Imunidade tributária e a incidência do ICMS
José Benedito Miranda*
Não são incomuns as ações instauradas por entidades beneficiadas com a imunidade tributária visando afastar a incidência do ICMS sobre as operações em que figuram como adquirentes de energia elétrica ou tomadoras de serviços de comunicação, invocando, em benefício de sua pretensão, o que dispõe o art. 150, VI, da Constituição Federal.
Em ações dessa natureza avulta de importância a correta identificação da parte processualmente ativa para ação, que se inscreve no elenco dos pressupostos para o provimento sobre o mérito, que ao juiz, em qualquer grau de jurisdição, cumpre conhecer espontaneamente e cuja presença cabe-lhe preliminarmente sindicar (REsp 808.536), pois a inobservância dos requisitos que neles se expressam compromete o próprio exercício da jurisdição, segundo autorizadas manifestações doutrinárias. A partir daí fica fácil delimitar o campo de aplicação da imunidade tributária.
Pois bem. Para a Teoria Geral do Direito, a relação jurídica é definida como o vínculo abstrato, segundo o qual, por força da imputação normativa, uma pessoa, sujeito ativo, tem o direito subjetivo de exigir de outra, denominada sujeito passivo, o cumprimento de certa prestação (Paulo de Barros Carvalho, “Curso de Direito Tributário”, Saraiva, 4ª edição, p. 190), sabendo-se que, na seara tributária, a relação jurídica estabelece-se, em face do que resulta da leitura conjunta dos artigos 119 e 121, ambos do CTN, entre a entidade política competente para instituir e exigir o tributo e a pessoa que, por manter relação direta com o respectivo fato gerador, está obrigada a seu pagamento.
Isso significa que a obrigação de pagar o tributo nasce com o surgimento do fato descrito na lei tributária como idôneo para determinar o vínculo tributário. Ocorrendo, então, o fato gerador, há incidência do tributo ou da regra jurídica sobre o fato, desencadeando-se, como efeito típico, o surgimento da obrigação tributária para uma pessoa determinada, pois a relação entre o fato gerador e a pessoa determina o vínculo da obrigação a seu sujeito passivo.
Contribuinte do ICMS, a seu turno, segundo a lei complementar a quem a Constituição confiou a uniforme disciplina do imposto, é, então, a pessoa que realiza operações de circulação de mercadoria ou prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação (LC 87/96, art. 4º), isto é, a pessoa que realiza o pressuposto da incidência tributária.
Eis porque, no campo da relação jurídico-tributária, a obrigação nasce, desenvolve-se e extingue-se, não pelo modo que os particulares tenham determinado, mas pela forma que a lei tenha disposto, tenha regulado, vale dizer, a obrigação tributária é uma obrigação “ex lege”: nasce entre dois sujeitos e extingue-se com seu cumprimento, ou por uma das hipóteses do artigo 156 do CTN.
A pessoa escolhida pelo legislador para figurar no pólo passivo da relação tributária, o devedor do tributo, é, pois, o contribuinte legal, ou contribuinte de direito (de jure).
Entretanto, nem sempre, sob o ponto de vista financeiro, o sujeito passivo é gravado, definitivamente, pelo tributo, por resultado da repercussão econômica, que, segundo Souto Maior Borges, “processa-se geralmente através dos mecanismos de formação de preços, aos quais se incorpora a parcela correspondente ao tributo, nas diversas etapas dos ciclos de produção, industrialização e comercialização do bem” (in “Teoria Geral da Isenção Tributária”, Malheiros, 3ª edição, 2ª tiragem, p. 185 e seguintes). A repercussão ou translação é, portanto, a transferência do ônus tributário do contribuinte de direito (de jure) para o contribuinte de fato (de facto).
Há que se distinguir, então, ainda segundo Souto Maior Borges, a incidência jurídica da incidência econômica, pois, economicamente, a carga tributária pode ser suportada por pessoa distinta do contribuinte de direito. Sendo assim, as noções de incidência jurídica e incidência econômica dos tributos correspondem, então, a conceitos inconfundíveis.
Nessas circunstâncias, em tema de tributos que comportam a transferência do respectivo encargo financeiro, denominados indiretos, assume especial relevância jurídica, inclusive para efeito de fruição da imunidade tributária, a correta identificação do sujeito passivo da obrigação tributária, uma vez que o direito tributário somente se interessa pelo contribuinte de jure, pessoa que a lei escolhe para suportar na ordem jurídica o ônus do tributo.
E assim é, efetivamente, pois basta ver que, do consumidor, nada exige a lei, porque ausente o indispensável vínculo jurídico. Sendo assim, a obrigação de pagar o imposto devido, à ocorrência do fato gerador, faz de quem realiza o fato gerador o único sujeito ativo do correspondente direito de postular a restituição do que pagou indevidamente e de quem dele figura como contribuinte o direito de suscitar a ilegitimidade da incidência tributária.
O tributo é o objeto da prestação jurídica e, uma vez satisfeita a prestação, a relação jurídica tributária se extingue. O que acontece depois, por desdobramento do cumprimento da obrigação que confere consistência material ao imposto, ocorre em momento posterior e em outra relação jurídica, esta de natureza comercial, privada, portanto.
Evidenciado, então, que o translado do encargo financeiro, no primeiro momento suportado pelo solvens, é posterior ao cumprimento da prestação imposta pela lei, consubstanciam-se, então, diferentes relações jurídicas, uma tributária, pública, portanto; outra, privada, resultante da incorporação, ao valor do negócio jurídico celebrado ou do serviço prestado, dos custos e despesas incorridos, inclusive fiscais.
Ainda que o contribuinte do imposto transfira-lhe o respectivo encargo, que o consumidor supõe indevido na origem, nem por isso estará legitimado a acionar o sujeito ativo da obrigação, satisfeita que foi por outrem, pelo sujeito passivo da obrigação tributária, pois, somente a quem se impõe a obrigação do pagamento, defere-se o poder de exigir, correspondentemente, sua restituição, quando a exigência fiscal se mostre ao desamparo da lei.
Por conseguinte, pretensão visando afastar a incidência do imposto só pode ser deduzida pelo sujeito passivo da obrigação e não pelo consumidor, que, alheio à relação que vincula o sujeito ativo da obrigação a quem é dela devedora, não exibe legitimidade ativa ad causam e nem interesse jurídico a ser tutelado.
Não obstante, há quem afirme que a distribuidora, ao entregar a energia elétrica a seu adquirente, assume a condição de mera responsável pelo recolhimento do ICMS, devido por este último, porque, a rigor, não pratica qualquer operação mercantil, mas apenas a viabiliza, visto que se limita a interligar a fonte produtora ao consumidor final. E, “na medida em que o sujeito passivo (contribuinte de direito) é o consumidor final da energia elétrica, segue-se, por imperativo lógico, que, se este for imune à tributação, dele não poderá ser cobrado o ICMS, salvo na hipótese do art. 150, § 3º” (cfr. Roque Antonio Carrazza, “ICMS”, Malheiros, 7ª edição, p. 180).
Entretanto, não parece que assim seja.
Com efeito, como visto, contribuinte é quem realiza o pressuposto da incidência, no caso, a fornecedora da energia elétrica e não o consumidor. Sendo assim, a distribuidora, quando fornece ou simplesmente transporta a energia elétrica, é, sim, sujeito passivo da obrigação tributária, mas por débito próprio e não substituto tributário do consumidor; à sua custa e por conta própria, é o imposto por ela recolhido, comprova-o a nota fiscal/fatura, em que ela debita-se do ICMS devido pela operação ou pela prestação do serviço, não obstante não seja a produtora da energia elétrica por ela fornecida ou transportada.
Nesse sentido, “Se cada uma das sucessivas operações é fato gerador, é claro que será contribuinte de direito o respectivo promotor, malgrado a constatação de que o ônus financeiro do tributo é integralmente transferido para o consumidor final. A circunstância não é exclusiva para o setor de energia elétrica, e é a própria razão de ser da distinção entre o contribuinte de direito (aquele que responde perante o Estado) e o contribuinte de fato (aquele que arca com o peso do tributo). Contribuintes de direito do ICMS são as pessoas definidas no art. 4º da Lei Complementar nº 87/96, dentre as quais não comparece o consumidor final da energia elétrica”, anotam Sacha Calmon N. Coelho e Misabel Abreu Machado Derzi (in “Pareceres – Direito Tributário da Energia”, Forense, 2004, p. 176).
Por outro lado, mesmo quando o consumidor é uma entidade pública, autarquia, fundação instituída e mantida pelo Poder Público, partido político, entidade sindical ou instituição de educação e de assistência social, nem por isso está a operação amparada pela imunidade tributária, precisamente porque, não figurando como contribuinte de jure do ICMS, o imposto é devido por outrem, pela distribuidora, e não por elas ou por ele, não obstante possam vir a amargar o ônus que lhes foi trasladado.
É bem de ver que a manifestação doutrinária que se reputa incorreta rompe, ademais, com toda dogmática jurídica construída em torno do tema e com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, quando ainda competente para dizer por último sobre a aplicação do direito federal – embora não se tenha conhecimento de qualquer alteração introduzida na legislação aplicável.
Com efeito, segundo o STF, a relação jurídica de natureza tributária estabelece-se, apenas, entre o Poder tributante e o contribuinte ou responsável, nos termos da lei, pouco importando a repercussão econômica do imposto:
“Imposto de consumo. Não há imunidade do antigo imposto de consumo sobre produto vendido a pessoa jurídica de direito público, embora para seu próprio uso, eis que a relação tributária se estabelece, apenas, entre o poder tributante e o contribuinte ou responsável, nos termos da lei, pouco importando, para efeito de imunidade ou de isenção, a repercussão econômica do tributo. Precedentes, na jurisprudência do Supremo Tribunal, a partir dos embargos no RE 68.215, de 9.9.1970, Recurso Extraordinário conhecido e provido” (RE-72862/SP, Relator Min. Eloy da Rocha).
Em casos tais, “Não é possível opor a realidade econômica à formula jurídica para excluir uma obrigação fiscal precisamente definida
Em tema de imunidade tributária, existe unanimidade de entendimento no âmbito de ambos os tribunais de sobreposição no sentido de que, sendo a concessionária do serviço o contribuinte de direito do ICMS, ao município e à entidade de assistência social, como consumidores ou tomadores do serviço, contribuintes de fato, portanto, faltaria até mesmo legitimidade ativa ad causam para postular o direito de fruição da imunidade tributária na aquisição de energia elétrica ou no uso do serviço de comunicação, dado tratar-se precisamente de consumidores finais, que, por isso mesmo, dela não se beneficiam (AI-AgR 671.412 Relator Min. Eros Grau; RE 255.673, Relator Min. Marco Aurélio; AC-MC 457, Relator Min. Carlos Britto; AI 488132, Relator Min. Marco Aurélio; AgRg no REsp 1.065.172, Relator Min. Francisco Falcão; RMS 19711, Relator Min. Humberto Martins; REsp 1000557, Relator Min. Castro Meira; RMS nº 7.044, Relator Min. Francisco Falcão e REsp 1033523, Relator Min. Humberto Martins e RMS 26578, Relator Min. José Delgado).
Diversamente, se a entidade de assistência social realiza o pressuposto da incidência tributária, hipótese em que então poderia assumir, em tese, a condição de contribuinte de direito, goza de imunidade na produção de bens ou prestação de serviços, pois, aí sim, o imposto estaria incidindo realmente sobre seu patrimônio (RE 193.969, Relator Min. Carlos Velloso; Emb. Div. nos EDcl. no RE 186.175, Relatora Min. Ellen Gracie; AgRg no RE 225.571, Relator Min. Carlos Velloso; AgRg no RE 452.031, Relator Min. Sepúlveda Pertence e AgRg no RE 141.670, Relator Min. Nelson Jobim).
O terceiro – adquirente da mercadoria ou tomador do serviço – só paga “preço”, nunca tributo devido, pois a responsabilidade pelo pagamento do imposto, como obrigação própria, ainda que indevido, é sempre do sujeito passivo, nunca do consumidor final.
Afasta-se, na forma exposta, qualquer dificuldade na solução correta para o tema da legitimação para agir na ação que envolva controvérsia sobre a legitimidade da incidência do ICMS sobre a operação que envolva a aquisição da titularidade da mercadoria ou sobre a utilização dos serviços de comunicação.
Incidência jurídica e incidência econômica do imposto são, portanto, fenômenos inconfundíveis, acarretando conseqüências jurídicas distintas, mas “infelizmente – e a advertência é de Souto Maior Borges – essas noções nem sempre foram estudadas pela doutrina com a necessária clareza, mesclando-se não raro conceitos econômicos e jurídicos, com o que se incorre numa indistinção conceitual danosa para o progresso do direito tributário”.
Não ostentando, então, o consumidor, incluídas nessa expressão a entidades políticas e as demais entidades beneficiadas com a imunidade tributária, a condição de contribuinte – status jurídico esse que lhe negou o direito material – visto que reservada à vendedora da mercadoria e ao executor do serviço, e em se acolhendo eventual pretensão nesse sentido, disso adviria um quadro curioso: afastada a exigência do ICMS, o vendedor da mercadoria ou prestador do serviço, conquanto contribuinte do imposto devido pela operação ou pela execução do serviço e obrigado a seu recolhimento – e terceiro em relação à lide – passaria, não obstante, a usufruir o direito postulado por outrem, forrando-se, por arrastamento, do pagamento do tributo, embora a sentença não possa beneficiar ou prejudicar quem não seja parte no processo (CPC, art. 472).
Decididamente, ao consumidor final, alheio à relação jurídica substancial e por não exibir a condição de pessoa legitimada para a ação, não é dado postular, em nome próprio, direito alheio, visto que, em caso afirmativo, estará atuando ao arrepio da vedação posta pelo art. 6º, do CPC. Impõe-se, então, preservar a coerência do sistema normativo.
Por conseguinte, quando, então, na experiência concreta, figura no processo algum sujeito a quem falta a “legitimatio ad causam”, a conseqüência, em face do dever-ser inobservado, segundo o autorizado magistério doutrinário de Dinamarco, é a pronúncia de carência de ação.
* Procurador do Estado (MG)
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