Responsabilidade tributária dos sócios, diretores e gerentes de empresas
Kiyoshi Harada*
O tema aparentemente não oferece ou deveria oferecer maiores comentários em face da expressa disciplinação da matéria em nível de lei complementar aplicável no âmbito nacional. Ocorre que, na prática, a matéria a ser analisada a seguir é uma das que vem sendo dado um tratamento jurisprudencial equivocado de longa data.
O CTN, em dois artigos, dispõe sobre a responsabilidade tributária dos sócios, diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado.
“Art. 134. Nos casos de impossibilidade de exigência do cumprimento da obrigação principal pelo contribuinte, respondem solidariamente com este nos atos em que intervierem ou pelas omissões de que forem responsáveis: …………………………………………………………………………………..
VII – os sócios, no caso de liquidação de sociedades de pessoas”.
“Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos:
…………………………………………………………………………………..
III – os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado”.
Em ambas as hipóteses, a jurisprudência de nossos tribunais, em larga escala, tem feito uma interpretação literal dos incisos legais, sem atentar para o disposto no caput desses dispositivos. As duas hipóteses são diferentes e têm como fundamento situação diversa. Examinemos.
Da responsabilidade solidária
O art. 134, VII cuida da responsabilidade solidária peculiar ao direito tributário. Assim, cabe assinalar, de partida, que não vingam as assertivas de alguns autores no sentido de que a responsabilidade das pessoas enumeradas nos incisos I a VII, por se tratar de responsabilidade solidária, independe da verificação da impossibilidade de cumprimento da obrigação tributária principal pelo contribuinte. Essa interpretação equivocada, data venia, é fruto de vezo civilista de querer interpretar tudo em termos de direito civil, no caso, consoante a regra do art. 904 do Código Civil, que define a solidariedade passiva.
O certo é que a própria norma condiciona a responsabilidade solidária de terceiros aí referidos a dois requisitos impostergáveis: a impossibilidade de o contribuinte satisfazer a obrigação principal e o fato de o responsável ter uma vinculação indireta, através de ato comissivo ou omissivo, com a situação que constitui o fato gerador da obrigação tributária. Acrescenta o parágrafo único desse artigo que a responsabilidade solidária, em matéria de penalidades, só tem aplicação em relação às de carácter moratório, em respeito ao princípio de que a pena não pode passar da pessoa do infrator.
Se o caput do art. 134 do CTN introduziu dois requisitos expressos para a deflagracão da responsabilidade solidária de terceiro, não há como, em nome da doutrina ou de regra de direito privado, desprezar aqueles requisitos essenciais para aplicar apenas o inciso legal (inciso VII), que aponta os sócios como responsáveis “no caso de liquidação de sociedade de pessoas”.
Por conta dessa interpretação equivocada, a jurisprudência já construiu, de forma quase irreversível, a teoria da responsabilidade de todos sócios na hipótese de cessação da atividade do contribuinte sem arquivamento do distrato na Junta Comercial, o que caracterizaria dissolução irregular da sociedade, adjetivação esta, aliás, desnecessária ao teor do dispositivo sob comento, que não distingue liquidação regular da irregular.
Dessa forma, sobrevindo a falência os sócios ficariam responsáveis pelos créditos tributários não satisfeitos pelo contribuinte, porquanto a quebra implica cessação de atividade sem prévio arquivamento do distrato no Registro competente.
“EXECUÇÃO FISCAL – Penhora – Incidência sobre bens particulares de sócios – Admissibilidade – Encerramento irregular da sociedade – Responsabilidade solidária dos sócios em geral e não exclusivamente do sócio gerente – Artigos 134, inciso VII, e 135, inciso I e III do Código Tributário Nacional – Recurso Provido, JTJ 125/123”
“SOCIEDADE COMERCIAL – Responsabilidade limitada – Extinção irregular – Execução fiscal – Penhora de bens particulares dos sócios – Admissibilidade – Recurso extraordinário provido. Ementa oficial: Tributário. Execução fiscal. Desaparecimento da firma sem regular liquidação. Legitimidade passiva dos sócios, que podem ser citados e ter seus bens penhorados. Precedentes do STF”. RE 102.913-7 – rj – 2ª T. – j. 13.12.84 – Rel. min. Décio Miranda – v.u. – DJU 22.2.85
“SOCIEDADE COMERCIAL – Cotas de responsabilidade limitada – Dissolução – Dívidas da sociedade – Responsabilidade dos sócios. Os sócios de sociedade por cotas de responsabilidade limitada que a dissolvem, sem solver todo o passivo, são responsáveis por tal liquidação.” Ap. – sum. 142.257 – São Vicente – 7ª c. – j. 2.3.83 – rel. Juiz Silva Ferreira v.u.
“EXECUÇÃO FISCAL – Embargos opostos por sócio quotista, gerente da empresa devedora, como responsável substituto, em face da dissolução irregular da sociedade. Art. 135, III, do Código Tributário Nacional. Constitui infração da lei, com consequente responsabilidade do sócio-gerente pelos débitos fiscais da empresa, como devedor substituto, a dissolução irregular da sociedade, mediante a mera paralisação de suas atividades. Gerente, para os efeitos em tela, e aquele como tal considerado no recurso provido”. Resp nº 008838/SP, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ de 27-5-91, p. 6955).
Como se vê, alguns julgados confundem a responsabilidade solidária qualificada no art. 134, VII, com a responsabilidade pessoal, substituição, do art. 135, III do CTN, apesar da clara distinção do pressuposto fático de uma e de outra norma.
O que é pior, ampliando a interpretação dos acórdãos da espécie vem surgindo a espantosa tese que responsabiliza qualquer sócio pelo crédito tributário devido pela empresa, na hipóteses de cessação de atividade decorrente do estado de insolvência, seguido de decretação de quebra. Segundo essa tese, nos casos de insolvência deve-se reservar bens suficientes para pagamento de dívidas, sob pena de caracterizar encerramento irregular de atividade, com o que violado estaria o art. 134, VII do CTN.
Ora, estado de insolvência independe de vontade de sócio ou administrador, nem de contrariedade à lei ou de exorbitância de atribuições estatutárias. Simplesmente ele acontece em determinada conjuntura econômica afetando, com maior rigor, este ou aquele setor da atividade. Exigir que os sócios da empresa, em estado de insolvência, promova regular dissolução com pagamento de todas as dívidas e conseqüente arquivamento do distrato no Registro de Comércio equivaleria a banir do mundo jurídico o instituto da falência. Não teria sentido algum cogitar-se de decretação de quebra depois de tudo pago. Seria um contra-senso inadmissível.
Nada justifica confundir a responsabilidade da empresa-contribuinte e a dos sócios nos “atos em que intervierem ou pelas omissões de que forem responsáveis”. Somente na hipótese de constituição de sociedade de pessoas com o fito de fraudar direitos de terceiros é que deve ser aplicada a teoria da desconsideração da pessoa jurídica, a fim de que possa alcançar os bens dos sócios, que ocultaram, premeditadamente, o patrimônio individual debaixo da pessoa jurídica. Óbvio, pois, que a hipótese demanda dilação probatória, caso a caso não comportando criação pretoriana aplicável indiscriminadamente. Certo, também, que incogitável a aplicação de tal tese em relação às sociedades comerciais, que operam regularmente no mercado. Em relação a essas empresas, se um dia, vierem a ser vítimas de recessão econômica e caírem na insolvência, não há que se buscar o ressarcimento de prejuízos no patrimônio individual dos sócios, sejam os credores representados pelo poder público ou pelos particulares. Na hipótese, todos perderão: a empresa, os sócios, os credores em geral e a própria sociedade pela supressão involuntária de unidade produtiva.
Da responsabilidade pessoal dos gerentes
O art. 135, inciso III do CTN cuida da responsabilidade pessoal dos diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado. Aqui, também, a exemplo do que ocorre em relação ao dispositivo antes analisado, persiste a aplicação do inciso III, dissociado do que prescreve o seu caput, se bem que em menor escala.
“EXECUÇÃO FISCAL – Débito – responsabilidade do sócio gerente – Admissibilidade – Dissolução irregular da sociedade na pendência de débito fiscal que o enquadra como devedor substituto do artigo 135, inciso III do Código Tributário Nacional – Recurso não provido, JTJ 134/84”.
“EXECUÇÃO FISCAL – Responsabilidade tributária – Sócio – Extinção de fato da firma – Não pagamento de débitos fiscais – Infração de lei – Responsabilidade caracterizada – Artigo 135, inciso III do Código Tributário Nacional – Recurso não provido JTJ – 152/55”.
“EXECUÇÃO FISCAL – Penhora de bens particulares de sócio gerente desnecessidade de prévia apuração de responsabilidade pessoal. Infringe a lei o sócio-gerente que deixa de recolher, tempestivamente, os tributos devidos pela firma devedora e, como responsável tributário, pode ser citado e ter seus bens particulares penhorados, mesmo que seu nome não conste da certidão de dívida ativa. Inexigibilidade de prévia apuração da responsabilidade. Recurso provido”. (Resp nº 0019506/MG, Rel. Min. Garcia Vieira, DJ de 23-3-92, p. 03437).
“O sócio responsável pela administração e gerência da sociedade limitada é objetivamente responsável pela dívida fiscal, contemporânea ao seu gerenciamento ou administração constituindo violação de lei o não recolhimento da dívida fiscal regularmente constituída e inscrita”(Resp nº 33.731-MG-1ª T. DJU de 6-3-95).
O equívoco é patente. O dispositivo não cuida de responsabilidade objetiva, aliás, restrita ao Poder Público em geral e às empresas concessionárias (§ 6º do art. 37 da CF). O nosso sistema jurídico não agasalha a teoria da responsabilidade sem culpa subjetiva, pelo que algumas disposições esparsas, em sentido contrário, são, na verdade, ineficazes.
O preceito examinando, regula a responsabilidade por substituição; imputa a responsabilidade pessoal ao gerente, ao diretor ou ao administrador nas hipóteses e condições aí especificadas.
É certo que o não recolhimento de imposto devido – declarado pelo contribuinte ou apurado pelo fisco, inscrito ou não para cobrança executiva – constitui infração legal. Mas isso, por si só, é irrelevante para tornar o gerente ou diretor pessoalmente responsável por aquele imposto não satisfeito pelo contribuinte.
A disposição legal é bem clara no sentido de separar a responsabilidade normal do contribuinte pelos créditos tributários oriundos de operações regulares, da responsabilidade pessoal dos diretores ou gerentes pelos créditos tributários oriundos de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos.
É o caso, por exemplo, de tributo gerado pela prática de contrabando de mercadorias, ou daquele oriundo de operação estranha aos objetivos estatutários (uma empresa que explora compra e venda de calçados resolve investir na compra e venda de gados).
É comum deparar-se com julgados imputando responsabilidade pessoal ao gerente por crédito tributário declarado (lançamento por homologação) e não pago, sob o fundamento de que isso caracteriza infração legal. Ora, o crédito tributário não resultou do “não-pagamento” (infração legal) mas, de operação legítima, legal e regularmente escriturada pelo contribuinte. A constituição do crédito tributário antecedeu a infração legal pelo que esta não pode ter sido a causa daquele.
Felizmente, neste particular de há muito decidiu a Corte Suprema que o atraso no pagamento de tributo não configura infração ao art. 135, III do CTN (Ag. nº 59.361-SP, Rel. Min. Bilac Pinto, Resenha Tributária, 1975, Seção 1.2, p. 497).
Por tudo isso, o tema abordado neste modesto trabalho merece reexame da jurisprudência de nossos tribunais.
* Advogado tributarista, Professor de Direito Financeiro, Tributário e Administrativo
Diretor da Escola Paulista de Advocacia e Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.
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