Resumo: A trágica história de um rei idoso que resolve dividir seus bens com suas filhas. Há a questão da sucessão e de traição. Quando discutimos sobre herança, a proibição da doação universal, a exclusão de herdeiro necessário por indignidade ou deserdação. Bem, como as questões éticas relacionadas com afeto, confiança e compreensão sobre a natureza humana.
Palavras-chave: Rei Lear. Gloucester. Herança. Doação universal. Direito Sucessório. Isonomia dos filhos.
Résumé: L’histoire tragique d’un roi âgé qui décide de partager sa propriété avec ses filles. Il y a la question de la succession et de la trahison. Lorsque nous discutons de l’héritage, l’interdiction du don universel, l’exclusion de l’héritier nécessaire pour indignité ou déshéritage. Eh bien, tout comme les problèmes éthiques liés à l’affection, à la confiance et à la compréhension de la nature humaine.
Mots-clés: Roi Lear. Gloucester. Patrimoine. Don universel. Droit des successions. Isonomie des enfants.
Eis que é a praga destes tempos em que os cegos sejam guiados por loucos. Ou pior, que os loucos sejam guiados por cegos… Como podemos mensurar o afeto?
Afirmam alguns estudiosos que a peça fora inspirada em fatos reais. Em 1603, ocorrera um atentado processo judicial em Londres, no qual as duas filhas mais velhas de um nobre, desejavam obter o reconhecimento da senilidade do pai, e com isso, se tornariam administradoras da fortuna paterna, enquanto outra filha, a mais nova defendia o pai.
Ela se chamava Cordell quase igual ao nome Cordélia. Certamente, o bardo se inteirou do processo, bem como sua plateia. Pois, boa parte de sua plateia era formada por advogados e estudantes de direito. Questionava-se: Poderiam as filhas colher proveito com o reconhecimento da senilidade do pai?
A primeira frase de Rei Lear indica, o que vai acontecer (…) Dê-me aqui o mapa. Saibam que dividimos. Em três o nosso reino: e, é nossa inabalável intenção. Sacudir de nossa velhice toda preocupação e trabalho. (…).
Rei Lear, o monarca da Bretanha, é quem dá nome a peça teatral. E doa todos seus bens, seu reino a duas de suas três filhas. A terceira filha é alijada porque, antes da diversão do reino, Lear solicita para que as três filhas digam o quanto o amam.
As duas primeiras filhas, Goneril e Regane cobrem o pai de hiperbólicas adulações e o louvam de toda forma. Era tudo falsidade, porém, sob o verniz de belas palavras.
A terceira filha, Cordell, que ama sinceramente seu pai, não compartilha da hipocrisia de suas irmãs. Ao invés de adulá-lo, simplesmente nada afirma.
Afinal, tanto Gonerial com Regane exorbitaram em suas manifestações de apreço. O que nos faz recordar Sêneca que nos adverte: “Quando vires alguém com estilo rebuscado e cheio de adornos, podes ter certeza de que sua alma apenas se ocupa igualmente de bagatelas.”. (In: Lucio Aneu Sêneca. Cartas a Lucílio., 2ª edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, p. 638).
Cordell, talvez, não tenha palavras para expressar seu afeto pelo pai. Possivelmente, se recusou a participar da farsa criada pelo pai apenas para alimentar sua vaidade Esta é a tese de Ted Hughes (in: Shakespeare and The Goddess of Complete Being. New York: Barnes e Noble, 2009, p. 306).
Cordell insiste que nada tem a falar e, seu silêncio, não significa uma negativa. Enfim, Lear é alvejado em seu jactante ego e, deserda Corell.
Afinal, sem exageradas loas de suas outras filhas, Lear foi ferido em sua vaidade e, não percebeu a sinceridade de Cordell e, enfim, decidiu entregar-se à extrema bajulação das filhas mais velhas. A pobre Cordell é banida, nem mesmo receberá seu dote[1].
A filha favorita, Cordell, não preencheu o vazio, e assim, tornou-se alvo da cólera do Rei Lear, que transforma aquele que odeia numa tocha incendiária. Por não ter verbalizado o seu amor pelo pai. Além das convenções, o Rei Lear queria palavras, elogias e tudo que alimentasse seu narcisismo exacerbado e seu vazio existencial.
Ao fazer a doação[2], um fiel amigo de Lear, o conde Kent, tenta dissuadi-lo, porém, orgulhoso, ainda o adverte: – “Não deve intrometer-se entre o dragão e a coleira e, por fim, acaba exilando aquele nobre”. Kent conduz a história para recuperar a ordem – Shakespeare é Kent.
O rotundo silêncio de Cordell, ou mesmo, a recusa em endossar as bajulações ao pai, ecoa nos tribunais. Novamente, observa que a linguagem jurídica se vale de muitos adjetivos.
Mas, questiona-se, qual é o verdadeiro sentido e significado do silêncio[3]? E, até que ponto tudo isso não influencia o julgamento? Deveria a substância prevalecer sobre o adjetivo.
Nesse momento, estariam os advogados se aproximando mais de Goneril e Regane? Ou dos julgadores do Rei Lear? Pode-se encarar Cordell como menina tola e ingênua que não quis adular seu pai, e, de certa forma carente, pois nega-lhe o afeto. Pelo menos, expressá-lo.
Realmente, há um frase providencial de Carpeaux: “No fundo devemos conformar-nos com o fato que a arte de Shakespeare sobreviverá à todas as nossas interpretações”. (In: CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental, volume II. São Paulo: Leya, 2011, p; 737).
Noutro artigo intitulado “Shakespeare: enciclopédia do comportamento humano”, ainda de autoria de Carpeaux, disponível em: https://ottocarpeaux.medium.com/shakespeare-enciclop%C3%A9dia-do-comportamento-humano-otto-maria-carpeaux-180504587f2 o autor assinala que Shakespeare é o maior cosmos poético que se criou depois de Dante.
E, ainda, destaca in litteris:
“As tragédias[4], Hamlet, Macbeth, Rei Lear, Otelo, e as comédias, Como quiserdes, Noite de reis, Medida por medida, e as peças históricas, Ricardo II, Henrique IV, Ricardo III, Coriolano, Júlio César, Troilus e Crescidas, e as chamadas ‘romances’, Cymbeline, Conto de inverno, A tempestade, e peças “inclassificáveis” como Antônio e Cleópatra ou Timon, constituem, em conjunto, uma ‘enciclopédia do comportamento humano’; são um comentário permanente da vida, esclarecida pelo maior conhecedor intuitivo dos homens e dos seus destinos que jamais apareceu na terra: e nesse sentido são de atualidade eterna, garantida pelo fato de que o criador desse para-mundo era o maior poeta da literatura mais rica em poesia de todas as literaturas. A conquista, para nós, desse reino de poesia dramática vale todos os esforços.”.
Mais tarde, as duas filhas contempladas com as doações do Rei Lear revelam-se muito ingratas. Já, que ambas, padecem da falta de bons valores que não se limita à relação paterna. As duas filhas são inescrupulosas e, ainda, infiéis a seus maridos, que é outro conflito existente na peça teatral.
Goneril e Regane deixaram o pai em plena penúria e, perambulando sem destino, tal como o Bobo da Corte[5] que é, paradoxalmente, o personagem mais sensato do enredo.
Ora, bastava que um bom advogado que pleiteasse a anular a doação em face da ingratidão, ou por ser doação universal, e então, se evitaria o trágico final do vaidoso e irascível Rei Lear.
A propósito, a doação universal de bens que é prevista no Código Civil brasileiro de 1916 e, foi reproduzida no artigo 548 do Código Civil vigente, em que se veda o esvaziamento total do patrimônio do indivíduo, com vistas a proteger-lhe a vida digna, ato esse que poderia ser resultante tanto de mero impulso como também de pressão, coação ou mesmo de pressão psicológica.
A finalidade precípua da norma é proteger a pessoa, a própria familia ou o Estado. E, uma vez provado que o doador promoveu a liberalidade sem reserva de parte de seus bens, ou sem renda suficiente para sua subsistência, qualquer pessoa que demonstre interesse, poderá alegar nulidade do negócio. Trata-se de nulidade absoluta e, endossa a Terceira Turma do STJ, retratada no Informativo 433, in litteris:
“DOAÇAO UNIVERSAL. BENS. SEPARAÇAO. Discute-se no REsp se a proibição de doação universal de bens, óbice disposto no art. 1.175 do CC/1916, incidiria no acordo da separação consensual de casal (atual art. 548 do CC/2002). Segundo o recorrente, da abrangência total dos bens, uns foram doados e outros ficaram para a ex-mulher na partilha. Já o Tribunal a quo posicionou-se no sentido da inaplicabilidade do art. 1.175 do CC/1916, visto que, à época das doações, o recorrente possuía partes ideais de outros imóveis e, na partilha da separação consensual, os bens que ficaram com a ex-mulher foram doados ao casal pelos pais dela. Explica o Min. Relator que a proibição do citado artigo deve incidir nos acordos de separação judicial, pois se destina à proteção do autor da liberalidade, ao impedi-lo de, em um momento de impulso ou de depressão psicológica, desfazer-se de todos seus bens, o que o colocaria em estado de pobreza. Ademais, a dissipação completa do patrimônio atenta contra o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, II, da CF/1988). Considera, ainda, o Min. Relator que os acordos realizados nas separações judiciais são transações de alta complexidade, haja vista os interesses a serem ajustados (guarda dos filhos, visitas, alimentos etc.). Por esse motivo, é corriqueira a prática de acordos a transigir com o patrimônio a fim de compor ajustes para resolver questões que não seriam solucionadas sem a condescendência econômica de uma das partes. Observa que as doações, nos casos de separação, também se sujeitam à validade das doações ordinárias; assim, a nulidade da doação dar-se-á quando o doador não reservar parte de seus bens, ou não tiver renda suficiente para a sua sobrevivência e só não será nula quando o doador tiver outros rendimentos. Diante do exposto, a Turma deu provimento ao recurso para anular o acórdão recorrido, a fim de que o tribunal de origem analise a validade das doações, especialmente quanto à existência de recursos financeiros para a subsistência do doador. REsp 285.421-SP, Rel. Min. Vasco Della Giustina (Desembargador convocado do TJ-RS), julgado em 4/5/2010”.
O repúdio à ingratidão é expresso também em lei, com respaldo na doutrina e a jurisprudência que estão bastante divididas sendo que muitos juristas renomados passaram, nos últimos tempos, a defender a ideia de que as hipóteses que autorizam a revogação da doação por ingratidão do donatário[6] passaram a ser tratadas de forma exemplificativa, ou seja, o que está disposto no artigo 557 CC/2002 são meros exemplos, podendo ir além dos casos ali dispostos.
Sublinhe-se que a doutrina e a jurisprudência estão bastante divididas, sendo que muitos juristas renomados passaram, nos últimos tempos, a defender a ideia de que as hipóteses que autorizam a revogação da doação por ingratidão do donatário passaram a ser tratadas de forma exemplificativa, ou seja, o que está disposto no artigo 557 são meros exemplos, podendo ir além dos casos ali dispostos. Isso decorre do fato de que a interpretação literal do artigo do Código Civil de 1916, correspondente ao artigo 557 do atual Código Civil, que era o artigo 1.183, continha as mesmas hipóteses autorizadoras da revogação da doação por ingratidão do donatário, só que com a existência do advérbio “só” em sua redação.
O direito positivo expõe: “Art. 1.183. Só se podem revogar por ingratidão as doações: (I) Se o donatario attentou contra a vida do doador.; (II) Se commetteu contra elle offensa physica; (III) Se o injuriou gravemente, ou o calumniou; (IV). Se, podendo ministrar-lh’os, recusou ao doador dos alimentos, de que este necessitava o que está disposto no artigo 557 são meros exemplos, podendo ir além dos casos ali dispostos.
O Código Civil de 2002 suprimiu o advérbio “só” da redação do artigo 557, que ficou assim escrito: “Art. 557. Podem ser revogadas por ingratidão as doações: (I) se o donatário atentou contra a vida do doador ou cometeu crime de homicídio doloso contra ele; (II) se cometeu contra ele ofensa física; (III) se o injuriou gravemente ou o caluniou; (IV) se, podendo ministrá-los, recusou ao doador os alimentos de que este necessitava.”
Deste modo, considerando a retirada do advérbio “só” do texto legal, o ilustre Ministro Paulo de Tarso Vieira Sanseverino entende que, com a vigência do Código de Civil de 2002, passou a ser admissível que a doação seja revogada por outros casos que não estejam expressamente previstos na lei, devendo, entretanto, ser igualmente graves e que a ingratidão se mostre comprovada.
Em igual sentido, a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul vem, cautelosamente, adotando o posicionamento de que o rol do artigo 577 do Código Civil é exemplificativo, com a ressalva de que os atos cometidos pelo donatário, para autorizarem um juízo revogatório, devem ser, no entanto, tão danosos ao doador ou a seus familiares chegados quanto àqueles previstos na Legislação Civil, cuja gravidade será apreciada de acordo com cada caso concreto[7].
Assim, o Rei Lear paga alto preço por não discernir a realidade da aparência e, assume as duras consequências pelo seu mau julgamento.
A justiça e a equidade não devem ser desprezadas, o Rei Leia afasta-se e não segue o sábio conselho de Machiavelli que serve também para o juiz, “ser lento no crer e no agir, não se alarmar por si mesmo e, proceder de forma equilibrada, com prudência e humanidade, buscando evitar a excessiva confiança que o torne incauto e a demasiada desconfiança que o faça intolerável.”. (In: MAQUIAVEL, N. O Príncipe. 14ª edição, Rio de Janeiro: Editora Bertrand, 1996, p.96).
A obra de Maquiavel foi publicada em 1532 e, era muito conhecida e popular na época em que viveu William Shakespeare. O bardo em outra obra, denominada “O Mercador de Veneza” já recomendava a prudência e a neutralidade para as qualidades de um bom julgador. Aliás, a obra nos permite uma sincera relação com a teoria geral dos contratos e, a dita história tem final feliz para todos, exceto para Shylock[8].
O mérito da referida obra é colocar em cena temas ainda relevantes contemporaneamente, tais como a discriminação racial, a intolerância religiosa e violência. E, invoca a reflexão sobre a identidade e igualdade.
A loucura[9] toma conta de Rei Lear e, na análise Nunziata Stefania Valenza Paiva, na obra intitulada “Loucura e Direito em King Lear de William Shakespeare”, e passa a viver em pleno pesadelo, vagando a esmo, sendo guiado pelo Bobo da Corte.
Totalmente perdido e infeliz, Lear encontra seu amigo Gloucester que também está desenganado e cego. Pelo timbre de sua voz do amigo, é reconhecido pelo rei e pede para beijar suas mãos. Ao encontrar o velho amigo Gloucester, agora cego, o rei Lear é frio e até ríspido.
Ainda afirma: “O homem pode ver como anda esse mundo sem olhos. Olhe com as orelhas; veja como aquele juiz decompõe aquele ladrãozinho. Atente com as orelhas: troque os lugares e pronto! Qual é o juiz, qual é o ladrão? Já viu o cão do fazendeiro latir para um mendigo?”
E, Gloucester responde: “Já senhor.” E. o rei Lear retruca: “E, a criatura fugiu do vira-lata? Nisso se vê a grande imagem da autoridade: “Um cão é obedecido se ocupa um cargo.” (Ato III, Cena 4).
Eis, então, a fórmula para apreciar o poder. Um cão é obedecido se ocupa um cargo. Na leitura eivada de fina ironia, o Rei Lear desmeretiza o valor humana. Afinal, o que vale é o cargo que ocupa. Portanto, até um cão é respeitado se exerce um cargo.
Foram a vaidade e soberba, a perda de valores e a ira, todos esses desvios, que levaram o Rei Lear proceder um mau julgamento. Lear apesar de entender sobre a importância da pompa, evoca o ensinamento de humildade do Evangelho de Mateus. E, o Rei Lear depois de perder tudo, inclusive parte de seu juízo, vem a reencontrar a filha Cordell. Apesar de envergonhado, a sua filha lhe revela amor e compaixão para o velho rei, afora frágil e inválido[10].
O nome Cordell vem do latim cordis que significa coração. E, juntos eles são presos. Ainda na cela, com Cordell em seu colo, o Rei Lear externaliza sua felicidade e, “cantavam como ave na gaiola. E, explicaremos o mistério das coisas, como fôssemos espiões de Deus”. (Ato V, Cena 3).
Mas, o que afinal, significa ser um espião de Deus? Qualquer governo que não reconheça essa verdade e não julgue os responsáveis que torturam e matam, não tem como defender sua justiça. (Manguel, Alberto. No bosque do Espelho[11]. São Paulo: Cia. das Letras, p.198).
Recomenda-se que o julgador ao proferir uma decisão, deva afastar-se para dizer o que está certo ou errado. O Rei Lear, antes, tão poderoso monarca, agora está preso numa pequena cela, já velho e, ainda demente.
Contudo, nesse contexto metafórico, o Rei Lear recebe uma luz e, percebe que possui a adequada distância para analisar os fatos da vida e, ainda, solucionar os mistérios das coisas. Desprendeu-se e não dispõe de vaidades. Encontrou o splendor veritatis[12], e se transformou em espião de Deus[13].
Feliz é o julgador que consegue ser o espião de Deus e, terá proferido o melhor julgamento que um mortal pode produzir. A reflexão do Rei Lear para sua filha Cordell é fina, e, parafraseando Bertholt Brecht que aponta que se pode começar de novo com seu último suspiro. A peça chamada “O Julgamento de Lucullus, Brecht[14] perante o Supremo Tribunal do Reino das Sombras apresenta-se Lucullus Brasilis, civilizador general, que precisa prestar contas da sua existência na terra, para saber se é digno a adentrar no Reino dos Bem-Aventurados.
Sob a presidência do juiz dos Mortos, cinco jurados participam do julgamento: um professor, uma peixeira, um coveiro, uma ama de leite e não-nascido. Estão sentados em cadeiras altas, sem mãos para segurar bocas para comer e, os olhos há mundo apagados. São incorruptíveis.
Em seguida, Cordell é assassinada por ordem de Edmundo e o Rei Lear morre agarrado ao cadáver da filha, imanta-se a cena com um toque trágico inebriante.
Nas cenas finais, Rei Lear e Cordell, presos em função da batalha em França que vence a Bretanha encarnam o trágico. E, o desespero de ver sua amada filha morte, Lear hora dilacerantemente. E, debruçado sobre o corpo da filha predileta, em catarse, constata a impotência diante da morte. No clímax, chora todas suas culpas, perdas, seus remorsos, seus atos insanos, regidos apenas por seu orgulho e vaidade.
É absolutamente comum a peça ser comparada à Nona Sinfonia de Beethoven, pois há emocionante explosão de sons e, é violenta, acompanhada de um alegre interior da indestrutibilidade, ainda que trágica de toda essência humana.
A abertura do Rei Lear foi composta entre abril e maio de 1831, apesar de acidentes muito incomuns. Berlioz acabava de chegar em Roma, como vencedor de Prix de Rome de 1830, mas partiu abruptamente para Paris, e assassinar sua noiva, a pianista Camille Moke e sua mãe, pois acabara de romper o noivado.
Ao chegar a Nice, Berlioz reconsiderou e desistiu da tentativa, em vez disso, ficou lá por um mês e compôs a abertura para o Rei Lear. Onde fez um relato alegre de todo o episódio em suas Memórias e recorda de sua estada em Nice, considerando como sendo o período mais feliz de sua vida[15].
Aliás, a descoberta de Shakespeare datava de 1827, mas foi apenas um caminho de Roma para Florença, em abril de 1831, que leu a obra. A influência de Beethoven também é aparente, notadamente no papel proeminente das cordas mais baixas no início e, posteriormente.
O Rei Lear não culpa ninguém, a não ser a si próprio. Não é vítima de ninguém. Diferentemente de Othello onde há Yago, ou em Hamlet, onde há o Rei Claudius, ou mesmo, Macbeth, onde há Lady Macbeth incita seu marido. O mau julgamento é fruto das falhas pessoais e morais de Lear.
Ao advogado depois de sua sustentação oral[16], para encenar sua explanação. Caberá, assim como Shakespeare que fez maestria, escolher as palavras adequadas para encerrar o monólogo na tribuna.
No direito contemporâneo, ao contrário do que aconteceu com Rei Lear, os pais devem deixar forçosamente uma parte de seu patrimônio para os chamados herdeiros necessários[17]. Essa parte é a chamada legítima. Somente em casos extremos que os filhos podem ser deserdados. Afinal, retirar os filhos da ordem da sucessão[18] representa uma séria agressão à ordem natural das coisas.
O Código Civil nos artigos 1.814 a 1.818 trata dos excluídos da sucessão, ou seja, herdeiros que perdem seu direito de receber herança.
A lei enumera três hipóteses para que herdeiros ou legatários sejam excluídos: 1) participar de crime, ou tentativa de homicídio de seu esposo, companheiro, pais ou filhos; 2) acusar caluniosamente em processo judicial o autor da herança, ou praticar crime contra sua honra, ou de seu esposo; 3) dificultar ou impedir, por meio violento, que o autor da herança disponha livremente de seus bens por testamento, ou ato que expresse sua vontade.
Cabe ressaltar, que para que o herdeiro seja efetivamente excluído da sucessão, ele tem que ser declarado indigno por sentença judicial. É o que assegura o artigo 1.815 do mencionado Código.
Quanto à deserdação, ela é tratada nos artigos 1.691 a 1.695 da Lei Civil, e consiste na perda da herança, por ato de vontade do autor manifestada em testamento. Apenas os herdeiros necessários (filhos, pais e cônjuges – artigo 1.845 CC) podem sofrer a deserdação.
As hipóteses de deserdação são as mesmas tratadas na exclusão por indignidade, adicionadas das hipóteses trazidas pelos artigos 1.962 e 1.963 do Código Civil brasileiro.
A lei também prevê causas de deserdação dos pais pelos seus filhos. Conforme artigo 1.963 CC, os pais podem ser deserdados se: 1) ofenderem os filhos fisicamente; 2) praticarem injúria grave contra seus filhos; 3) mantiverem relações ilícitas com cônjuges ou companheiros dos filhos ou netos; 4) desampararem filhos ou netos com alienação mental ou doenças graves.
O Rei Lear, na peça, infringe a ordem natural. O mau julgamento acaba por desencadear o desvio das boas regras de sucessão, o que gerou efeitos nefastos.
Tanto o Rei Lear como Gloucester têm consciência de erro em seus julgamentos e dos equivocadas critérios que escolheram. A consciência agiganta a tragédia e, enfatiza o embate axiológico.
Por muito pouco, o mundo não ficou privado de Rei Lear, pois em 1642, os teatros ingleses foram fechados, em razão do movimento puritano, com a Commonwealth, e a deposição do rei.
Os teatros da época foram materialmente destruídos pela intolerância puritana. Somente em 1660 é que reconstruíram os teatros e reabertos ao público burguês, não havendo mais estabelecimentos populares tal como ocorreu na época de Shakespeare.
Tempos depois, a peça foi reescrita dando, porém, um final feliz[19] onde Cordell não morria. Apenas 1838, restauraram o texto original da peça teatral. Em trama paralela, há um Rei Lear, onde o Conde Gloucester é enganado por seu filho Edmundo. Este alega, falsamente, que o filho legítimo do Conde, Edgar, pretende matá-lo, para ficar com a fortuna do genitor. Em razão disso, Gloucester aponta Edmundo como seu único sucessor em detrimento de seu filho Edgar, que é deserdado.
O Conde acredita que seu filho Edgar o traiu. “(…) Já vimos o melhor de nosso tempo: maquinações, imposturas, traições e toda sorte de desordens reinosas nos acompanham até a sepultura. (…)”.
A respeito dos filhos fora do casamento, há a frase de Kent apud Karine Constalunga “o que importa o percado, quando o fruto é belo”, como sendo antecipado entendimento legal a respeito dos filhos.
Na vigente Constituição Federal brasileira, em seu artigo 227, § 7º veda-se qualquer forma de discriminação ou designação discriminatórias relativa à filiação sendo vedada a alusão a origem bastarda.
Edgar, uma vez banido da sucessão de seu pai Conde, passa a viver como mendigo e se alimenta de restos. Abandona seu nome e se desprende-se no passado e, passa a ser conhecido apenas como “Tom”. Sua figura talvez pudesse ser enquadrada na expressão “loucos de todo gênero”. O Código Civil brasileiro de 196 sob a infeliz do Código Criminal do Império de 1830, a expressão utilizada para designar a incapacidade civil era “loucos de todo gênero”.
Esta é a expressão tradicional em direito brasileiro, porém, não é a melhor. O projeto primitivo preferia a expressão “alienados de qualquer espécie”, porque há incapacidade civil que se não poderiam, coma certo, capitular como de loucura. Só será alienado, como diz Afrânio Peixoto, aquele cujo sofrimento o torne incompatível com o meio social.
Quando o Código Civil alude à loucura, não quer se limitar àqueles casos de distúrbio mental que faz do enfermo um furioso, mas alude a toda espécie de desequilíbrio das funções cerebrais.
Nosso país, tendo adotado o critério objetivo de culpa, tanto o Código Civil de 1916 como também o Código Civil de 2002, adotou, igualmente, consequentemente, um conceito quase onipresente da normalidade e, com isto não faz nenhuma descrição analítica do que seja um homem normal, ou o que seja normalidade psíquica.
Entretanto, a noção de culpa, responsabilidade e vontade está intimamente relacionada à noção de normalidade e loucura. E, Del Vecchio, aduz que “o direito se desenvolve inteiramente na ordem dos fatos psíquicos”.
Edmundo depois de descartar o meio-irmão, revela a natureza amarga e despreza o pai e cinde Gloucester. Afinal, recalcado por ter origem bastarda, Edmundo não ama ninguém.
E, faz pior, pois a entrega o provecto pai, ao Duque da Cornualha e afirma que se pai conspira contra o reino e, por isso, tem seus olhos arrancados. Restando cego e frágil.
Edgar noutra ocasião encontra o velho pai cego e, disfarçando a voz se oferece como guia. Então, Gloucester revela que tropeçou quando enxergava e, essa reflexão também serve do Rei Lear.
Todavia, Edgar omitindo sua identidade, acaba por guiar seu pai até o desfiladeiro de Dover. Gloucester reflete: É a praga destes tempos que os cegos sejam guiados pelos loucos. (Ato IV, Cena 1).
O que confirma os eventos onde as partes cegas sem o conhecimento jurídico, são conduzidos por advogados insensatos.
Interessante é essa fala, da peça, in verbis:
“Essa é a maravilhosa tolice do mundo: quando as coisas não nos correm bem — muitas vezes por culpa de nossos próprios excessos — pomos a culpa de nossos desastres no sol, na lua e nas estrelas, como se fôssemos celerados por necessidade, tolos por compulsão celeste, velhacos, ladrões e traidores pelo predomínio das esferas; bêbedos, mentirosos e adúlteros, pela obediência forçosa a influências planetárias, sendo toda nossa ruindade atribuída à influência divina”. Rei Lear – William Shakespeare.
O contato com a verdade é o tema que atravessa toda a tragédia do Rei Lear. O protagonista em sua peregrinação custa a aceitar a verdade e a entender a verdadeira face do mundo que o cerca, pois jamais a conheceu. Graças a sua função social de rei, desconhece como vivem miseráveis como Tom Bedlam[20] e a face do universo atroz que cerca os humanos distantes do mundo das bajulações.
Somente assim, ele pode observar a verdade sobre si mesmo, e finalmente, assemelhar e assimilar sua situação mortal e natural como a de qualquer homem ou criatura. Esse seu caminhar é um aprendizado liminar para o ser humano presente em Lear, uma jornada para aprender a viver e para aprender a morrer.
A parrhesia define uma relação entre duas pessoas, na qual uma delas expressa de forma franca, crítica e honesta o que pensa e acredita com relação ao se interlocutor. Trata-se de ser sincero como um compromisso moral. Aquele que fala a verdade acredita no que diz e tem isto como verdadeiro, o parrhesiastes.
Aquele que exerce a parrhesia, é uma pessoa com qualidades morais destacadas. Existe um risco característico em se falar a verdade, pois é desempenhada em uma situação em que o enunciador está socialmente abaixo de seu receptor e pode ser punido. A parrhesia está ligada à coragem e a um jogo de vida e morte, diferentemente da opinião da maioria se fala a verdade (Foucault, 1983, p. 1-4).
Os personagens que falam a verdade em Rei Lear, com exceção do Bobo, apostam nesse jogo, e como sabemos, sofrem graves consequências como a deserdação e o exílio. Sabemos que suas intervenções surgem em momentos em que é necessário criticar os atos desmedidos e pueris do Rei.
Foucault define, então, a parrhesia como o ato de falar francamente, colocando o enunciador em uma posição de perigo, devido à relação existente entre os interlocutores; mas aquele que fala voluntariamente a verdade reconhece que esse discurso beneficiará seu interlocutor e/ou a si mesmo.
A veracidade e franqueza aparecem no lugar da persuasão; verdade à falsidade; risco de morte à segurança; crítica à lisonja e dever moral ao interesse próprio (Foucault, 1983). Outras características da parrhesia serão apresentadas no decorrer da leitura da cena da divisão.
Foucault coloca dois adversários para a parrhesia, o primeiro é a lisonja como adversário moral, e o segundo é um rival técnico, a retórica (Foucault, 2004). Até esse momento na peça, deixando de lado o breve diálogo inicial entre Kent, Gloucester e Edmundo, todos os acontecimentos têm um aspecto ritualístico marcado pela estrutura definida, onde a retórica predomina e a lisonja é essencial.
Goneril e Regan fingem que são o que professam, aparentam amar o pai com palavras que vão de encontro a seus atos na sequência da peça. Existe uma forma, um método em seus discursos e na alternância retórica da solicitação, declaração e recompensa. Aduladoras e dissimuladas, elas exercem o papel contrário do parrhesiastes, pois suas palavras são constituídas depura bajulação, dentro de uma retórica cerimonial.
“A verdade é um cachorro que tem de ficar preso no canil. E deve ser posto fora de casa a chicotadas quando madame Cadela quer ficar calmamente fedendo junto ao fogo”.
Eis a sublime estupidez do mundo; quando nossa fortuna está abalada culpamos o sol, a lua e as estrelas pelos nossos desastres; como se fossemos canalhas por necessidade, idiotas por influência celeste; escroques, ladrões e traidores por comando do zodíaco; bêbados mentirosos e adúlteros por forçada obediência a determinações dos planetas.
Recapitulando, Lear é um rei provecto da Bretanha que decide se afastar do trono e dividir o seu reino entre suas filhas. Para ter certeza da lealdade delas, exigindo uma resposta à uma questão: o quanto elas o amam. Suas filhas mais velhas Goneril e Regana dão ao pai as respostas lisonjeias enquanto Cordell, a filha mais nova fica em silêncio.
No entanto, Cordell é a filha favorita de Lear, apesar de manter seu silêncio, procurou expressar pouco sobre o quanto ama o pai. E, Lear não aceita e fica furioso, tanto que a renega. O rei da França que havia corteja Cordell, afirma que deseja casar-se com ela mesmo assim, e, Cordell segue para França, mesmo sem a benção do pai.
Quando se aposentou, finalmente, Lear descobre que sua decisão não fora a mais acertada[21]. E, suas filhas mais velhas recebem de herança uma parte do reino e, praticamente, em seguida, o expulsam, traindo-o.
Então, Lear acaba fugindo do castelo de suas filhas juntamente com o Bobo e Kent, um nobre que lhe é fiel. E, lentamente Lear enlouquece.
Em paralelo, um nobre chamado Gloucester também encara problemas familiares. Seu filho ilegítimo Edmundo[22] engana-o ao fazer acreditar ser o seu filho legítimo Edgar que está tentando matá-lo.
Para fugir da perseguição de seu pai, e ainda se livrar da morte, Edgar se disfarça de mendigo. Quando Gloucester percebe que as filhas do Rei Lear o traíram, decido ajudar o amigo apesar de inúmeras ciladas em que ele pode se envolver. Regana e seu marido Cornwall descobrem-no ajudando a Lear e, ambos, o condenam por alta traição.
O preço que Gloucester pagará será a escuridão da cegueira. E, então cego é abandonado[23] no campo. E, acaba sendo ajudado por eu filho disfarçado de mendigo que o leva para Dover, onde Lear está.
Em Dover, eles acabam encontrando o exército francês liderado por Cordell, num esforço para salvar a dignidade de seu pai, Edmundo aparentemente se envolve com as filhas mais velhas do rei. Goneril e Regana, cujo marido, o Duque de Albânia, é cada vez mais simpático à causa do Rei Lear. Ambos conspiram para matar o Duque.
Gloucester está cego e, a sua infelicidade é tamanha que o suicídio parece ser o seu destino, mas Edgar o salva. Enquanto isso, as tropas inglesas, lideradas por Edmundo, derrotam o exército francês liderado
por Cordell. Lear e Cordell são capturados. Na batalha, Edgar duela e mata Edmundo. As duas irmãs mais velhas lutas entre elas e se aniquilam. E, Cordell é condenada à morte. Albânia, Edgar e o idoso Kent são deixados para cuidar do reino sob uma nuvem de penumbras e arrependimentos.
Rei Lear é uma peça brutal onde a crueldade humana e os acontecimentos terríveis nos levam a questionar se existe alguma possibilidade de justiça no mundo. Gloucester reflete: “Gloucester: Ainda tem algum juízo ou não mendigaria.
Na tempestade da noite passada vi um tipo assim que me fez refletir que o homem não é mais do que um verme. Lembrei-me de meu filho, embora meu sentimento lhe fosse pouco amigo. Desde então aprendi muito. Somos para os deuses o que as moscas são para os meninos: matam-nos só por brincadeira.” (Ato IV cena 1 p. 96)
Gloucester percebe a tolice em assumir que o mundo funciona através de noções de justiça e comportamentos morais. Edgar (seu filho legítimo), por outro lado, diz:
“Trataremos um ao outro com piedade: meu sangue vale menos do que o teu, Edmundo. Se vale mais, então foi maior a tua culpa. Meu nome é Edgar; sou filho do teu pai. Os deuses são justos, e nos castigam com nossos vícios mais doces. Ter-te gerado em lugar escuro e vicioso custou-lhe os olhos.” (Ato V, cena 3, p. 133)
Nas palavras de Edgar, os deuses são justos. Ele acredita que os indivíduos obtêm aquilo que merecem. Mas é bom entendermos que no final dessa história convivemos com as incertezas.
Embora os ímpios morram, os bons também morrem. A cena final do Rei Lear segurando o corpo de Cordell em seus braços nos dá a exata dimensão de que no mundo existe bondade, mas também loucura e morte. E é difícil dizer quem triunfa no final.
O elemento central da peça de Shakespeare é o Eu. Os distúrbios da natureza humana sempre foram considerados como espelhos de eventos terríveis no mundo, e, portanto, quando a ordem natural é perturbada por meio de guerras, revoluções ou outros eventos supostamente antinaturais, a natureza respondia como acordo. Através de tempestades e cataclismas.
Esses distúrbios naturais podem ser considerados como o trabalho dos deuses ao qual Lear e outros personagens frequentemente apelam na peça, pois ele aparentemente aceita o seu poder, mas não pode fazer nada para combater a tempestade, o que só aumenta a sensação de loucura e de abismo.
O direito divino dos reais que endossa que o monarca de certa forma é sagrado, sempre habita o imaginário dos súditos. E, a tempestade, não era seletiva em sua ira, é uma espécie de dia do julgamento final, e até responder as íntimas reflexões de Lear, que muitos confundem com a loucura.
Trata-se de um reflexo natural que pode simbolizar a justiça divina, como se a própria natureza estivesse enraivecida com os eventos dos humanos. O cataclisma simboliza igualmente a desordem política que tomou conta da Bretanha de Lear.
Em verdade a insensatez e a sabedoria andam de mãos dadas, e pode ser vista no Bobo da Corte e na filha Cordell. O Bobo desempenha relevante missão e, sua integridade é examinada no discurso, in litteris:
“Quando só seve por ganância
E apenas finge lealdade
Se vê chuva faz a trouxa
Te deixa na tempestade.
Mas eu não partirei. O Bobo fica;
O homem sensato é que abdica”.
O patife que foge vira bobo; És um servo. Ele poderia ter saído. No entanto, escolhe ficar Lear, mesmo quando as coisas estavam difíceis para o rei.
O Bobo faz aquilo que ele acredita estar certo. Ele reconhece que é uma das poucas pessoas que o rei ouve.
Quando, finalmente, Lear acorda de sua longa jornada existencial e, abraça o amor de sua filha Cordell.
A devoção da filha mais nova ao pai, embora seja ingênua, é mostrada com poucas palavras, mas com atos efetivos e eloquentes, e assim revela o seu afeto[24] de forma mais genuína.
Enfim, com sua filha preferida sempre fora fiel a si mesma, Lear aceita sua condição humana, finita e mortal. Eis que um novo homem e assume total responsabilidade de suas decisões.
A peça traduz um misto de conflito familiar e crise política, de amor e ódio e, evoca o niilismo da modernidade, ao mesmo tempo em que conta a história do século XVI e o início do século XVII.
Nenhuma das peças de Shakespeare foi tão audaz em unir traços grotescos, fantásticos E violentos, traduzindo os contrastes do humano, em cenas absurdas e impactantes que envolvem a mente da plateia e do leitor numa névoa poderosa que mostra a lucidez da narrativa.
Rei Lear é contemporâneo pois deixa evidente o caráter niilista ou ainda as insinuações psicanalíticas e, traz uma contundência feroz do campo da imaginação.
Destacam-se algumas realizações artísticas baseadas na peça, como a abertura sinfônica O Rei Lear, em 1831, composta por Hector Berlioz, a pintura de William Dyce, intitulada King Lear and the fool in the storm.
Rei Lear é um herói trágico moderno, que se sente superior e não crê na ética[25] social e, em si próprio, assim constrói sua decadência, e se tornando inferior aos demais heróis, começa a entender a realidade.
A mais relevante caracterização do herói moderno é o fato de ser possuidor de fraqueza moral, Rei Lear é extremamente vaidoso e gosta de ser adulado, o que o faz falhar em seu julgamento[26] e partilha.
E, Lear descobre que foi vítima de uma armação de suas filhas Goneril e Regane. Edmundo, filho bastado de Gloucester, à beira da morte, confessa a trama e avisa sobre a sentença contra Lear e Cordell, mas já é tarde:
Cordell é enforcada, apesar de Lear conseguiu matar o carrasco. Lear entra com Cordell nos braços. Tenta reanimar a filha e delira, pensando que Cordell ainda respira. O rei finalmente morre.
Assim, Lear é um herói trágico moderno que cai, falha por conta das próprias decisões. O herói aprende com seu sofrimento, ele tem uma visão da realidade em seus últimos momentos e enfrenta a morte com mais dignidade, equilíbrio e paz interior.
O suposto amor filial é desmascarado quando o desejo pelo poder, a ambição e o dinheiro estão em jogo e este herói percebe que errou ao preferir ser bajulado a ater um amor sincero.
O suposto amor filial é desmascarado quando o desejo pelo poder, a ambição e o dinheiro estão em jogo e este herói percebe que errou ao preferir ser bajulado a ater um amor sincero.
Em “História da Inglaterra, Escócia e Irlanda”[27] de autoria de Raphael Holinshed, uma das fontes que Shakespeare usou para esta peça, não registra a execução de Cordell.
Em outras versões da história de Lear que estariam ao alcance de Shakespeare, terminam com um final feliz. Lear restaurado e Cordell como sua sucessora. Por que o autor optou por concluir com a morte comovente da personagem mais inocente? Depois de um sofrimento que parece estar no fim, resulta de uma crueldade extraordinária.
A morte de Cordell, o tormento de Gloucester, a angústia do homem velho que rasga suas roupas. Era como o bardo o incluísse com a intenção de ser em seu terreno profissional, tão cruel quanto o Duque de Cornualha em sua peça teatral.
A despeito da obra tratar de questões entre pai e filhas, pai e filhos, as questões políticas suscitadas nos impossibilitam de lê-la como sendo mera tragédia doméstica. Os problemas do Estado presentes na peça nos remetem as inúmeras questões políticas contemporâneas, articulando-se sobre os conceitos como soberania estatal, estabilidade monárquica e emergência de uma sociedade moderna, que se desgarrava da estrutura feudal.
Cerca de um século depois da morte do autor, as duas versões da peça tiveram existências independentes, havendo, portanto, reedições da obra em 1608 e 1623.
A partir de 1970, a noção de que as diferentes versões de uma peça teatral seriam corrupções do primeiro texto autenticamente original, este sim, nascido da pena de Shakespeare.
A crítica textual passa a encarar dois textos com versões independentes e legítimas que, se não se originaram de dois books diferentes, devem ter se originado de duas versões elaborados pelo bardo, a partir de correções, alterações e adições, nascidas da experiência do texto em performance, sendo ambas, legítimas e de autoria inconteste.
Rei Lear existe em dois textos diferentes, o Quarto de 1608 e o Folio de 1623, que diferem notavelmente entre si em vários aspectos. A impressão do Quarto é de má-qualidade, e o texto deste foi durante muito tempo considerado inferior ao Folio. É provável, porém, que o Quarto tenha sido editado em base às notas do próprio Shakespeare e que represente um estágio autêntico inicial da obra.
O Folio é uma edição póstuma, organizada pelos atores da companhia teatral de Shakespeare, e possui um texto mais aprimorado que o do Quarto. Entre os dois textos há várias diferenças no número de falas, vocabulário e o peso relativo dos episódios. Também o final é distinto: no Quarto, a última fala é do duque de Albany, enquanto no Folio é de Edgar, indicando assim uma diferença entre quem reinará a Bretanha após Lear.
Durante muito tempo, os editores misturaram ambas as versões para tentar criar o “verdadeiro” texto de Rei Lear, mas atualmente há uma tendência a considerar-se o Quarto e o Folio como estágios diferentes na maturação da obra e, assim, igualmente “shakespearianos”.
Historicamente, porém, alguns autores, descontentes com o final da obra, revisaram-na radicalmente: em 1681, o escritor Nahum Tate criou uma versão simplificada, sem o personagem do Bobo, na qual nem Cordélia nem Lear morrem no final e em que Edgar e Cordélia se casam.
Essa e outras versões alteradas foram encenadas durante muito tempo, até que em 1838 uma produção do ator shakespeariano William Macready recuperou a maior parte do texto original. Desde então o texto de Shakespeare voltou a ser utilizado nos teatros.
Enfim, o tema principal de Rei Lear é, em verdade, a ingratidão, em razão da qual as personagens puras, como Cordell, filha de Lear, têm um final trágico. E, as maldades das personagens impuras, como as filhas de Lear e Edmund que desencadeia tanta tormenta composta de loucura, ódio, morte e dor. Eis os ingredientes, que servem de cenário para refletirmos sobre a capacidade de julgar e, suas consequências.
A peça foi frequentemente revisada após a Restauração Inglesa[28] para um público que não gostava de seu final dramático, do seu tom sombrio e deprimente, mas, desde o século XIX, a peça original de Shakespeare tem sido considerada uma de suas conquistas supremas.
A junção do poder e alienação do mundo que rodeia Lear é exemplo muito contemporâneo de dissociação da realidade, propriamente dita. Encastelados em seus palácios, os governantes se afastam da realidade social e de tantos outros universos que os cercam.
Outra lição[29] que podemos extrair que a verdade absoluta é sempre absurda, A vida é uma emboscada que o próprio homem arma e na qual ele cai. Sartre, Freud, Ionesco, Camus e Beckett exploraram muito, esse aspecto em suas respectivas obras. Freud, a seu turno, analisando a compulsão à repetição e da pulsão da morte, ensina-nos que o homem se torna absurdo, em muitos de seus atos, por não conseguir escapar de repetir o mesmo.
No momento em que Edgard conduz o pai, que quer morrer se lançando num precipício, cria uma cena patética que retrata o absurdo da existência humana. Gloucester que supõe ter pulado, permanece no mesmo lugar.
E, vive experiência circular e ilusória. Durante toda a narrativa, a linguagem é enigmática e paradoxal, representada pelo Bobo da Corte, que, ao mesmo tempo em que diverte o rei, é de uma crueldade oblíqua, ao dizer verdades que este não percebe ou nega, seja pela soberba ou por sua cegueira. A peça debate a cegueira concreta e a abstrata.
A grande lição da obra é nos informar onde a imprudência humana pode atingir estágios absolutos e talvez valha a pena interrogar-se sobre esta.
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[1] Regime dotal é aquele em que conjunto de bens designado dote é transferido pela mulher, ou alguém por ela, ao marido, para que este, dos frutos e rendimentos desse patrimônio, retire o que for necessário para fazer frente aos encargos da vida conjugal, sob a condição de devolvê-lo com o término da sociedade conjugal. O dote pode ser constituído por um ou mais bens determinados, descritos e estimados na convenção antenupcial, para que se fixe o seu valor ou se determine o preço que o marido deverá pagar por ocasião da dissolução da sociedade conjugal, acrescendo-se, ainda, a expressa declaração de que tais bens ficaram sujeitos ao regime dotal.
[2] Para Miguel Borghezan, a divisão da herança deve apresentar consonância entre a compreensão pessoal do autor e o respeito à lei. O Direito Sucessório não considera unicamente a vontade expressa do autor da herança ou da doação. No Brasil, ao menos metade dos seus bens devem ser destinados aos herdeiros necessários. “Nos países de cultura anglo-saxônica cultivou-se o hábito de não haver resguardo de herança obrigatória, dita legítima, para os filhos. Lá os titulares podem dispor livremente de todos os bens por testamento, o que não é possível no Brasil em razão da regra do art. 1.846 do Código Civil. Entre nós isto não é possível por restrições legais e culturais”, observa o advogado. “Resguardada a legítima dos herdeiros necessários, qualquer dos pais pode atribuir a parte disponível a quem quiser, inclusive a filhos, decidindo de modo expresso, neste caso, se a doação constituirá ou não regular antecipação de herança (art. 2.006 CC)”, atenta Miguel. “A doação em vida e o testamento devem ser incentivados para evitar litígios sucessórios nos inventários. Nesse âmbito, o decidido pelos autores da herança, respeitada a legítima, já está resolvido na sucessão causa mortis.” IBDFAM. Assessoria de Comunicação do IBDFAM. Antecipação de herança com doação e posterior colação são temas de artigo da Revista Científica do IBDFAM. Disponível em: https://ibdfam.org.br/noticias/7134/Antecipa%C3%A7%C3%A3o+de+heran%C3%A7a+com+doa%C3%A7%C3%A3o+e+posterior+cola%C3%A7%C3%A3o+s%C3%A3o+temas+de+artigo+da+Revista+Cient%C3%ADfica+do+IBDFAM Acesso em 30.11.2021.
[3] É relevante destacar que, no direito brasileiro, o silêncio pode ser efetivamente uma declaração, não se reduzindo a uma equiparação legal. Basta ver que o art. 111 do CC/2002 não adotou, por exemplo, a terminologia empregada pelo art. 218 do Código Civil Português, segundo o qual o silêncio vale como declaração. Este dispositivo conduz a uma ideia de equiparação: o silêncio não constitui uma declaração, mas pode ser equiparado a ela (valer como ela) por força de lei. Esta, ressalta-se, é a posição doutrinária adotada por muitos juristas portugueses, na esteira do Código Português, e, no Brasil, antes da entrada em vigor do Código Civil vigente, por Orlando Gomes, autor para quem somente pode constituir declaração uma manifestação expressa de vontade. Entretanto, é importante reconhecer que a existência do art. 111 do CC/2002 não exclui a existência de hipóteses em que há apenas uma equiparação legal para fins de determinação dos efeitos jurídicos aplicáveis ao silêncio. Desse modo, constitui problema pertinente o enquadramento dogmático de cada hipótese em uma ou outra das duas categorias. Esse também não constitui, contudo, apesar de sua importância, o objeto do presente estudo. O tema que aqui será tratado refere-se às hipóteses em que o silêncio constitui uma genuína declaração de vontade. Via de regra, o silêncio é um nada jurídico. No direito civil a manifestação de vontade expressa é crucial na segurança jurídica e no direito penal o silêncio é tido como autodefesa do acusado, devendo ser previamente informado de seu direito, não podendo seu silêncio ser interpretado em seu prejuízo. No Direito Público, não só o silêncio como a vontade do particular é, a rigor, irrelevante para a formação da relação jurídica. Veja-se a relação obrigacional tributária, por exemplo, em que a obrigação é heterônoma, alheia a vontade do particular.
[4] Apesar de serem denominadas como Tragédias, as peças de Shakespeare são Dramas. Pois o que caracteriza a tragédia é a inexistência da malicia humana. Os franceses Pierre Corneille (1606-1684, jansenista que acreditava na ira divina) e Jean Racine (1639-1699) tentaram reviver a tragédia grega, assim como o alemão Friedrich Hebbel (1813-1863).
[5] O bobo tem o papel de dizer a verdade dura sem medo de consequências (como se fosse um louco). Faz o mesmo papel do coro trágico grego representando o povo ou a audiência.
[6] Ingratidão do donatário, quando o donatário atenta fisicamente ou moralmente contra a integridade do doador, proceder o donatário contra o doador por injuria ou calúnia ou difamação; quando recusa o donatário alimentos ao doador.
[7] O relator do caso no STJ, ministro Marco Buzzi, reconheceu que a jurisprudência do STJ está consolidada no sentido de que a revogação de doação por ingratidão depende da comprovação de que os atos praticados sejam marcadamente graves, como os enumerados no artigo 557 do Código Civil. O dispositivo lista como atos que justificam a revogação da doação atentados contra a vida do doador ou homicídio doloso contra ele, ofensa física e injúria grave e calúnia. Porém, no caso em questão, o recurso foi negado pela impossibilidade, imposta pela Súmula 7 do STJ, de reanalisar provas em recurso especial.
[8] Shylock é um personagem fictício da peça The Merchant of Venice (O Mercador de Veneza), do dramaturgo inglês William Shakespeare. Na peça, Shylock é um agiota judeu que empresta dinheiro a seu rival cristão, Antônio, colocando como fiança uma libra da carne de Antônio.
[9] A loucura pode ser compreendida como a perda do eixo de sustentação do sujeito que separa as dimensões interior e exterior. Desse modo, é enunciada como alienação mental, a partir de sua construção discursiva. Segundo Birman (1999, p. 155), este conceito é oriundo dos séculos XVI e XVII, embora ainda apresente a preferência ao considerarmos uma constituição da personagem shakespeariana, que analogamente diz respeito à representação de uma interioridade complexa ao longo de seu desenvolvimento diegético.
A velhice torna-se um signo atribuído a Lear, de modo que suas ações passam a ser vistas a partir da perspectiva de decrepitude. Deste modo, como filhas reafirmam seu poder e se autorizam a revogar as ordens de Lear, bem como ignorá-lo completamente. Goneril inclusiva afirma: “A culpa é dele; por vontade própria abandonou sua tranquilidade; tem que pagar por sua loucura. (SHAKESPEARE, 2015).
Lear, destituído de seu poder político e patriarcal, e esvaziado de sentido enquanto homem, percebe-se impotente diante da inevitável inversão de papéis: o que é um rei sem coroa, sem teto e sem sanidade? Somente lhe resta consolo nas brincadeiras e nas cantigas do seu Bobo, que idade como uma projeção de sua consciência, não sendo levada a sério nem mesmo pelo próprio rei, permitindo-lhe tais liberdades, entretendo a todos com sua visão crítica da verdade. Mais do que a destituição do poder, Lear tem um problema maior: a administração de si próprio, ao passo que, ao recusar o cargo que lhe cabe, desiste também de quem é. A partir desse momento lhe é atribuído o signo da velhice, sendo que o que justifica suas ações inusitadas como “Rei”, passa a ser visto pela perspectiva da falibilidade humana e, portanto, facilmente questionado. Desse modo, a loucura e a velhice polarizam um círculo vicioso que somente pode levar à Destruição de Lear.
[10] Os idosos brasileiros vivem em inúmeros arranjos parentais ou de proximidade. Apenas 1% deles vive em asilos (até porque o governo federal só mantém um asilo público no país). Isso não quer dizer, no entanto, que os idosos brasileiros em convivência com suas famílias estejam imunes ao sofrimento de Lear. A maioria dos casos de agressão e maus tratos a idosos tem como criminosos os familiares. FÉLIX, Jorge. Rei Lear e o envelhecimento. Blog. Economia da Longevidade. Disponível em: https://www.gilbertogodoy.com.br/ler-post/rei-lear-e-o-envelhecimento—jorge-felix. Acesso em 31.11.2021.
[11] No bosque do espelho é mais um livro típico de Alberto Manguel onde cruza as suas próprias experiências literárias com trechos de livros que leu e que dá a conhecer. Ao longo das suas deambulações literárias parte de géneros literários para opiniões políticas ou sociais, falando de vários autores e do seu papel na sociedade.
Manguel aproveita os livros e a escrita para falar de humanidade, dissertando, portanto, sobre a sociedade e o que a obra transparece em determinados contextos. Por vezes, afasta-se, neste conjunto de textos, do que é a literatura e aproveita para falar de aspectos como a tolerância (uma opinião que se assemelha à minha para o conceito de pena – algo que diminui o objeto alvo dessa pena).
[12] Shakespeare é uma testemunha ocular do início da decadência da Cristandade, logo do Ocidente. Na sua época já ocorre uma mudança radical nas mentes, nas construções intelectuais, a transformação do homem medieval no homem renascentista. Shakespeare, talvez tenha sido o último grande nome do medievo, era, ?à diferença de muitos dos seus colegas dramaturgos, o continuador e o recapitulador do passado, o último sentinela de uma época que desaparecia rapidamente? (Martin Lings). O humanismo trazido pelo Renascimento carregava consigo uma antitradicionalismo arraigado, uma aversão ao sobrenatural, ao entendimento metafísico da Verdade triunfante. A arte da Renascença rompe com a noção estética da Idade Média, tomando como norte o belo pelo belo, sem o sentido transcendental da própria retratação artística; ?Se a arte renascentista carece desta abertura para o universal e é totalmente limitada à sua própria época, é porque sua perspectiva é humanista; e o humanismo, que é uma revolta da razão contra o intelecto, considera o homem e outros objetos terrenos inteiramente por si mesmos, como se não houvesse nada além deles. O Renascimento estabeleceu o naturalismo e o humanismo, ?nesse período, não ocorre apenas uma mudança no pensamento filosófico, mas também, em geral, em toda a vida do homem, em todos os seus aspectos: sociais, políticos, morais, literários, artísticos, científicos e religiosos. (Giovanne Reale – História da filosofia: Do Humanismo a Kant).
[13] Nietzsche afirma o ‘além-do-homem’ no fato cultural que teria marcado a aurora da nascente sociedade industrial: a morte de Deus. Kierkegaard escolhe-se espião de Deus e, como tal, denuncia a decadência humana criada pelo tripé estabelecido entre o social, o intelectual e o religioso. A finalidade dessa aliança seria impedir que o homem busque a verdade que pode conduzi-lo a seu destino. Procurar essa verdade é imperativo ético, sem o qual inexiste o indivíduo, mas que exige a presença de algo radical, a liberdade. Esta, se vivida intensamente, é o caminho que leva à descoberta-limite: a presença divina. Contudo, Deus escolhe o indivíduo e não a multidão. E, por esta razão, ele constitui-se em categoria fundamental do pensamento de Kierkegaard.
Cada indivíduo possui singularidade intransferível que o transforma, assim, em um ser insubstituível e único, responsável pela própria escolha. O homem que encontra refúgio na multidão é um covarde, foge da condição de indivíduo. Portanto, de um ponto de vista ético-religioso, a multidão é a mentira, se, porventura, for considerada como a instância através da qual se julga a verdade: “A multidão é a mentira. É por isso que, no fundo, ninguém despreza mais a condição do homem do que aqueles que fazem profissão de estar à frente da multidão”.
[14] Eugen Bertholt Friedrich Brecht (Augsburg, 10 de fevereiro de 1898 — Berlim Leste, 14 de agosto de 1956) foi um destacado dramaturgo, poeta e encenador alemão do século XX. Seus trabalhos artísticos e teóricos influenciaram profundamente o teatro contemporâneo, tornando-o mundialmente conhecido a partir das apresentações de sua companhia o Berliner Ensemble realizadas em Paris durante os anos 1954 e 1955. Recebeu o Prêmio Lenin da Paz em 1954.
[15] Durante a sua estada na Itália, recebeu uma carta da mãe de sua noiva, informando-lhe que ela tinha terminado o noivado, pois a sua filha estava para se casar com Camille Pleyel (filho de Ignaz Pleyel), um fabricante rico de pianos. Enfurecido, Berlioz decidiu voltar a Paris e se vingar de Pleyel, da sua noiva e da sua mãe, matando todos os três. Ele criou um plano elaborado, indo tão longe a ponto de comprar um vestido, peruca e um chapéu com um véu (com o que pensou em se disfarçar como uma mulher, a fim de entrar na sua casa). Ele ainda roubou um par de pistolas duplas de cano da Academia para matá-los, guardando um único tiro para si mesmo. Planeando a sua ação com grande cuidado, Berlioz comprou frascos de estricnina e láudano para usar como venenos em caso de a pistola falhar. Apesar deste planejamento cuidadoso, Berlioz não conseguiu levar o plano até o fim. Quando tinha alcançado Gênova, ele “deixou seu disfarce no bolso lateral da carruagem”. Após chegar a Nice, (na época, parte da Itália), ele reconsiderou todo o plano, decidindo que era inadequado e tolo. Ele enviou uma carta para a Academia em Roma, pedindo autorização para voltar. O pedido foi aceito e ele preparou-se para a viagem de volta.
[16] No tribunal do Júri, os jurados não vão se lembrar de todos os argumentos e provas apresentadas nas alegações. Por isso, melhor é escolher os três pontos mais importantes, os que devem necessariamente ficar na mente dos jurados, e lhes dar eloquência com três palavras, três frases ou três exemplos. Se houver dois, encontre mais um. Se houver quatro, dispense o mais fraco, recomenda Wilcox. Na hora da decisão, eles podem esquecer muita coisa, mas não irão esquecer dos pontos principais, construídos de acordo com a “regra de três”. In: DE MELO, João Ozorio. “Regras de três” na sustentação ajuda a fixar ideias. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2013-fev-26/regra-tres-sustentacao-oral-ajuda-persuasao-julgadores Acesso em 30.11.2021.
[17] O STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu que não existe diferença de herança para pessoas casadas ou em união estável. Por isso, a palavra “cônjuge” usada neste texto deve ser interpretada como marido, esposa, companheiro ou companheira. é necessário diferenciar meação de herança: Meação é o direito do cônjuge à divisão do patrimônio comum do casal, que varia conforme o regime de bens escolhido Herança é o patrimônio que será deixado depois da morte de alguém. A situação mais frequente é a comunhão parcial de bens, porque é o regime padrão —só será diferente se o casal optar expressamente por outro formato. Na comunhão parcial, o cônjuge já é dono de metade do patrimônio formado durante o casamento ou união estável. Essa parte (a meação) não entra no conjunto que será dividido entre herdeiros (a herança).
[18] A ordem de vocação hereditária, por sua vez, vem a ser a ordem sucessória, ou seja, o rol das pessoas que podem suceder. Art. 1.603 do CC/2002. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I – aos descendentes; II – aos ascendentes; III – ao cônjuge sobrevivente; IV – aos colaterais; V – aos Municípios, ao Distrito Federal ou à União. De se notar que o cônjuge somente era beneficiado na ausência de descendentes ou ascendentes. Nesta época, ao cônjuge era dado o direito real de usufruto vidual (Art. 1.611, 2º, CC/16: Ao cônjuge sobrevivente, casado sob regime de comunhão universal, enquanto viver e permanecer viúvo, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único bem daquela natureza a inventariar).
[19] O final feliz exige de Nahum Tate muita reescrita no ato V, que inclui um desafio entre Edgar e Edmundo, seguido de uma briga entre Goneril e Regan sobre o corpo de Edmundo, além da aposentadoria anunciada de Lear, Gloucester e Kent, e a subida de Cordélia e Edgar ao trono. Gloucester também não morre, de modo que todos os bons personagens estão reunidos no final feliz inserido por Tate em sua adaptação de Rei Lear, pois “a verdade e a virtude devem finalmente prosperar”. Tate também colocou um final feliz na peça porque ele estava ciente de que seu público gostava de ver uma peça terminando com justiça poética. Diferentemente de Rei Lear de Shakespeare, na versão de Tate todos os bons personagens sobrevivem, e apenas os maus perecem, sendo que as mortes de Goneril e Regan ocorrem de forma mais “poética”: ambas se envenenam em um banquete. A outra alteração que gerou consequências significativas para o enredo é a inserção do supracitado final feliz no enredo trágico, com Lear de volta ao trono, Cordélia casando-se com Edgar, todos os personagens bons sobrevivendo e apenas os maus sendo punidos através da morte. Desse modo, foi destruída a complexidade presente na peça de Shakespeare e, com um final feliz, tornou-se ameno e agradável o que no texto-fonte é irreparável e terrível.
[20] Os termos “Tom o ‘Bedlam” e “Mendigo Bedlam” foram usados ??para mendigos e vagabundos que tinha ou fingiam doença mental (ver também Abraham-men) Aubrey Ref. que tal mendigo pode ser identificado por “uma armilla de estanho impressa, de cerca de sete centímetros de largura” presa a seu braço esquerdo. [2] Eles alegaram, ou foram presumidos, serem ex-presidiários do Bethlem Royal Hospital (Confusão). Era comum pensar que os presos eram libertados com autoridade para abrir caminho implorando, embora isso não seja verdade. Se é que aconteceu, o número era pequeno, embora provavelmente houvesse um grande número de viajantes com doenças mentais que definem a mendigar, mas nunca estiveram perto de Bedlam. Foi adotado como técnica de mendigar, ou personagem. Por exemplo, Edgar em King Lear se disfarça de louco “Tom o ‘Bedlam”.
[21] A história do soberano, que, aos 80 anos, decide dividir o seu reino entre as filhas é considerada uma reflexão sobre a velhice. Mas a peça de 1606 é, acima de tudo, uma grande discussão sobre o exercício do poder. A lição maior da peça: o bom governante é obrigado a fazer sacrifícios, renunciar a sua vida pessoal, de desfrutá-la como os outros mortais o fazem em nome de uma institucionalidade. Ou seja, em benefício da comunidade. O poder prescinde direitos e deveres.
[22] Mas a crueldade ilimitada e a cobiça de Edmund fazem com que o violento duque de Cornwall enfrente Gloucester por causa de sua fidelidade a Lear. Assim, o duque arranca os olhos de Gloucester e depois acaba morrendo pelas mãos de um criado, que defende seu patrão.
[23] Rei Lear constitui uma fecunda experiência poética de onde podemos extrair lições importantes para um desdobramento possível, não plano da crítica literária e da psicanálise, da noção de catarse. Associado-veja aqui, para ser discutidos adiante, os temas de mudança, catarse e afeto. Do ponto de vista do funcionamento psíquico, a mudança Em outras palavras, o exílio de Lear não é somente territorial, geográfico, mas, sobretudo, mental.
[24] “Afeição é usado filosoficamente em sua maior extensão e generalidade, porquanto designa todo estado, condição ou qualidade que consiste em sofrer uma ação sendo influenciado ou modificado por ela” Abbagnano (1971). Implica, portanto, em uma ação sofrida. Diz-se que um metal é afetado pelo ácido, e que alguém tem uma afecção pulmonar, mas as palavras afeto e paixão são reservadas aos humanos.
Aristóteles chamou de afetivas as qualidades sensíveis porque cada uma delas produz uma afeição dos sentidos. Ao declarar no princípio De anima o objetivo de sua investigação, mostra que visava conhecer, além da natureza e da substância da alma, tudo o que acontece à alma, tanto as afeições que lhes são próprias, quanto aquelas que tem em comum com os animais. Mas, a palavra afeição não só designa o que acontece à alma, como ainda qualquer modificação que ela sofra. Esse caráter passivo das afeições da alma parecia ameaçar a autonomia racional. Daí os estoicos marcarem uma dicotomia que chega aos nossos dias, as afeições e por extensão as emoções seriam irracionais. Com essa polarização o irracional (não humano, ou animal) toma conotação moralmente negativa. Para a afeição são criadas expressões como perturbattio animi, ou concitatio nimia, usadas por Cícero e Sêneca. Vem de muito longe a questão do menosprezo ao afeto como menor, frente ao racionalismo desejável e triunfante. A noção de que a afeição pode ser boa ou má segue até Santo Agostinho e os escolásticos, que mantêm o ponto de vista aristotélico da neutralidade da afeição. Entre o bem e mal, esclarece Santo Agostinho, as afeições precisam ser moderadas pela razão, ponto de vista também defendido por Tomás de Aquino.
[25] Como eles se formam? Como nascem? Como derivam-se uns dos outros? Espinosa acredita ser possível entender os afetos em sua produção interna e necessária, com seus vários graus de complexidade. A intenção de Espinosa, na terceira parte da Ética é estudar a dedução genética dos afetos, criando assim uma verdadeira ciência dos afetos.
[26] Ponto de destaque na definição aristotélica diz respeito à questão do julgamento, a krísis. Adotamos aqui concepção filosófica bastante genérica de que um julgamento trata de uma afirmação ou de uma negação, e que pode ser falso ou verdadeiro. Da complexidade que gera essa noção e de seus desdobramentos na tradição filosófica, from Aristóteles, ressaltamos que ela comporta aspectos lógicos, metafísicos e psicológicos.
[27] As Crônicas da Inglaterra, Escócia e Irlanda (Chronicles of England, Scotland, and Ireland) foram publicadas em 1577 e foram um êxito editorial, atraindo elogios e críticas dos seus contemporâneos. Uma nova edição, muito ampliada, foi publicada em 1587, após a morte de Holinshed. As Crónicas foram um feito para a historiografia inglesa da época, e serviram de referência sobre a história britânica para muitos autores subsequentes. Shakespeare baseou-se na obra para suas peças teatrais históricas, como Henrique V, e para as tragédias Macbeth e Rei Lear.
[28] Revolução Inglesa é o nome dado a uma série de conflitos ocorridos na Inglaterra entre os anos de 1640 e 1688 e que levaram à transição da monarquia absolutista para a monarquia parlamentar – modelo adotado até hoje no país. Essa revolução marca o fim do absolutismo e acontece no contexto de ascensão da burguesia, que se fortaleceu entre os séculos XV e XVI e passou a exigir mudanças políticas. A Revolução Inglesa foi a primeira revolução burguesa na mundo, ela abre o caminho para que a Inglaterra seja o palco principal da Revolução Industrial no século XIX.
[29] A dramaturgia shakespeariana foi taxada de iluminista francês Voltaire como “calamidade e cúmulo de horror” foi encenada no início do século XX, por diretores que ousaram transformações cênicas como Stanislavski, Meyergold, Copeau, Vilar, Barrault e Brecht.