Direito Penal

A Inconstitucionalidade da Lei 11.705/08 e Seus Efeitos

A Inconstitucionalidade da Lei 11.705/08 e Seus Efeitos

 

 

César Augusto Marangon *

 

 

                                   A Lei nº 11.705, de 19 de junho de 2008, que veio para modificar alguns artigos do Código de Trânsito Brasileiro, trouxe uma nova noção a respeito do lícito direito de ingerir bebidas alcoólicas em nosso país. A noção de que é proibido beber.

 

                                   O legislador infraconstitucional realizou as alterações no texto legal demonstrando claro e completo desconhecimento da norma maior de nossa sociedade, qual seja, a Constituição Federal. Diversos artigos alterados pela Lei nº 11.705/08 se tornaram inconstitucionais, conforme mostraremos no decorrer deste artigo.

 

                                   Mais do que a regulação de uma sociedade, o direito deve refletir a cultura existente nessa sociedade, conservando seus costumes e seguindo a evolução que possa ocorrer, não o contrário, passando a elencar novas condutas como regras e deixando toda uma história e uma cultura de lado, como se não existissem.

 

                                   Nader (2004. p.26) diz:

 

fatos sociais são criações históricas do povo, que refletem seus costumes, tradições, sentimentos e cultura. A sua elaboração é lenta, imperceptível e feita espontaneamente pela vida social. Costumes diferentes implicam fatos sociais diferentes. Cada povo tem a sua história e seus fatos sociais. O Direito, como fenômeno de adaptação social, não pode formar-se alheio a esses fatos.

 

                                   É notório que a cultura da sociedade brasileira, já tão maltratada durante muitos anos, já englobou a famosa “cervejinha” em suas raízes, sendo límpido que hoje a cerveja se mostra quase que como uma forma de inserção na vida social.

 

                                   A sociedade considera normal, e até incentiva, a tal “cervejinha” nos finais de semana, nas comemorações de alguma data especial, enfim, em momentos que de alguma forma se tem motivos para comemorar ou meramente relaxar e descansar.

 

                                   A saída com os amigos, ou mesmo em alguns compromissos profissionais, por cultura sempre tiveram acompanhamento de bebidas alcoólicas. Durante anos, décadas, etc., essa sempre foi a forma de relaxamento preferida da enorme maioria da sociedade brasileira. Porém, a Lei 11.705/08 vêm para cortar esse momento de descontração, existente em todas as camadas sociais.

 

                                   Quero deixar claro que não compactuo com a idéia de que dirigir embriagado e causar acidentes seja uma atitude correta e lícita, apenas defendo a tese de que nem toda pessoa é alcoólatra, e beber socialmente com amigos não pode se tornar uma atitude reprovável, visto a atual situação de mundo em que vivemos e das dificuldades do dia a dia.

 

                                   Tudo isso sem falar da não menos famosa dupla que é paixão nacional: futebol e cerveja. Impossível imaginar um título de Copa do Mundo conquistado pela nossa seleção em que a população não utilize a cerveja como uma das formas de extravasar tamanha alegria e realização.

 

                                    A cerveja é hoje um dos maiores produtos de nossa economia, conforme podemos verificar com a AMBEV, que recentemente adquiriu a cervejaria norte-americana Anhesuser-Bushc, fabricante da Budweiser, se tornando uma das maiores industrias do gênero em todo o mundo, com aferimento de uma receita líquida acima da casa dos R$ 17.613.700,00 (dezessete milhões, seiscentos e treze mil e setecentos reais).

 

                                   Nem todos que ingerem bebida alcoólica cometem crimes ou perdem suas mínimas sanidades mentais. Não se pode impor uma pena igual para aquele que ingere um copo de cerveja (ou mesmo um remédio que tenha álcool em sua fórmula) e para aquele se mostra totalmente embriagado, deve-se respeitar inúmeros princípios, como o da proporcionalidade.

 

                                               É notória a intenção positiva do legislador, visto que toda e qualquer ação do poder público que procure resguardar a integridade do cidadão é passível de aplausos e elogios, desde que não afronte de forma latente e direta o texto de nossa Carta Maior, ficando claro, portanto, que o texto normativo trazido pela Lei 11.705/88 é totalmente contrário a toda a fundamentação principiológica e hermenêutica de nossa Constituição Federal, sendo, com isso, inconstitucional.

                       

                                   A Lei nº 11.705/08 é flagrantemente atentatória ao texto constitucional, alterando a redação de diversos artigos do Código do Trânsito Brasileiro, levando-os a se tornarem contrários ao da nossa Carta Maior em diversos momentos, atentando diversas cláusulas pétreas de nosso ordenamento jurídico, previstas no artigo 5º de nossa Carta Magna, que assumem verdadeiras proporções dogmáticas e toda e qualquer interpretação a respeito de tais normas devem ser feitas sem diminuir ou retirar sua eficácia, como ensina Jorge Miranda (1983. p.229):

 

Deve assentar-se no postulado de que todas as normas constitucionais são verdadeiras normas jurídicas e desempenham uma função útil no ordenamento. A nenhuma pode dar-se uma interpretação que lhe retire ou diminua a razão de ser. Mais: a uma norma fundamental tem que ser atribuído o sentido que mais eficácia lhe dê; a cada norma constitucional é preciso conferir, ligada a todas as outras normas, o máximo de capacidade de regulamentação. (grifo nosso)

 

                                   Passemos agora a analisar individualmente os pontos contraditórios e inconstitucionais da Lei nº 11.705/08.

 

1 – artigo 165 do CTB

 

                                   Diz o artigo 165 do Código de Trânsito Brasileiro:

 

Art. 165: Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:

Infração – gravíssima;

Penalidade – multa (cinco vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses;

Medida Administrativa – retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado e recolhimento do documento de habilitação.

 

                                   Tal artigo é utilizado como punição àquele que for flagrado enquadrando-se no artigo 277 do mesmo dispositivo legal, conforme podemos ver no §3º do mesmo artigo 27.

 

Art. 277: Todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado.

§3º – Serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165 deste Código ao condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput deste artigo.

 

                                   Nota-se uma clara agressão à própria natureza da Ciência Jurídica, abrindo brechas para a produção de provas ilícitas no momento em que delega à autoridade policial a competência para produzir provas diversas daquelas prevista em lei, como nos mostra a §2º do artigo 277 do Código de Trânsito Brasileiro.

 

Art. 277:

§2º – A infração prevista no art. 165 deste Código poderá ser caracterizada pelo agente de trânsito mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas, acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor;

 

                                   Além do mais há de se notar que a Carta Constitucional previu, no rol dos direitos e garantias individuais, o direito da ampla defesa, da presunção de inocência e de permanecer calado, como podemos ver abaixo:

 

Art 5º:

LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;

LXIII – o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;

                                  

                                   Tal direcionamento constitucional se desdobra no tão falado direito de que “ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo”, corroborado no Pacto de São José da Costa Rica, ratificado no Brasil, e que em seu artigo 8º, 2, g), diz:

 

Art. 8º: Garantias judiciais

2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:

g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada;

 

                                   Notemos que o próprio legislador deixou elencados no artigo 60, §4º, IV da Constituição Federal o que chamamos de “cláusula pétreas”.

 

Art. 60:

§4º – Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

IV – os direitos e garantias individuais

 

                                   No momento em que a Lei 11.705/08, popularmente conhecida como “Lei Seca”, positiva como obrigatória a passagem pelo teste de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que constate o nível alcoólico do condutor, é notadamente verificada uma ferida aberta e um texto contrário a todo o organograma constitucional, pautado nos princípios da ampla defesa, da presunção de inocência e no direito de permanecer calado frente à questionamento onde sua resposta pode vir a incriminá-lo.

 

                                   Fica, portanto, latente a agressão ao texto constitucional no §3º do artigo 277 do Código de Trânsito Brasileiro, acrescentado pela Lei 11.705/88. Deve-se evitar que tais absurdos legislativos tenham seus efeitos inconstitucionais efetivamente produzidos.

 

2 – artigo 306 do CTB

 

                                   O Código de Trânsito Brasileiro traz a seguinte redação em seu artigo 306:

 

Art. 306: Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:

Penas – detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

Parágrafo único.  O Poder Executivo federal estipulará a equivalência entre distintos testes de alcoolemia, para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo.

 

                                   Como podemos observar, tal artigo generaliza a condição para que cada indivíduo seja considerado embriagado, contrariando assim os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

 

                                   Não se pode aceitar que a pessoa que tenha consumido uma xícara de café ou ingerido um pequeno alimento que contenha álcool em sua formula seja condenado com tamanha perversidade.

 

                                   Luis Flávio Gomes (2008. p.379) nos ensina que “se o sujeito tem concentração de álcool igual ou superior a seis decigramas, mas dirige seu veículo normalmente (corretamente, sem nenhum deslize viário), inexiste infração penal (art. 306).

 

                                   Caso o condutor comprovadamente se encontre absolutamente embriagado e se envolva em um acidente, o que pode não ocorrer, aí sim deve-se aplicar as sanções administrativas previstas, além do mesmo responder proporcionalmente ao dano causado.

 

                                   Como já colocado, o artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro afronta os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

 

                                   O princípio da proporcionalidade pode ser observado em diversos momentos dentro da Constituição Federal, sendo, primordialmente, a exata adequação entre a finalidade social de determinada norma e a forma encontrado para atingi-lo, ou a forma com o Poder Executivo se utiliza de tal norma.

 

                                   No momento em que a Constituição consolida a individualização da pena (artigo 5º, XLVI, caput) ela deixa implícito que estas devem ser proporcionais ao delito cometido.

 

Art. 5º

XLVI – a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:

 

                                   Segundo Carlos Affonso Pereira de Souza “desde cedo a doutrina compreendeu que se uma Constituição define um determinado fim a ser alcançado, ela também lhe defere os meios, daí a importância da interpretação extensiva para a hermenêutica constitucional”.

 

                                   O ilustríssimo doutrinador português J. J. Gomes Canotilho (2002. p. 1281) já dizia que “se exige aqui um esquema de fundamentação e controlo conducentes, em termos gerais, aos mesmos resultados obtidos pela utilização do princípio da proibição do excesso em sede de restrição de direitos”.

 

                                   Na prática podemos fazer uma comparação entre a Lei Seca e a Lei de Tóxico. Enquanto nessa fica positivado que a pessoa que trazer consigo substância entorpecente apenas está sujeita a comparecer a juízo para que lhe seja proposto um tratamento, naquela o simples consumo de uma substância lícita e, a seguir, a prática, igualmente lícita, de dirigir é condenada com a pena privativa de liberdade!

 

                                   E mais, analisando a Lei de Tóxico chegamos a conclusão de que o consumo de uma substância ilícita, como os entorpecentes, é permitido, enquanto após analisarmos a Lei Seca notamos que o consumo de uma substância lícita é proibido!

 

                                   Fica claro o desrespeito ao princípio da proporcionalidade na malfada Lei Seca!

 

                                   Com relação ao princípio da razoabilidade, Humberto Ávila (2003. p.94) diz que este “estrutura a aplicação de outras normas, princípios e regras, notadamente regras”.

 

                                   Na realidade a observação do princípio da razoabilidade no presente caso se faz necessário para que se possa analisar a redação e aplicação da Lei Seca, ou seja, se ela se encontra em razoabilidade com os costumes e regras sociais já fixadas na sociedade.

 

                                   Com isso notamos que a Lei Seca não se encontra na mesma direção social e cultural da sociedade brasileira, não respeitando, assim, os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

 

                                   Não é razoável e nem proporcional a possibilidade do benefício do surscis para aqueles que cometem crimes contra a administração pública, como o peculato, o que faz com que eles, de fato não sejam punidos; enquanto que aquele que tenha tomado apenas uma colher de remédio que contenha álcool seja severamente punido.

 

                                   Na realidade, a lei seca é uma monstruosidade, calcada na idéia de um excessivo intervencionismo estatal sobre as liberdades, ampliando perigosamente, em um País infelizmente refém da corrupção e dos abusos, os campos de ação imotivada dos agentes públicos.

 

                                               Com a verificação da inconstitucionalidade da Lei 11.705/88 necessário se faz que seus efeitos não atinjam os cidadãos que não vierem a infringir a norma de maior hierarquia dentro do nosso ordenamento jurídico.

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros. 2003. p. 94

 

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra, POR: Almedina. 2002. p. 1281

 

GOMES, Luiz Flávio. Comentários às Reformas do Código Processual Penal e da Lei de Trânsito. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2008. p. 379

 

http://www.ambev.com.br/emp_04.htm. . Acesso em: 09.09.2008, às 14:20

 

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 2. ed. Coimbra: Coimbra. 1983

 

NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Forense. 2004

 

SOUZA, Carlos Affinso Pereira de. Apud. O Princípio da Razoabilidade e o Princípio da Proporcionalidade: uma abordagem constitucional. Disponível em: < http://www.puc-rio.br/sobrepuc/depto/direito/pet_jur/cafpatrz.html>. Acesso em: 09/09/2008, às 16:30

 

 

* Estudante do 10º período do curso de Direito na Universo/JF; Pós-graduando em Direito e Relações Familiares pela Universo/JF; Estagiário do Escritório de Advocacia Ribeiro de Sá.

 

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Como citar e referenciar este artigo:
, César Augusto Marangon. A Inconstitucionalidade da Lei 11.705/08 e Seus Efeitos. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direitopenal-artigos/a-inconstitucionalidade-da-lei-1170508-e-seus-efeitos/ Acesso em: 08 dez. 2024