Direito Tributário

ICMS e arrendamento mercantil

ICMS e arrendamento mercantil

 

 

Kiyoshi Harada*

 

 

O arrendamento mercantil, de bens móveis, seja ele contratado no mercado interno, ou no mercado internacional, hipótese de importação pelo regime de admissão temporária, está expressamente excluída do campo de incidência do ICMS, pela lei de regência nacional desse imposto. Com efeito, prescreve o art. 3º, VIII da Lei Complementar nº 87, de 13-9-1966:

 

“Art. 3º O imposto não incide sobre:

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VIII – operações de arrendamento mercantil, não compreendida a venda do bem arrendado ao arrendatário;

 

     Como se sabe, o contrato de leasing (arrendamento mercantil) é atípico, isto é, não se trata de contrato de locação, muito menos contrato de compra e venda.

 

     Trata-se, na realidade, de uma categoria intermediária entre a compra e venda e a locação, exercendo função parecida com a da venda e compra com reserva de domínio, e , com a alienação fiduciária, embora oferecendo ao utilizador do bem, maior leque de alternativas no caso de a parte não querer ficar com a propriedade do equipamento, no final do prazo contratual.

 

     Esgotado o prazo contratual, a arrendatária assume o compromisso de adquirir o bem, renovar a avença, ou restituir a coisa. Só por ocasião do exercício da opção de compra é que ocorre o fato gerador do ICMS.

 

     A questão despertou o interesse tanto dos Estados, quanto dos Municípios, que há algum tempo, mantiveram uma disputa pela tributação do leasing. De um lado, os Estados entendendo que, em se tratando de operação que impulsiona a circulação mediante a transferência de posse do bem do arrendante para o arrendatário, e não de simples concessão benéfica de posse, estaria presente a hipótese de incidência tributária a justificar a cobrança do ICMS. De outro lado, os Municípios pretendendo sua tributação pelo ISS até que veio a ser considerada inconstitucional essa cobrança pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, quando, então deixou de figurar na lista anexa à Lei Complementar nº 116/03. sancionada com veto do inciso concernente ao leasing.

 

     Considerando que o ICMS somente incide quando da ocorrência da circulação de mercadorias, faz-se claro que não se compreende a operação de leasing na sua hipótese de incidência tributária, uma vez que a circulação, para estes efeitos, é a compreendida pela transferência da titularidade, inexistente no leasing.

 

     O contrato de leasing não se caracteriza como de compra e venda, pois não ocorre a transferência do domínio do bem adquirido em referida avença, não ocorrendo o fato imponível do ICMS.

 

     Só haveríamos que se falar em incidência do ICMS, quando ao final do contrato, houvesse a opção pela aquisição da mercadoria, e aí sim, incidiria o ICMS, em razão de ter se operado a transferência da titularidade do bem.

 

     Na verdade, essa discussão perdeu sentido prático, ou deveria ter perdido, tendo em vista a superveniência da Lei Complementar nº 87/96, cujo artigo 3º acima transcrita, exclui, expressamente, o arrendamento mercantil do fato gerador do ICMS.

 

     É de se ver que a matéria já está pacificada na jurisprudência do STJ, competente para decidir em última instância sobre questões infraconstitucionais.

 

     Recentemente, a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, em decisão proferida no Recurso Especial nº 542.379, consolidou seu entendimento no sentido de que não se caracteriza fato gerador do ICMS a importação de mercadoria em contrato de arrendamento mercantil, conforme prevê o artigo 3º, inciso VIII, da LC nº 87/96. A decisão referida, desobrigou uma empresa de grande porte do pagamento do ICMS na importação de peças de reposição de avião adquiridas em contrato de leasing.

 

RECURSO ESPECIAL. TRIBUTÁRIO. IMPORTAÇÃO DE PEÇAS DE REPOSIÇÃO DE AVIÃO. ARRENDAMENTO MERCANTIL. NÃO INCIDÊNCIA DE ICMS. PRECEDENTES.

“A jurisprudência desta eg. Corte é iterativa, no sentido de que a importação de mercadorias mediante contrato de arrendamento mercantil (leasing) não caracteriza fato gerador do ICMS” (AGA n. 343.438/MG, Rel. Min. Peçanha Martins, DJ de 30.06.2003). Na vigência do arrendamento, a titularidade do bem arrendado é do arrendante, admitida a sua transferência futura ao arrendatário. Não há, até o término do contrato, transmissão de domínio, razão pela qual se entende que não existiu circulação do bem para fins de cobrança do ICMS. Nesse diapasão, estabelece o artigo 3º, inciso VIII, da Lei Complementar n. 87/96 que o imposto não incide sobre operações de arrendamento mercantil, não compreendida a venda do bem arrendado ao arrendatário. Recurso especial provido.” (RESP 542379 / SP ; RECURSO ESPECIAL 2003/0078332-7, DJ DATA:13/10/2003 PG:00356, Min. FRANCIULLI NETTO, Data da Decisão: 16/09/2003. Órgão Julgador: Segunda Turma.)

 

     No mesmo sentido, temos:

 

“TRIBUTÁRIO. ICMS. MERCADORIA IMPORTADA SOB O REGIME DE ARRENDAMENTO MERCANTIL. (LEASING). NÃO INCIDÊNCIA. SÚMULA 138/STJ. INOCORRÊNCIA DO FATO GERADOR DO ICMS. AUSÊNCIA DE TRANSFERÊNCIA DO DOMÍNIO. 1. O art. 3º, inciso VIII, da LC 87/96, determina a não incidência do ICMS nas operações de arrendamento mercantil, não havendo qualquer restrição às avenças quanto à mercadorias importadas. 2. “O ISS incide na operação de arrendamento mercantil de coisas móveis.”(Súmula n.º 138/STJ) e não o ICMS haja vista que, no caso, não ocorre a circulação de mercadorias, uma vez que não há transferência do domínio do bem. 3. O contrato de leasing, não se caracteriza como de compra e venda pois não ocorre a transferência do domínio do bem adquirido, inocorrendo, assim, o fato imponível do ICMS. 4. Não há circulação de mercadoria no caso de bem adquirido em operação de arrendamento mercantil. Destarte, o disposto no art. 3º, inciso VIII, da LC 87/96 não faz qualquer restrição para a não incidência do ICMS sobre se o bem arrendado provém ou não do exterior. Deveras, a única diferença é que o bem adquirido do exterior, em regra, subsume-se ao imposto de importação, cuja finalidade extrafiscal traça uma linha divisória com o ICMS. 5. Outrossim, um tributo não exclui o outro, por isso que, o bem estrangeiro que se incorpora ao patrimônio do adquirente nacional, sofre dupla exação a saber: imposto de importação e ICMS. Esta é a ratio da legislação invocada pela Fazenda. 6. Não obstante, lex specialis derrogat lex generalis. Tratando-se de “operação de leasing”, quer o bem provenha ou não do exterior, não incide o ICMS, nos preciosos termos da LC n.º 87/96. art. 3º, inciso VIII. 7. Recurso especial provido. RESP 439884 / SP ;” RECURSO ESPECIAL 2002/0065655-7, DJ DATA:02/12/2002 PG:00251 RSTJ VOL.:00172 PG:00212, Relator Min. LUIZ FUX, Data da Decisão: 07/11/2002, Órgão Julgador: Primeira Turma.

 

     Entretanto, o Estado de São Paulo, desobedecendo ao comando da lei de regência nacional do ICMS e fazendo tabula rasa à jurisprudência remansosa do STJ, vem exigindo o imposto no desembaraço aduaneiro de bens importados sob o regime de arrendamento mercantil. Como grande parte dos juízes vêm dando validade à legislação local, deixando de conceder as medidas provisionais (liminares e tutela antecipatórias), os contribuintes são obrigados a requerer o parcelamento de débito, legalmente inexistente, como condição para liberação dos bens móveis importados. E ao depois, esses contribuintes são obrigados a ingressar com a morosa ação de repetição de indébito correndo, ainda, o risco de carência, porquanto o parcelamento requerido importaria na confissão irretratável do débito. Isso seria o mesmo que conferir ao crédito tributário natureza ex voluntate, afastando-se do princípio constitucional da legalidade tributária.

 

     Ora, a doutrina e a jurisprudência são unânimes em apontar a natureza ex lege da obrigação tributária, isto é, esta, ao contrário da obrigação comum, que pode nascer tanto da lei, como do contrato, só pode resultar de lei . Daí o proclamado princípio da legalidade tributária, inserto no art. 150, I da CF, segundo o qual ‘é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça’ . E não há, nem pode existir lei exigindo o ICMS para os casos da espécie, porque a lei complementar, competente para definição de tributos e respectivos fatos geradores, nos termos do art. 146, III da CF, excluiu expressamente do campo de incidência do ICMS as operações com arrendamento mercantil . É o que dispõe o art. 3º, inciso VIII da Lei complementar nº 87/96 retrotranscrito.

 

     Assim, há absoluta impossibilidade jurídica de constituição do crédito tributário, por estar excluída , por lei complementar competente, a operação de arrendamento mercantil como fato gerador do ICMS.

 

Sustentar que a confissão do contribuinte, para pagamento parcelado, implica surgimento de obrigação tributária seria o mesmo que afirmar que a confissão do acusado implica a existência de crime, ainda que a conduta ‘incriminada’ não tenha previsão legal na legislação penal ( fato não tipificado ). Pagamento indevido , qualquer que seja a sua razão, deve ser restituído, da mesma forma que o acusado condenado e preso por confissão deve ser libertado assim que comprovado que não praticou a conduta incriminada.

 

     Quando se fala em natureza ex lege do tributo está a dizer que somente a lei é relevante para deflagrar o surgimento da obrigação tributária, de nada valendo a confissão “irretratável do contribuinte” que a faz, induzido em erro ou coagido pelo fisco ou, ainda, movido pela vontade de pagar o que não deve. Em todas essas hipóteses, o princípio constitucional da legalidade tributária e o princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição asseguram ao contribuinte a repetição de indébito.

 

     Para que não continue tomando o tempo precioso dos contribuintes, obrigados a pagar para ao depois repetir, movida pela urgência na liberação de bens importados sob o regime de arrendamento mercantil urge que os Estados membros revoguem, com urgência, essa exigência descabida, afrontosa aos princípios constitucionais expressos.

 

Sp, 21.06.04.

 

 

* Professor de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

kiyoshi@haradaadvogados.com.br

 

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Como citar e referenciar este artigo:
HARADA, Kiyoshi. ICMS e arrendamento mercantil. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-tributario/icms-e-arrendamento-mercantil/ Acesso em: 30 abr. 2024