Leonardo Brum *
O que é o aborto? Tipificado no código penal, o aborto é um crime contra a vida, nesse caso, a vida do nascituro, o que está para nascer. Portanto se é crime atentar contra a integridade do nascituro, ele possui direito à vida.
No ordenamento vigente, o aborto se encaixa em uma conduta inadmissível, e quem o pratica recebe pena de um a dez anos. Isso demonstra quão rígido é o sistema a esse respeito, exprime também a importância dada à vida do nascituro.
Então como nossas leis podem tornar relativo um direito tão protegido por elas mesmas?
Hoje existem três formas de se fazer um aborto legalmente, duas decorrem da lei e outra, que surgiu há pouco, da jurisprudência. São estas as formas: quando há alto risco de vida à gestante; quando a gravidez decorre de estupro; e quando está comprovado que o nascituro é anancéfalo, isto é, não possui estrutura cerebral. Dentre as três, a primeira e a terceira são justificáveis pela natureza humana, pois uma é uma espécie de homicídio em virtude da preservação de uma vida, a da gestante, apesar de significar tacitamente que o direito à vida que o nascituro possui é ‘inferior’ ao mesmo direito da gestante. No terceiro caso, porém, ocorre o contrário, não surtirá efeito algum a continuação da gestação, pois o que está pra nascer dificilmente passará do estágio de recém-nascido, e mesmo que o faça, não terá autonomia para sobreviver sem o uso de aparelhos, e mais, não possui sentidos, já que também não possui cérebro. O nascimento e a criação de um anancéfalo só criaria uma falsa esperança de que a criança sobreviveria e quando ela viesse a falecer somaria mais dor ao que a família já havia suportado.
Entretanto, qual a explicação razoável para – analisando segundo o código penal – um crime contra a vida ser escusável, mesmo que não tenha ocorrido decorrente de alguma das causas de exclusão da ilicitude? Aí fica a contradição dessa exceção penal. Não é justo que o nascituro seja ‘condenado à morte’ enquanto o estuprador que o concebeu preserva sua integridade física.
Para não haver contradição seria necessário que existisse pena de morte para equiparar as partes, apesar de uma delas não ter culpa, ou que não fosse excluída a ilicitude do aborto devido ao estupro, mas que o recém nascido fosse criado por uma instituição do Estado.
Essa ‘solução’ apresentada é o correto a se fazer estando em conformidade com o código penal, ou o próprio bom senso. Porém os legisladores provavelmente não deram devida importância à questão do aborto, um crime que gera mais pena até do que o infanticídio.
À primeira vista esta pergunta parece ter um tom frio: “qual o real problema da liberação legal do aborto, o sofrimento do feto?”. Mas pensemos, ele desenvolve os primeiros sentidos – o tato e o paladar – só no fim do terceiro mês de gestação, a ele não será incômodo o aborto que preceda essa data.
Entre os maiores problemas estão o desacordo com os costumes conservadores e principalmente com a religião. Porém é contraditório, pois enxergando através da lente da religião, em sua maioria, veremos que o ser que deixou de nascer devido à vontade dos genitores deixa, portanto, de viver em um mundo no qual seria causa de discórdia ou até um obstáculo para o desenvolvimento profissional e mental dos pais separadamente, ou mesmo o afetivo entre si. Ainda sob o pensamento religioso, o feto abortado não pode receber punição, pois não teve nenhuma participação em sua interrupção de desenvolvimento, dessa forma permanecerá no reino dos céus eternamente.
A questão do aborto é muito polêmica, e faz surgir bons argumentos contrários à sua liberação. Um exemplo clássico é “se já existem a vasectomia e a laqueadura, por que se faz necessária a prática do aborto?”. A resposta é simples, imaginemos um casal de adolescentes que pretende dar início à sua vida sexual, então toma as precauções anticoncepcionais necessárias mas mesmo assim acabam concebendo um filho. Nesse caso não há possibilidade de um deles ter feito as citadas intervenções cirúrgicas, pois quem, quando adolescente, já tem uma opinião fixa sobre ter filhos ou não? Por essa razão que a legislação sobre esses métodos contraceptivos irreversíveis é bastante rígida, para faze-los é preciso ter, no mínimo, dois filhos vivos e mais de 25 anos. No exemplo dado – que não foge da realidade – fica claro que os pais do que está pra nascer não estão preparados financeiramente nem psicologicamente.
A laqueadura e a vasectomia são instrumentos importantes para a redução do número de gravidezes indesejáveis, porém seria apenas uma prevenção para certos casos, e não uma solução para todos eles como o aborto.
Com a permissão do aborto o direito exerceria melhor sua função social, por tornar mais fácil a manutenção econômica da família, conseqüência da redução do número de filhos ocasionando um aumento da renda per capita familiar e uma melhoria nas condições de vida. Outro ponto positivo é a redução – mesmo que leve – do crescimento populacional, tema que atualmente merece a preocupação de todos. Também deve ser levado em conta o número crescente de mulheres que falecem ou ficam com seqüelas graves ao tentar abortar em casa, ou mesmo em clínicas clandestinas com médicos não especializados.
Finalizando, e eliminando interpretações errôneas sobre o texto, o aborto deve sim ser liberado. Porém não em todos os casos. Faz-se necessária uma legislação que abranja mais casos em que a prática do aborto não deve ser punida, que concerne às gravidezes realmente indesejáveis, por exemplo: se o feto desenvolver-se com problemas graves de formação; no caso de o(s) genitor(es) possuírem desenvolvimento mental incompleto ou retardado – adolescentes e doentes mentais, respectivamente; se são facilmente presumíveis os problemas na criação do filho – famílias de renda muito baixa.
Implantando-se uma legislação adaptada à realidade, que não se embase em preceitos religiosos e retrógrados, mas em bons argumentos, o tema aborto não será algo de tamanha polêmica e controvérsia como é agora. Porém conseguir implantá-la será uma tarefa árdua que dependerá em grande parte da doutrina e da jurisprudência.
* Acadêmica de Direito da UFSC
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