O caso Thales Ferri Schoedl
Francisco César Pinheiro Rodrigues*
Não é possível saber, hoje (05-09-07), se o promotor Thales F. Schoeldl — que matou um e feriu outro na Riviera de São Lourenço, litoral paulista — será julgado pelo Tribunal do Júri, popular, ou pelo Tribunal de Justiça. Isso porque acusação e defesa ainda não esgotaram seus lances jurídicos na prevalência de tal ou qual competência. A família das vítimas tudo faz para que o réu seja julgado pelo Tribunal do Júri.
A polêmica em torno do caso suscita algumas breves considerações sobre o chamado “foro privilegiado”; o direito — ou não — de o réu continuar recebendo seus vencimentos, enquanto não julgado; a legítima defesa; a influência da imprensa e também — algo novo, talvez nunca mencionado antes —, o uso do detector de mentira em testemunhas presenciais e vítima — se viva, claro —, quando no recinto em que ocorreu o crime só havia pessoas ligadas afetivamente ao réu, ou à vítima.
De início, deixo explícito que não conheço pessoalmente o promotor em questão, nem li os autos do processo. Apenas vi sua foto em jornal. Não conheço seu caráter nem sei se é, ou não, um bom profissional. Porém, pelo que se deduz do noticiário, ele correu o risco de não ser efetivado apenas em decorrência do crime em que se viu envolvido. Quando saía de uma festa, ou clube, acompanhado de uma moça, teria reagido — segundo alega —, a observações desrespeitosas, relacionadas com a garota que lhe fazia companhia. Quando foi tomar satisfação, os rapazes, eram vários, teriam avançado contra ele, ocasião em que, para se defender, desferiu diversos tiros, matando um deles e ferindo outro. Alega, portanto, legítima defesa, exercida na iminência de uma agressão por parte de um grupo de rapazes. Falei em “iminência de agressão” porque a mídia não faz referências a marcas de socos ou pontapés.
Se o promotor em questão tem, contra ele, atrapalhando sua efetivação no cargo, apenas o incidente que ocorreu em dezembro de
Vez por outra leio, nos jornais, o argumento de que o réu não poderia estar em legítima defesa porque “desferiu onze tiros contra a vítima”. Ao que presumo, houve grande número de tiros, mas não contra a mesma vítima. Se, de fato — como alega —, estava sendo cercado, na iminência de levar surra humilhante, o número de tiros disparados é até um indício de que defendia-se de um ataque coletivo.
Logo que saiu, nos jornais da época, a notícia do crime, mencionando o número de disparos, estranhei que um promotor, em pleno gozo de suas faculdades mentais, matasse e tentasse matar um grupo de rapazes sem uma razão séria para isso. Somente um desequilibrado, ou bêbado, iria arruinar sua carreira e mesmo seu futuro, fora da carreira e por toda a vida, só pelo gostinho cretino — com perdão pela expressão — de se exibir, frente à namorada, ofendida com os gracejos do grupo.
Na ocasião, pareceu-me crível — pelo menos à primeira vista —, a alegação de legítima defesa. Justamente pelo número de tiros e o alegado envolvimento de um grupo de rapazes. E perguntar aos demais moços se houve, ou não, uma tentativa de agressão contra o promotor, é ignorar a tendência natural de parcialidade do grupo, principalmente tendo ocorrido u’a morte. Dificilmente os rapazes iriam dizer, aos jornalistas e autoridades, que as vítimas, seus amigos, haviam avançado em atitude hostil para bater no promotor. Enfim, não dá para confiar, sem cautela, nos depoimentos dos rapazes que faziam parte do grupo. Quando juiz de Varas Cíveis, nunca ouvi um passageiro do carro dizer que o motorista, a seu lado, estava errado; em excesso de velocidade ou outra falha qualquer. O simples fato de estar dentro do carro como que garantia ao motorista, envolvido no acidente, um depoimento “solidário”. Se isso acontecia em simples colisões de veículos, com mais razão é de se esperar que a solidariedade dos componentes da “rodinha” deforme a realidade dos fatos, no rumoroso caso. Além do mais, há a cerveja, que exalta os ânimos. Daí, a pertinência de um teste de detector de mentiras nos rapazes que faziam parte do grupo, se não ouvidas diversas testemunhas isentas e alheias ao grupo de rapazes.
Até hoje, não tenho visto, ignoro o uso do polígrafo em testemunhas, mas se todas as testemunhas arroladas pertenciam a um determinado grupo, naturalmente vinculadas pela solidariedade, a verdade só teria chance de vir à tona com o uso do aparelho. A própria vítima, aquela que foi apenas ferida, submetida ao teste, poderia reforçar — ou invalidar — a tese de que os disparos foram apenas fruto da maldade e desejo de matar, sem outro proveito além da vontade tola de se exibir frente à namorada. Imagine-se a repercussão probatória, no processo, se a vítima e principais testemunhas fossem reprovadas no detector de mentiras. E o réu poderia concordar, também ele, em ser submetido ao polígrafo. A hora da verdade…
Quanto ao julgamento pelo Tribunal de Justiça, ou Tribunal do Júri, popular, confio — face às peculiaridades do caso — mais no Tribunal de Justiça, menos sujeito à pressão da mídia e popular. Os jurados sentir-se-ão fortemente coagidos para uma condenação. Medo de serem hostilizados, se absolverem, aceitando a legítima defesa. A simples presença dos pais das vítimas no recinto terá um peso considerável a favor da condenação. E é muito mais fácil enganar os jurados que os experientes desembargadores.
Compreende-se a revolta dos pais das vítimas, porque a perda de um filho é dolorosa e irreparável. Os pais, porém, julgam os filhos pelo que constatam no convívio familiar. Nem sempre, porém, os filhos, reunidos em grupo, longe dos pais, agem com igual equilíbrio e moderação. Principalmente se beberam um pouco. Há uma certa necessidade de valentia, de auto-afirmação, quando o indivíduo integra um grupo. Nessas ocasiões — falo apenas em tese — mesmo quando o agredido, cercado, saca alguma arma, esse gesto não produz, inevitavelmente, a desistência da ameaça. Se o grupo imediatamente desistisse do ataque, só porque o alvo teria sacado uma arma, essa desistência revelaria uma certa covardia. E ninguém quer passar por covarde. Além do mais, a arma poderia estar descarregada, ou o agredido não teria coragem de dispará-la. Como “afinar”, vergonhosamente, só porque a vítima mostrou um revolver?
Aqueles que lutam para que o réu, em referência, seja julgado pelo tribunal popular, parecem não acreditar na isenção do Tribunal de Justiça. Argumentam com o “corporativismo” e coisas semelhantes. Não vejo razão para essa suspeita, fruto apenas da falta de conhecimento da população. Primeiro, porque o réu não é juiz. Não pertence à carreira dos magistrados. Assim, por que iriam “proteger” um promotor? Se os desembargadores não forem confiáveis nesses julgamentos, não deveriam, por analogia, ser confiáveis para julgamento algum. Ficaria mais rápido e simples deixar os casos para o a mídia condenar ou absolver através das votações conforme o número de telefonemas a favor ou contra determinada decisão, como ocorre com programas de auditório. A imprensa é útil e mesmo necessária no saneamento do país, mas não pode se arvorar em juiz final. Não tem formação para isso. Seu “juízo” é sempre provisório. Segue as aparências, e assim mesmo sem especial exame de todos os detalhes. O mesmo ocorre com a família e amigos das vítimas, por mais idôneas que sejam.
Seja, porém, qual for o tribunal que julgará o réu em questão — e o Tribunal do Júri pode, em tese, acerta, embora tendo que lutar mais que o Tribunal de Justiça contra a pressão da opinião pública — o que importa é que os fatos estejam bem esclarecidos, antes do veredicto.
Ontem mesmo, conversando com uma companheira de escritório, disse a ela que iria escrever o presente artigo, contrariando a tendência atual da mídia. Ela ficou horrorizada. Mencionou o número de tiros e salientou que seria problemático o futuro de um promotor que teria assassinado alguém, mesmo estando, eventualmente, em legítima defesa. “Com que autoridade um promotor de júri iria acusar um réu de homicídio? Ele perderia toda autoridade!”. Disse a ela que ninguém é obrigado a se deixar espancar, por uma ou várias pessoas. Se ocorreu, verdadeiramente, a dirimente da legítima defesa, não houve crime algum. Aí ela levantou a difícil questão: “Se o senhor fosse solteiro, ou viúvo, e estivesse para se casar com u’a moça que lhe confessasse ter matado o noivo — em legítima defesa comprovada —, teria, ainda assim, mantido o compromisso de casamentol?” Tive que pensar um pouco antes de responder, E com a maior sinceridade expliquei que o conhecimento desse fato realmente me incomodaria bastante. Talvez, talvez, eu já não casasse, temendo uma reação futura mais violenta, em eventual conflito conjugal. Seria preciso uma longa convivência prévia com ela para anular essa sensação. Essa reação minha seria, porém, emocional e preconceituosa, e o funcionamento do Estado deve estar acima do campo estritamente instintivo. Ao emocional pertencem a simpatia, a amizade e as diversas formas de amor, mas ali reside também o ovo da víbora do preconceito, da injustiça e da perseguição. Se não podemos nos isentar do emocional, que pelo menos o impeçamos de opinar onde não deve. Sem isso, não podemos evoluir como seres racionais.
Se promotor em discussão agiu levianamente, deve ser punido e perder o cargo. Se agiu dentro da lei, que siga seu destino, na carreira que escolheu, mesmo carregando uma carga moral que não será fácil esquecer.
Quem não gosta de promotor — não gosta e ponto final — torcerá por sua condenação, com ou sem justiça. Para mim, é indiferente que ele seja condenado ou absolvido. O que interessa é saber se prevaleceu a verdade, aquela alcançável em qualquer julgamento humano.
(5-9-2007)
* Advogado, desembargador aposentado e escritor. É membro do IASP Instituto dos Advogados de São Paulo. Website do autor: http://www.franciscopinheirorodrigues.com.br
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