Direito Tributário

Tributos. Cultura da nebulosidade

Tributos. Cultura da nebulosidade

 

 

Kiyoshi Harada*

 

 

O Sistema Tributário Brasileiro é complexo, caótico e extremamente contraditório. De um lado, ele é totalmente esgotado pelo legislador constituinte, que o modelou de forma definitiva, prescrevendo uma fantástica quantidade de princípios tributários, nada deixando à eventual colaboração do legislador ordinário, para acrescer ou diminuir. Doutrinariamente, esses princípios são conhecidos como limitações constitucionais ao poder de tributar, ou escudos de proteção dos contribuintes. De outro lado, legislações de três níveis impositivos despejam, periodicamente, inúmeros instrumentos normativos, agredindo vários desses princípios, sem que os tribunais os repilam adequadamente.

 

     Hoje, já virou moda o legislador ignorar a natureza intrínseca de cada espécie tributária, apegando-se exclusivamente a sua denominação formal. Com isso, de uma só penada, ele manda para o espaço a meticulosa previsão de cinco espécies tributárias distintas, e contorna o princípio constitucional da discriminação de impostos, garantia maior do contribuinte. Assim, a quantidade de impostos em vigor, em cada esfera política, estará na dependência direta da imaginação criadora do legislador, sempre estimulada por palatáveis remédios, ministrados pelos governantes.

 

     Neste modesto artigo, trataremos, em rápidas pinceladas, do vício da nebulosidade, que é uma das marcas características de nossa legislação tributária.

 

     Uma variedade infindável de instrumentos normativos compõem a legislação tributária: princípios constitucionais, leis complementares, leis ordinárias, medidas provisórias, decretos, instruções normativas, portarias, pareceres normativos, circulares, avisos, comunicados etc, criando um verdadeiro cipoal de normas que não obedecem ao princípio da hierarquia vertical das normas jurídicas. Enfim, a legislação tributária caracteriza-se pela insegurança, pelo dinamismo caótico e pela nebulosidade de suas normas.

 

     A legislação caminha exatamente em sentido oposto ao prescrito no § 5º do art. 150 da CF, que determina expedição de medidas para que os consumidores sejam esclarecidos acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias e serviços. Outrossim, o dispositivo do art. 212 do CTN, que determina a consolidação anual, em texto único da legislação vigente, relativamente a cada um dos tributos, sempre foi uma letra morta. Nenhuma das três esferas impositivas vem cumprindo essa determinação da lei complementar. Ironicamente, quanto mais se exige, por meio de normas de hierarquia superior, mais se descumpre, por vias de instrumentos legislativos subalternos.

 

     Enquanto a Constituição Federal fala em esclarecer os consumidores acerca dos impostos incidentes sobre mercadorias e serviços, a legislação ordinária incorporou a técnica tributária de ocultação do valor real do imposto. Isso já faz parte de nossa cultura. E essa cultura, visa a perpetuação de uma política de crescente exacerbação tributária, que já atingiu 37% do PIB contra os 22,16% do final da década de oitenta.

 

     Assim é que o ICMS, imposto estadual, tributo de maior arrecadação nacional, é cobrado por dentro, isto é, tem a sua alíquota fixada a partir do preço reajustado pelo montante do imposto, vale dizer, o imposto incide sobre si próprio. Entretanto, apesar de retratar típico exemplo de imposto sobre imposto é conhecido, entre nós, como ‘tributo não-cumulativo’, expressão simpática que se contrapõe à odiosa expressão ‘tributo cumulativo’, a qual, denota idéia de cascatear em cima da cabeça do contribuinte. Só que, como o ICMS é cobrado ‘por dentro’, ele não permite ao contribuinte ter uma idéia do preço da mercadoria adquirida, antes e após a incidência do imposto, apesar do seu destaque, para efeito de escrituração nos livros fiscais. Dessa forma, uma alíquota nominal de 18% equivalerá a uma alíquota real de 20,48%; a alíquota de 25% equivalerá a uma alíquota de 33,35%, patamar não alcançado à época do IVV cumulativo.

 

     Na esfera federal, com o advento da Medida Provisória nº 164/04, instituindo a incidência do PIS/COFINS sobre a importação de bens e serviços, em nome da isonomia entre o produto importado e o nacional e com fundamento na EC nº 42/03, a nebulosidade da sua forma de cálculo ficou bem mais acentuada.

 

     De fato, segundo o art. 7º dessa medida provisória, a base de cálculo do PIS/COFINS-importação será o valor aduaneiro que servir ou que deveria servir de base de cálculo do imposto de importação, acrescido do montante desse imposto (II), do valor do ICMS e do valor das próprias contribuições ( PIS/COFINS). Em outras palavras, as contribuições do PIS/COFINS incidem sobre o valor do II, sobre o valor do ICMS, que incide sobre si próprio e sobre o valor das contribuições, e sobre o valor das próprias contribuições, que incidem sobre o ICMS; tanto as contribuições, como o ICMS são calculados por dentro. Isso enseja aquilo que Clovis Panzarini chama de ‘efeito circular do PIS/COFINS e do ICMS na importação’ (Valor Econômico, 12, 13 e 14 de março de 2004, p. A18). Nesse artigo, o citado autor demonstra que a soma das alíquotas nominais do ICMS (18%), do PIS/COFINS (9,25%) perfaz 27,25%, ao passo que, o seu cálculo por dentro eleva a alíquota real para 37,46%, isto é, acarreta uma diferença nominal de 10,21%. Essa maneira perversa e enrustida de calcular o montante de cada tributo faz com que a majoração de ICMS, por exemplo, reflita imediatamente no valor do PIS/COFINS a ser pago e vice-versa. Por isso, a elevação da alíquota da COFINS carretará imediato aumento do ICMS que, por sua vez, irá aumentar novamente o valor da COFINS a ser pago, porque ela incide, também, sobre o valor do ICMS, além de incidir sobre si próprio. É uma loucura generalizada, um verdadeiro ‘samba do crioulo doido’.

 

     Juliana Rita Fleitas apresenta as equações algébricas abaixo para determinação dos valores da Cofins-importação, do Pis-importação e do ICMS, nos seguintes termos:

 

     Das equações (7), (8) e (12), podemos determinar os montantes devidos a título de COFINS-Importação, PIS-Importação e ICMS, respectivamente, segundo Medida Provisória 164, a partir de 1º de maio de 2004″ (in Tributário.Net, Boletim nº 054/2004).

 

     Na verdade, as contribuições do PIS/COFINS-importação, fundadas na EC nº 42/03, têm natureza jurídica diversa do PIS/COFINS tradicional. Começa pelo aspecto nuclear do fato gerador que, ao invés da receita bruta mensal, é a entrada de bens estrangeiros no território nacional ou o pagamento, o crédito, a entrega, o emprego ou a remessa de valores a residentes ou domiciliados no exterior como contraprestação do serviço prestado (art. 3º). O contribuinte deixa de ser apenas a pessoa jurídica, mas, a pessoa física também (art. 5º). A base de cálculo, como vimos, não é a receita total do mês, auferida pela pessoa jurídica, mas, o valor aduaneiro com todos aqueles acréscimos retro mencionados. É fora de dúvida, portanto, que somente uma lei complementar poderia instituir essas exações, porém, não é propósito deste artigo cuidar desse aspecto, que será abordado oportunamente, quando iremos apontar todas as inconstitucionalidades.

 

     Retomando a matéria, essa cultura da nebulosidade, sem dúvida alguma, conspira contra a desejável conscientização da sociedade, quanto ao exato volume do tributo que vem pagando, para despertar-lhe uma visão crítica no que diz respeito ao direcionamento dos recursos financeiros, que lhes foram subtraídos por meio de tributos em cascatas, batizados de não-cumultivos. Uma sociedade que só sabe reclamar do tributo, mas, fica alheio às despesas públicas, não é uma sociedade participativa, nem contribui para a saúde financeira e administrativa do Estado.

 

     A nebulosidade e a falta de transparência parece ser fruto de nossa cultura. Bastou, por exemplo, a identificação e separação do valor do ICMS nas contas de energia elétrica para dar margem a um considerável número de ações judiciais, contestando esse imposto, sob a alegação de que o mesmo deveria ser pago e suportado pelas empresas concessionárias. É que, fazendo-se os cálculos, a partir do valor da energia consumida e do valor do imposto destacado e identificado, chegaram a conclusão de que o imposto cobrado representava 33,35%, ao invés dos 25% devidos. Muitas dessas ações foram acolhidas pela Justiça. Nas operações de venda de mercadorias em geral, onde o valor do imposto é embutido e enrustido no preço final, nenhuma reclamação ensejou. Contudo, em todas elas o consumidor arcou com 20,48% de imposto ao invés da alíquota nominal de 18%.

 

     E mais, ultimamente, a falsa retórica do tributo não-cumulativo vem sendo utilizada pelo governo central, para substituir os tributos cumulativos. Só que nessa substituição, o governo tem promovido uma elevação brutal da carga tributária, não perceptível pelos contribuintes em geral, sem os estudos específicos, como aconteceu com a legislação do PIS/COFINS, após os adventos da Lei nº 10.833/03 e da Medida Provisória nº 164/04. Os parlamentares se digladiam: parte deles sustenta que houve redução ou que manteve o mesmo nível anterior; outra parte, com acerto, sustenta que houve aumento. Não deixa de ser uma forma de nebulosidade tributária.

 

     Concluindo, existe, entre nós, a cultura da nebulosidade, mesmo porque qualquer transparência resulta na imediata contestação perante o Judiciário.

 

SP, 08.03.04

 

 

* Sócio fundador da Harada Advogados Associados.

   Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro.

   Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos.

   Conselheiro do IASP.

   Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

   kiyoshi@haradaadvogados.com.br

   www.haradaadvogados.com.br

 

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Como citar e referenciar este artigo:
HARADA, Kiyoshi. Tributos. Cultura da nebulosidade. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-tributario/tributos-cultura-da-nebulosidade/ Acesso em: 20 jan. 2025