidade entre a prática e o dano causado.
O descrédito e as ineficiências do Direito Penal – material e formal – melhor falando, da administração da Justiça criminal, da polícia, do Ministério Público e do Poder Judiciário, propriamente dito, são resultados visíveis da falsa compreensão dos princípios “non bis in idem”, da hierarquia vertical das leis, da interpretação favorabilis “in dubio pro reo”, e do uso alternativo das medidas substitutivas da prisão e do direito penal como “ultima ratio” como ciência autônoma, porém pertencente e integrada ao ordenamento jurídico, através dos elementos indispensáveis às condições necessárias para o perfeito funcionamento do sistema legal vigente.
* Promotor de Justiça de Foz do Iguaçu-PR. Membro do Movimento Ministério Público Democrático.Professor Pesquisador e de Pós-Graduação (Especialização e Mestrado). Associado ao Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI). Pós Doutor em Direito. Mestre em Ciências Penais e Criminológicas. Expert em Direitos Humanos (Consultor Internacional das Nações Unidas – Missão MINUGUA 1995-96). Secretário de Justiça e Segurança Pública do Ministério da Justiça (1989/90). Assessor do Procurador-Geral de Justiça do Estado do Paraná, na área criminal (1992/93). Membro da Association Internacionale de Droit Pénal (AIDP). Conferencista internacional e autor de várias obras jurídicas publicadas no Brasil e no exterior. E-mail: candidomaia@uol.com.br
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