A discussão jurídica sobre o tema em questão apresenta diversas polêmicas, justamente por apresentar legislações e pensamentos que divergem um dos outros
por todo mundo.
Com um estudo mais aprofundado sobre as legislações que versam sobre o aborto, nota-se que a lei que regula “o ato” em questão atualmente no Brasil vai de
encontro com o que estipulou o cristianismo em Roma.
Tempos atrás o aborto não era tipificado como delito. O embrião era visto como uma simples extensão do corpo da mulher. Sendo assim ela podia decidir
deliberadamente o destino do mesmo, salvo quando casada, tendo em vista a superioridade do direito marital.
Com o passar do tempo, O código de Hammurabi, 1.700 a.C, passou a considerar o aborto um crime contra os interesses paternos, e também uma lesão contra
mulher.[1]
Conforme o ensinamento do doutrinador Warley Rodrigues Belo, logo se passou a condenar o terceiro responsável pelo aborto e pelos danos ocasionados ao
corpo da mulher, sempre visando proteger o direito do marido, como se vê no livro do Êxodo da lei hebraica, 1.000 a.C. Já na Grécia a proibição ao aborto
estava diretamente ligada aos interesses do Estado. Vale lembrar que a Grécia considerava os cidadãos gregos um patrimônio do Estado. A mulher jamais
poderia abortar sem o consentimento do pai, caso este fosse um cidadão, e na falta deste o Estado ficava responsável pela decisão [2].
Ainda de acordo com o referido autor, podemos citar Sócrates, que possuía uma visão liberal até para os dias atuais. Para ele a mulher era livre para
decidir sobre o aborto, visto que o maior interesse era dela. Platão, seu discípulo, recomendava o aborto como forma de controle do crescimento da
população.
A transformação da visão sobre o feto aconteceu em meados do Império Romano com a ascensão do Cristianismo. Tal religião estipulou a base para a grande
maioria das legislações atuais, visto que versava uma pena atenuada quando o aborto era cometido pela própria mãe, e uma pena agravada quando cometido por
um terceiro, principalmente se o mesmo praticava o procedimento do aborto visando o lucro [3].
Veja que a legislação apresentada pelo Cristianismo, em meados do Império Romano, é à base da atual legislação brasileira. Dessa forma, um questionamento é
inevitável: não seria o Código Penal brasileiro defasado, visto que é baseado em uma legislação do Império Romano?
Podemos facilmente afirmar que o Cristianismo foi o responsável pela introdução da idéia de que abortar consistia em tirar a vida de um ser humano. Desde
então o grande ponto de discussão do tema versa sobre essa dúvida: a partir de qual momento um feto passa ser uma ‘pessoa’?
E assim a idéia imposta pelo Cristianismo tomou o mundo e as legislações de um modo geral, passando a comparar prática do aborto ao homicídio.
Vale ressaltar a posição apresentada pela URSS e pelo Uruguai, países que foram contra o movimento mundial da legislação sobre o aborto.
No Uruguai, o código de 1934 liberou o aborto naquele país, considerando apenas crime o aborto consumado sem o consentimento da mãe. Entretanto a lei
causou grande repulsa popular, indo totalmente contra as tradições jurídicas uruguaias [4].
Dessa forma, uma lei promulgada em 1938 estabeleceu como sendo crime o aborto praticado pela própria mãe ou por um terceiro com ou sem consentimento da
mesma.
Interessante versar sobre a legislação apresentada pela URSS, conforme menciona o autor Junior Almeida [5]. Em 1917 o governo soviético aboliu a repressão
penal do aborto. Acontece que com a descriminalização do aborto, as práticas abortivas clandestinas cresceram desordenadamente e sem nenhum controle
estatal.
Assim, em 1920, o governo soviético regulamentou a prática do aborto, estipulando que a prática de tal ato só poderia acontecer dentro de hospitais,
acompanhada por um médico tudo por conta do Estado. Estabeleceu-se um controle estatal sobre o aborto, sempre visando preservar a saúde da mulher.
A má situação econômica do país na época justificava o que se chamou de licenciosidade (liberação do aborto nos hospitais estatais), isso porque o Estado
não poderia obrigar uma mãe a criar um filho em péssimas condições financeiras. Mas, da mesma forma, prometeu o governo lutar contra os abortos
clandestinos, prometendo restabelecer a proibição do aborto após transcorrida a fase de péssima situação financeira, visto que parte da população
acreditava que a lei era imoral e ia contra a necessidade demográfica do país.
Assim em 1936, proibiu-se o aborto não terapêutico. A situação financeira do país já estava estabilizada e não justificava a licenciosidade. Porém indo
totalmente contra o estabelecido, o Soviete Supremo restabeleceu a lei de 1920, instituindo novamente a liberdade do aborto em hospitais estatais, alegando
que “a educação do povo e as medidas administrativas de assistência e estímulo à maternidade justificam que se suprima a repressão e se entregue à
consciência de cada um a solução desse grave problema”. [6]
A organização governamental apresentada pela URSS, no que diz respeito a legalização do aborto, pode ser citada como o Estado que mais se aproximou do
modelo ideal, conforme se demonstrará à frente, estabelecendo a liberdade da mulher para definir sobre o aborto e disponibilizando recursos em seus
hospitais estatais.
Ainda ressalva-se que para colocar em prática um modelo perto do apresentado pela URSS, o Estado deve disponibilizar recursos para a conscientização
popular, acompanhamento psicológico as mulheres e qualificação dos hospitais estatais para realizar as práticas abortivas sem oferecer risco à saúde da
mulher que optar por essa escolha.
Pode-se concluir que atualmente a tendência mundial das legislações desenvolve-se como o estipulado pelo Cristianismo, no século I: condena-se a prática do
aborto, atenua-se a pena para a mulher que provoca ou consente o aborto e agrava-se a pena ao terceiro provocador, com ou sem consentimento da mulher.
Notas:
[1] PRADO, Danda. O que é aborto. Rio de Janeiro: Abril Cultura/Brasiliense, 1985, p. 42-43.
[2] BELO, Warley Rodrigues. Aborto, considerações jurídicas e aspectos correlatos. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 22.
[3] BRUNO, Aníbal. Crimes contra a pessoa. 5. ed, Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976, p. 156.
[4] BELO, Warley Rodrigues. Aborto, considerações jurídicas e aspectos correlatos. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 25.
[5] ALMEIDA, Junior. Lições de medicina legal. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1993, p. 390 – 391
[6] BELO, Warley Rodrigues. Aborto, considerações jurídicas e aspectos correlatos. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 25.