A bomba nuclear coreana
Francisco César Pinheiro Rodrigues*
O problema está na ordem do dia.
Bush insiste em “sanções duras” contra o regime de Pyongyang mas diz que “não pretende atacar a Coréia”, embora não descarte “nenhuma das opções que tem sobre a mesa”. Uma delas a sanção militar, subentendida ou explícita em discursos de Condoleezza Rice ou do próprio Bush. Uma contradição. Ameaça e não ameaça. Na verdade piruetas verbais conforme sopram os ventos momentâneos de apoio, cautela ou clara rejeição a ações bélicas, por parte dos demais membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU. Como já salientado por vários analistas, a China não quer se tornar local de refúgio de milhões de coreanos desesperados, atravessando a fronteira em busca de abrigo e alimento. Não é só uma questão de solidariedade. Haveria bocas demais para sustentar em um país já super populoso e que luta tenazmente para sair da pobreza, misturando — tão sabiamente quanto possível —, socialismo com capitalismo, tirando proveito do lado útil de cada sistema.
Convém, de início, dizer que somente um louco apoiaria a proliferação nuclear. E desequilibrados podem brotar em toda parte. Quanto menos arsenal nuclear no planeta, melhor. Isso porque a bomba, quando usada, não só destrói combatentes inimigos como também a população civil. Além do mais, a radioatividade — carregada pelo vento, pelas águas, ou impregnando o solo — pode ser lesiva até mesmo ao país que lançou a bomba. Ou seus aliados. Um tiro atômico no próprio pé.
Kim Jong-il, o ditador norte-coreano, não é uma figura que desperte simpatia. É arrogantezinho e algo primário. Pelo menos é a impressão que transmite a nós ocidentais. Não tivesse recebido o cargo como herdeiro do “trono” deixado por seu pai — sempre digo que todos os regimes guardam fortes resquícios da realeza, filhos sucedendo os pais —, não passaria, provavelmente, de excêntrico vereador ou deputado coreano.
Ocorre que ele é o presidente — dado incontornável —, de um país que agora está dando os primeiros passos em direção ao poder nuclear. Conseguiu explodir uma bomba subterrânea, embora ainda esteja alguns anos distante de poder transportá-la com míssil. Mas não seria possível jogá-la de um avião?
“O que fazer com esse maluco que ousa afrontar a opinião mundial?” — pergunta-se Bush, esquecido que ele também afronta, embora de outra forma, a opinião mais esclarecida.
A solução a esta pergunta está ao alcance do próprio Bush: conversar diretamente com ele. Ouvi-lo. Mesmo sofreando um eventual sentimento de repulsa psicológica. O ditador coreano há tempos vem querendo sentar-se à mesa com Bush, mas este, numa postura arrogante de xerife de cinema — à
Tudo indica que Bush não quer conversar diretamente com o seu equivalente norte-coreano porque Kim poderia fazer alguns pedidos razoáveis que seriam difíceis de negar sem forte censura ética mundial contra a negativa de Bush. Sabe-se, por exemplo, que a Coréia do Norte vem sendo submetida a um cerco de restrições que ajudam a empobrecer o país.
Regimes comunistas, só por serem comunistas, geram pouca riqueza, está comprovado. Isolamentos propositais, impostos por países capitalistas são desnecessários, além de injustos para com a população local. O socialismo — não me canso de externar essa opinião, mera opinião — é um ideal nobre, em tese, mas não corresponde à verdadeira natureza do homem. O homem é naturalmente motivado pelo desejo de riqueza, de “status”, de bem estar, de consumo, mas para poder transformar em realidade esse desejo inato de “viver melhor” precisa de certo grau de liberdade. E essa liberdade o socialismo não dá. Os indivíduos mais empreendedores ficam tolhidos, aguardando autorização superior. Se quiserem “subir na vida” terão que ingressar no partido comunista e fingir que acreditam piamente na fraseologia marxista. Uma música um tanto genérica, executada com os arranjos ao sabor das dificuldades momentâneas de quem está no poder, pois o marxismo permite várias “leituras”. Mas ai de quem discordar do o regente, dizendo que ele está desafinando! O ideal socialista não morreu — nem deve —, porque sempre haverá quem se revolte sinceramente com as óbvias injustiças sociais. Só que a solução para o conflito das duas visões do mundo será, não a luta de país contra país, mas a fusão das duas tendências dentro de todos os países. Isso porque embora seja o homem preponderantemente egoísta, ele é também um tanto solidário, ou pelo menos “incomodado” pela visão da miséria. Parece que a solução sobre como melhor conduzir o planeta está na imagem sugerida pela metáfora de um barco (a sociedade) impulsionado pelo motor do capitalismo mas com o leme manejado pelo socialismo — sem, no entanto, o timoneiro esquecer que o motor precisa continuar funcionando.
Voltando à questão da bomba, não há razão alguma para Bush querer agravar a já existente má-sorte da população norte-coreana, mesmo restringindo a meras sanções econômicas o revide ao ensaio nuclear do ditador. Restrições que empobrecem o país inferiorizado só afetam as camadas mais pobres. Não são as crianças das classes altas que se tornam subnutridas. São os pobres, como aconteceu com o longo cerco ao Iraque, após sua invasão no começo dos anos 1990. Morreram milhares de crianças. Os filhos e netos de Saddam Hussein e membros do governo continuavam gordos e rosados mesmo com as restrições comerciais impostas pelos americanos.
Há ainda uma pergunta hipotética, teórica, que paira no ar, formulada pela Coréia do Norte e também pelo Irã: “Países poderosos, possuidores de variados armamentos nucleares exigem que nós, apenas nós, os “inferiores”, “sem juízo”, “irresponsáveis”, nos abstenhamos de avançar na tecnologia nuclear. Está bem, concordamos, mas com uma condição: que também eles, os “superiores”, destruam todas as suas armas nucleares e instalações que as fabriquem”.
Alguém argumentará que os EUA podem ter bombas nucleares à vontade porque não há o risco de serem usadas. Mas se não há esse risco, por que não destruí-las? Dirão os EUA que precisam manter tal arsenal porque — pelo menos em tese — a China, com sua imensa população, se armada convencionalmente, poderia um dia ter a má-idéia de querer dominar ou mesmo invadir a América. E quem diz que é impensável o uso de armas nucleares por parte dos EUA? Na Guerra da Coréia, o general Arthur MacArthur propôs, em vários momentos, utilizar certo número de bombas atômicas e de cobalto para acabar rapidamente com o conflito. As bombas de cobalto serviriam para criar uma faixa radioativa de isolamento na fronteira com a China que, por quase um século impediria o deslocamento de tropas chinesas na direção da Coréia, reforçando o poder comunista coreano.
Israel, também — e bem realisticamente — jamais abdicaria do direito de possuir e desenvolver suas armas atômicas porque, numa hipótese de derrota com armas convencionais, em conflito com vizinhos árabes, atacando unidos, teria esse grande trunfo nas mãos. Sem dúvida, para não ser “varrido do mapa”, utilizaria suas bombas nucleares. Alguém duvida? Mas a pergunta que, na área do Direito Internacional, permanece irrespondida é: Coréia do Norte e Irã não têm também o direito de ter medo? O Irã está entre dois países dominados pelos EUA, Afeganistão e Iraque. E a Coréia já foi incluída no “eixo do mal”. Além do mais é comunista. Não há razão para ter medo?
O problema, em termos de coerência interna do Direito Internacional, está em como justificar — sem apoio em franco preconceito ou mesmo racismo — o direito de algumas nações poderem, e outras não, desfrutar da vantagem intimidativa inerente à posse do arsenal nuclear. Em suma, o “direito” de incutir medo ou respeito como forma de proteção contra ataques de outros países. Somente uma reformulação profunda do Direito Internacional — contenho-me para não falar aqui em “governo mundial”, para não assustar o leitor — resolveria essa incoerência interna de um Direito que ainda está muito impregnado de força bruta, não obstante os conhecidos panos quentes terminológicos.
Caberia a Bush, representando uma nação infinitamente mais poderosa que a Coréia do Norte, fazer jus a essa superioridade, inclusive cultural, concordando em ouvir o governante coreano. Talvez, depois disso, talvez considerasse razoável diminuir o sofrimento do povo norte-coreano, conseqüência do atual cerco econômico. Empobrecer dolosamente um país, matando de subnutrição suas crianças mais pobres é tão censurável quanto matá-las a tiro. Procuraria entender o porquê do velho rancor daqueles orientais que sofreram com verdadeiras marés de napalm despejadas por aviões americanos. Filhos e netos de pessoas queimadas vivas geralmente não vêem com simpatia os filhos dos churrasqueiros de seus ancestrais.
* Advogado, desembargador aposentado e escritor. É membro do IASP Instituto dos Advogados de São Paulo.
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