Direito Penal

Notas Sobre o Direito Penal do Inimigo

 

O princípio da dignidade humana, ao informar todo o sistema punitivo exige, para a sua concreção, não exclusivamente o afastamento de qualquer sanção cruel ou degradante – expressamente discriminadas e repelidas pela Constituição Federal -, mas, ainda, que o indivíduo seja tratado como ser humano. E, para tanto, a pena imposta deve garantir-lhe o exercício, mesmo que não de forma plena, de seus direitos fundamentais, ser proporcional ao ato praticado – de forma a observar o valor justiça – e respeitar a pessoa humana como ser único e insubstituível em sua racionalidade, portador de características essenciais que o diferenciam dos demais.

 

Todas as penas – e tratamentos indignos – estão definitivamente proscritas de nosso ordenamento jurídico, pois a sua vedação está inserida entre os direitos e garantias individuais, que, nos termos do art. 60, § 4º, inciso IV, da Constituição Federal, não estão sujeitos a proposta de emenda tendente à sua abolição. Emenda neste sentido, como dispõe o citado dispositivo constitucional, não será objeto de deliberação.

 

Assim, por atingir o núcleo irreformável da Constituição, qualquer proposta de emenda que tenha por fim adotar, por exemplo, a pena de morte ou de prisão perpétua, não poderá ser objeto de votação pelo Congresso Nacional, e, se o for, estará eivada de nulidade por ultrapassar os limites concedidos ao poder constituinte derivado. 

 

O mesmo fundamento embasa, entre nós, a impossibilidade de instituição de um “direito penal do inimigo”, contraposto ao “direito penal do cidadão”, no qual os direitos e garantias fundamentais – e a própria característica de pessoa – poderiam ser afastados.

 

Günter Jakobs, o principal defensor deste “novo” direito penal, sustenta que aquele que se afasta de forma permanente do Direito, que assume posição de confronto contínuo ao sistema normativo, não pode usufruir a condição de cidadão e da característica de pessoa, devendo ser objeto de um procedimento de guerra, em suma, do tratamento dispensado ao inimigo do Estado, embora sob a égide da ordem jurídica instituída para tal fim.[i]

 

Trata-se o direito penal do inimigo, a nosso ver, de verdadeiro – e inadmissível – sofisma[ii], pois ao “conceituar” alguns – ou determinado grupo de – delinqüentes como “inimigos” – sem especificar quais seriam os pressupostos de tal caracterização -, retirando-lhes a condição de pessoas, pretende afastar as garantias e direitos que formatam o Estado democrático de Direito, sem o ônus, contudo, de admitir que se trata de proposta absolutamente incompatível com este modelo estatal. Representa, pois, uma quebra da idéia de unidade da humanidade no espaço e no tempo, do pensamento personalista de que “um homem, mesmo diferente, mesmo degradado, é sempre um homem, a quem devemos permitir que viva como um homem”.[iii]

 

De fato, tanto a Declaração Universal de Direitos Humanos como a Constituição Federal não admitem que ninguém seja tratado como “não pessoa”, que  lhe seja suprimida a “respeitabilidade mínima”, de forma que inclusive o “inimigo” deve receber o tratamento de pessoa humana, pois, como adverte Marcelo A. Sancinetti, tal proceder define “a eticidade do próprio Estado de Direito, o qual não se pode permitir o tratamento desumano de ninguém. O Estado de Direito está obrigado à inclusão de todos e não pode permitir-se penas extraordinárias de exclusão, regidas por um chamado “direito penal do inimigo”, que passariam a ser meras medidas de segurança”.[iv]

 

De se anotar, sobre a questão, que mesmo em “estado de guerra” não é admissível retirar-se do inimigo a condição de pessoa, conforme se depreende da Convenção de Genebra para o tratamento dos “prisioneiros de guerra” (ratificada pelo Brasil e introduzida em nosso ordenamento jurídico pelo Decreto n. 22.435/33). Com efeito, referida convenção, exatamente com o propósito de preservar a dignidade humana, estabelece uma série de garantias aos prisioneiros. Assim, apenas a título de ilustração do rol de garantias, em seu art. 2º dispõe que os prisioneiros de guerra “deverão ser tratados, em todas as circunstâncias, com humanidade e ser protegidos especialmente contra atos de violência, insultos e curiosidade pública”, sendo proibidas contra eles as “medidas de represálias”; em seu art. 3º reza que “Os prisioneiros de guerra têm direito ao respeito da sua pessoa e da sua honra”, devendo as mulheres ser “tratadas com todas as deferências devidas ao seu sexo”; o art. 10 prevê que os alojamentos dos prisioneiros devem apresentar “todas as garantias possíveis de higiene e salubridade” e encontrar-se ao abrigo da umidade, suficientemente aquecidos e iluminados, observadas as cautelas contra incêndio; o art. 11 determina que a ração alimentar seja equivalente à das tropas de depósito, bem como o fornecimento de água potável aos prisioneiros; os artigos 29 e 30 vedam o emprego dos prisioneiros em trabalhos para os quais sejam fisicamente incapazes, bem como o trabalho excessivo, assim considerado aquele que supere o dos trabalhadores civis da mesma região, garantido o repouso semanal; o art. 32 veda a alocação de prisioneiros em trabalhos insalubres ou perigosos e a agravação das condições de trabalho como medida disciplinar; no art. 34 garante-se o percebimento de salário pelo trabalho desenvolvido; o art. 36, por sua vez, garante a comunicação com o exterior – correspondência; o art. 46, por fim – talvez o mais relevante para a matéria ora tratada – dispõe que “Aos prisioneiros de guerra não poderão ser aplicadas pelas autoridades militares e pelos Tribunais da Potência detentora outras penalidades que não previstas para os mesmos fatos relativamente aos militares dos exércitos nacionais [isto é, mesmo em tempo de guerra, em relação ao inimigo não se permite um tratamento distinto daquele dispensado ao “cidadão”, à pessoa humana como tal considerada]. Em igualdade de graduação, os oficiais, sargentos ou soldados prisioneiros de guerra que estejam cumprindo pena disciplinar não serão submetidos a tratamento menos favorável que aquele previsto, no que diz respeito à mesma pena, nos exércitos da Potencia detentora. São proibidos todo castigo corporal, toda clausura em locais não iluminados pela luz do dia e, de uma maneira geral, toda e qualquer forma de crueldade. São igualmente proibidas as penas coletivas para atos individuais”.

 

A isto se acrescenta, como sustenta Francisco Muñoz Conde, que os direitos e garantias fundamentais materiais e processuais do Estado de Direito são pressupostos irrenunciáveis de sua própria essência. “Se se admite sua derrogação, ainda que seja em casos pontuais extremos e muito graves, se tem que admitir também o desmantelamento do Estado de Direito, cujo ordenamento jurídico se converte em um ordenamento puramente tecnocrático ou funcional, sem nenhuma referência a um sistema de valores, ou, ou que é pior, referido a qualquer sistema, ainda que seja injusto, sempre que se tenha o poder ou força suficientes para impô-lo. O direito assim entendido se converte em um puro Direito de Estado, no qual o direito se submete aos interesses que em cada momento determine o Estado ou as forças que controlam ou monopolizam seu poder. O direito é então simplesmente o que em cada momento convém ao Estado, que é, ao mesmo tempo, o que prejudica e causa o maior dano possível a seus inimigos”.[v]

 

Logo, por se tratar a dignidade da pessoa humana de fundamento, verdadeiro pilar sobre o qual se alicerça o Estado democrático de Direito, não pode ser afastado, mesmo em hipóteses excepcionais, sob pena de desmoronamento de toda a estrutura sobre ele construída.

 

 

 

* Antonio Carlos Santoro Filho, Juiz de Direito em São Paulo, Autor dos Livros Fundamentos de Direito Penal (Malheiros Editores, 2003) e Teoria da Imputação Objetiva (Malheiros Editores, 2007)



[i] Derecho penal del enemigo, passim. Eugenio Raúl Zaffaroni lembra que o direito penal do inimigo tem a sua origem em Hobbes, que sustentava que a resistência ao poder do soberano implicaria reintroduzir a guerra de todos contra todos. Nestas condições – para Hobbes -, quem resiste ao poder do soberano não deve ser punido, mas submetido à força de contenção, na medida em que não é um delinqüente, mas um inimigo. Quem é um inimigo declarado do Estado não está – ou não deve estar – sujeito a penas, pois quem nunca esteve sujeito à lei não pode transgredi-la, devendo sofrer, portanto, como inimigo do Estado. As penas são estabelecidas para os súditos – cidadãos -, e não para os inimigos, aqueles que, por própria vontade, negam o poder do soberano (“El Leviathan y el Derecho Penal”. Derecho Penal y Estado de Derecho, p. 71).

[ii] Jeremy Bentham ensina que o sofisma “é um argumento falso revestido de uma forma mais ou menos capciosa. Sempre dele faz parte alguma idéia sutil, posto que não contenha necessariamente a de má-fé. Podemos empregá-lo com próprio engano nisso, bem como podemos espalhar moeda fala, reputando-a por corrente. Há entre erro e sofisma uma diferença fácil de compreender-se. Erro denota simplesmente uma opinião falsa; sofisma denota igualmente uma opinião falsa, mas a qual convertemos em um meio para certo fim. Faz-se uso do sofisma para influir sobre a persuasão alheia e tirar disso algum resultado, pelo que, o erro é o estado de uma pessoa que alimenta uma opinião falsa, e o sofisma serve de instrumento ao erro” (Teoria das Penas Legais e Tratado dos Sofismas Políticos, p. 257).

[iii] MOUNIER, Emmanuel. O Personalismo, p. 55.

[iv] “Seguridad y derecho penal”. Derecho Penal y Estado de Derecho, p. 62-63.

[v] De nuevo sobre el Derecho penal del enemigo, p. 63.

Como citar e referenciar este artigo:
FILHO, Antonio Carlos Santoro. Notas Sobre o Direito Penal do Inimigo. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direitopenal-artigos/notas-sobre-o-direito-penal-do-inimigo/ Acesso em: 26 jul. 2024