A inversão do ônus de determinados fatos consiste em mais um importante mecanismo em algumas espécies de crimes praticados pelas Organizações Criminosas. Embora coubesse muito bem na Lei n° 9.034/98, que estabelece “meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas”, o fato é que atualmente está claramente previsto apenas na Lei n° 9.613/98, que dispõe sobre crimes de lavagem de dinheiro e cria o COAF – Conselho de Controle de Atividades Financeiras.
Esta Lei, é bom que se diga, é proveniente de uma incansável série de reuniões e estudos realizados por vários Países participantes, integrantes das Nações Unidas, originadas na cidade de Viena, com finalidade de combater aquela forma de criminalidade tão arrasadora da sociedade, o tráfico ilegal de entorpecentes, através de mecanismo de seqüestro e confisco de bens e dinheiro provenientes das suas atividades criminosas.
Seguiram-se outros estudos e providências, como as chamadas “40 Recomendações sobre lavagem de dinheiro” da FATF – Financial Action Task Force, criadas em 1990 e revisadas em 1996; a aprovação do “Regulamento modelo sobre delitos de lavagem de dinheiro relacionados com o tráfico ilícito de drogas e outros delitos graves”, em 1992, pela CICAD – Comissão Interamericana para o Controle do abuso de Drogas; o “Comunicado Ministerial da Conferência da Cúpula das Américas sobre os procedimentos de lavagem e instrumentos criminais”, também em 1992; e a “Declaração política e o plano de ação contra lavagem de dinheiro”, adotadas na Sessão Especial da Assembléia Geral das Nações Unidas sobre o Problema Mundial das Drogas, em 1998, em Nova York.
Foram então criadas as chamadas FIUs – Financial Intelligence Units – ou Unidades de Inteligência Financeira. A COAF é a FIU brasileira, e tem natureza administrativa. Tem a missão de receber informações de órgãos, entidades e pessoas físicas e jurídicas a respeito de todo tipo de transações e operações financeiras e repassá-las às autoridades competentes do País de forma que sejam analisadas para as devidas providências investigatórias e judiciais e também de retransmití-las às FIUs de outros países para o mesmo fim. Criou-se em seguida o chamado Grupo de Egmont, por iniciativa das FIUs da Bélgica (CTIF) e Norte-Americana (FinCen), que reúne o conglomerado de todas as demais, de forma a viabilizar melhor comunicação entre elas, e conta atualmente com mais de 50 integrantes.
Trata-se portanto de uma Lei cujos mecanismos foram suficientemente discutidos no âmbito da comunidade internacional, interessada no combate às organizações criminosas, moderna e voltada aos anseios da sociedade. A Convenção de Viena de 1988 prevê expressamente a autorização para a previsão legal da inversão do ônus da prova, remetendo a cada parte (País) a sua consideração. No artigo 5°- n° 7, prevê: “Cada uma das partes considerará a possibilidade de inverter o ônus da prova com respeito à origem ilícita do suposto produto ou bens sujeitos a confisco, na medida em que isto seja compatível com os princípios de seu direito interno e com a natureza dos seus procedimentos judiciais e outros procedimentos”. Nesse sentido, além do Brasil, também Alemanha, Estados Unidos, Reino Unido, Austrália, Suiça e México, entre outros, estipularam em suas legislações a inversão do ônus da prova.
Estabeleceu-se instrumentos verdadeiramente eficientes para o combate a crimes repugnantes, como por exemplo o tráfico ilícito de entorpecentes, terrorismo, tráfico de armas, contra a administração pública, praticados por organização criminosa, todos sempre evidentemente relacionados com própria “lavagem” de dinheiro e/ou ocultação de bens.
Por certo que a Lei é rigorosa, mas não poderia ser de outra forma. Não se combate câncer com aspirina. Para crimes graves e complexos – Leis rigorosas e eficientes. Muitas vozes alardeam inconstitucionalidade e falta de critérios de proteção dos direitos individuais, mas enganam-se e esquecem-se de raciocinar com os motivos maiores da implantação destes mecanismos nas legislações de inúmeros Países – todos semelhantes, – a proteção da sociedade.
A dificuldade da investigação decorrente da complexidade de situações geradas pelos lavadores do dinheiro obrigaram as autoridades – de vários países do mundo a, em conjunto, criar mecanismos rigorosos e eficientes para o seu combate, exatamente no intuito de proteger a sociedade dos malefícios que lhe podem causar. Basta considerar que o dinheiro lavado é normalmente investido no incremento da própria empresa criminosa, gerando-lhe maior poder de ofensividade à sociedade. Evidente que não se trata de ofender os direitos e garantias individuais dos cidadãos, constitucionalmente previstos em todos os países. Trata-se, ao revés, de preservá-los através da viabilização do combate eficiente à criminalidade chamada “de colarinho branco”, modalidade de Crime Organizado, evitando-se o “hiper-garantismo” dos “delinquentes de gravata”.
Definitivamente, esta Lei não foi mérito da criação da consciência brasileira, mas sim de inúmeros Países das Nações Unidas que após rica discussão traçou os critérios básicos essenciais para a sua adoção, cobrando-se mutuamente quanto à implantação em cada País. Analisamos aqui, por ser virtude apenas desta Lei até o momento, a questão da “inversão do ônus da prova”.
Mas é importante enfatizar: A Lei manda inverter o ônus da prova tão somente em relação à origem lícita dos bens, e nunca em relação aos fatos típicos imputados ao suspeito ou acusado, que permanece sempre com o Ministério Público.
* Marcelo Batlouni Mendroni, Promotor de Justiça/SP do GAECO – Doutor em Direito Processual pela Universidad Complutense de Madrid