O conceito de pessoa é um dos mais relevantes para o direito ocidental, porém, paradoxalmente são quase nulos os estudos jurídicos dedicados a investigar com profundidade a elucidação histórica e os sucessivos conteúdos teóricos sobre a temática.
Grande parte dos estudiosos parece considerar a noção como sendo inata, assim o conceito de pessoa seria um dado, que tem sempre existido. Mas, é indispensável para a resolução de dilemas no campo do direito contemporâneo e para efetiva proteção jurídica do indivíduo que se possa investigar adequadamente o conceito de pessoa.
De fato, não é nossa pertinência à espécie homo sapiens que nos faz pessoas. Na seara da linguística, por exemplo, estudiosos apontam que nas sociedades ocidentais é trivial a ocorrência de esvaziamento semântica da grande maioria das palavras.
O referido esvaziamento semântico é associado à própria dicotomia que se dá entre conservadorismo e mudança, binômio que expressa os fatores estáticos e dinâmicos da linguagem, assegurando a comunicação entre os seres humanos.
O mesmo esvaziamento semântico acomete a noção de pessoa, que por ser de difícil apreensão na sua essencialidade, é hoje carregada de vários conteúdos, em função das formulações jurídicas, políticas e até mesmo filosóficas que foram se construindo ao longo do tempo.
O conceito de pessoa aplicar-se-ia, então, no rol das expressões e afirmações universalizadas, que passam para a convergência internacional porque todos as utilizam, de tanto repetidas vão gastando o sentido.
E quando há o questionamento sobre o que realmente significam, verificamos que são fórmulas vazias, afirmações sem conteúdo, porque este se foi desgastando ao longo dos tempos nas bocas e nos ouvidos.
A referência universalizada à pessoa, assim como a dignidade da pessoa humana tem se mostrado oca em sua essência. O que problematiza a existência de referenciais de validade para a construção do conceito de pessoa hodiernamente, central no campo do direito, pois todo direito assenta na pessoa.
A noção de pessoa é relativamente recente na evolução da humanidade e de acordo com Ascensão não encontramos na civilização clássica anterior à greco-cristã nenhum indicio de conceito.
Numa inicial investigação sobre a origem etimológica da palavra pessoa, bem como o sentido correto em que fora utilizada no pensamento antigo continue sendo questão aberta no campo das conceituações, seu processo de elaboração nos remete à duas fontes argumentativas.
A primeira fonte onde a definição da personagem representado pelo ator no teatro precede a de pessoa, o que confirma que nas antigas civilizações ocidentais não se atribuiu o mesmo nível de generalidade que os conceitos atuais de pessoa ou de indivíduo comportam, prendendo-se apenas ao campo de atributos e das funções exteriores.
O termo “pessoa” percorreu diversos territórios semânticos, advindo desde a linguagem teatral, onde provavelmente reside sua origem, passando pela linguagem das profissões, pela gramática, retórica e, por fim, pela linguagem jurídica e teológica para vir se fixar finalmente na linguagem filosófica.
O conceito etimológico mais difundido da palavra pessoa é originário em Boécio, filósofo cristão de formação grega, que aponta a origem em persona, cujo sentido genérico é de máscara de teatro e representada pelo som de sua voz, uma personagem.
Aceita-se que persona esteja relacionada ao verbo latino personare que significa soar, passar através da voz do ator, através da persona, da máscara.
Com idêntica equivalência ao termo grego prosôpon que se refere também às máscaras de representações teatrais, mediante as quais o mesmo ator representava diferentes papéis, em um contexto em que o alcance filosófico do uso aparecia com maior clareza, persona apontaria algo exterior, mais precisamente para o papel que o homem vive, para algo acrescentado ao ser humano.
Daí prosôpon passou a designar o próprio papel representado pelo ator, e, posteriormente, passou a significar a função ocupada pelo indivíduo na sociedade, sem vir a significar o indivíduo em si mesmo.
Para os autores, sobretudo cristãos que preferiam usar a palavra hypóstasis, um paralelo do latim substantia, ao invés do tradicional prosôpon. Contudo, também hypóstasis no fundo poderia ser interpretada – pelo menos etimologicamente – como o que estava sob a máscara: no teatro, indicaria então não o ator, mas o personagem que ele representava, simbolizada e identificada com a máscara.
Percebe-se que o pensamento grego se interessava pela individualidade, ainda que, por outro lado, a considerasse uma imperfeição. E, também o direito teria se influenciado na designação do sujeito de direitos pessoais em distinção ao sujeito de direitos reais, ligado às coisas, uma vez que o mesmo homem poderia ter diferentes personae, quer dizer, diferentes papéis sociais ou jurídicos.
Na Roma Antiga, por exemplo, apenas os cidadãos tinham direitos pessoais, e seria apenas o varão, livre que poderia ser considerado sujeito de direitos e deveres. O que não incluía nem as mulheres e nem as crianças.
Assim o conceito de pessoa é algo além de um fato de organização, mais do que o nome ou o direito reconhecido a uma personagem e mais do que uma máscara ritual, traduzindo-se num fato fundamental do direito.
Dizem os juristas que nada há além das personae, das res e das actiones, e tal princípio ainda governa as divisões de nossos códigos. Todos os homens livres de Roma foram cidadãos romanos, todos tiveram a persona civil: alguns tornaram-se personae religiosas, algumas máscaras, nomes e rituais permaneceram ligados a algumas famílias privilegiadas dos colégios religiosos.
A outra fonte argumentativa sobre o conceito etimológico de pessoa ressalta a grande diferença existente entre máscara e pessoa, em sentido estrito. Não há oposição entre “eu verdadeiro” e o “eu mascarado”. Pelo contrário, a pessoa é o mais “verdadeiro eu” que pode existir, fruto da singularidade do ser humano, em sua plenitude.
Segundo Park apud Stancioli, o homem está sempre e em qualquer lugar representando um papel e, é nesses papéis que nos conhecemos uns aos outros, que nos conhecemos a nós mesmos. Claro, não considerando a advertência de Freud [1] quanto a existência do inconsciente (id ) que fundamentou a frase: “não somos donos nem da nossa própria casa”.
Na medida em que esta máscara representa a concepção que formamos de nós mesmos – o papel que nos esforçamos para chegar a viver – esta máscara é o nosso mais verdadeiro eu, aquilo que gostaríamos de ser. Ao final, a concepção que temos de nosso papel torna-se uma segunda natureza e parte integrante de nossa personalidade. Entramos no mundo como indivíduos, adquirimos um caráter e nos tornamos pessoas.
Sublinhando-se a acepção de pessoa como papel social e resgatando-se o lugar da teatralidade, permitindo ao indivíduo orgânico, que é o social, existir, possibilita-se entender melhor o porquê das primeiras conceituações da palavra “pessoa”.
O verdadeiro sentido e utilidade do conceito de pessoa está, sobretudo, na capacidade de opor o indivíduo humano concreto, particular, à ideia universal de humanidade. A sua individualidade revela-se, neste contexto, um papel, uma máscara viva no palco do mundo e, não mais do que isto.
A visão da pessoa no século XX[2] é substituída pela ideia de humanidade, deixando de atender ao homem concreto.
A filosofia antiga não sistematizou um conceito ôntico de pessoa, e a resposta parece estar na enorme dificuldade que o pensamento antigo tinha em lidar com as realidades individuais em face da visão monista da realidade.
Na cultura arcaica grega, a existência humana se harmonizava com a organização geral do cosmos, pois não havia separação entre o conhecimento físico e a reflexão sobre os valores relativos à dinâmica do mundo natural.
A concepção de pessoa pautada em uma unidade física e orgânica, não permitia a percepção dos outros homens como existência singular. Os gregos percebiam a individualidade intrinsecamente e alinhada à concepção de ser parte de um todo harmonioso, a partir do qual e somente em referência ao qual se podia perceber o indivíduo.
Platão e Aristóteles aplicaram os conceitos de substância, natureza e essência ao homem sem se referirem concretamente à pessoa. Apesar disto, foram tais filósofos que inauguraram o período antropológico da filosofia, desenvolvido pelos gregos a partir da cosmologia segundo a qual o ser humano é compreendido como a realidade natural mais elevada.
Já na acepção sociológica da pessoa que se desenvolvem a priori na reflexão sobre o homem na sua dimensão exterior, uma acepção de natureza ontológica para o termo pessoa começa a ser construída nas disputas trinitárias[3] e cristológicas [4] da Antiguidade.
Decifrar o sentido da sua individualidade no seio da humanidade, nesta visão a pessoa passa a ter um lado metafísico relacionado com a alma individual e sua porção espiritual passa a ser um fato reconhecido socialmente, permitindo que o conceito de pessoa aplicado ao homem, como possuidor de direitos subjetivos ou direitos fundamentais, com sua consequente dignidade, venha a ser desenvolvido.
Foi com o advento do Cristianismo, mais precisamente no âmago da filosofia patrística, de evangelização e na maior defesa da religião cristã que ganhou destaque a pessoa dentro da teologia trinária, perfazendo uma antropologia teológica.
Bem mais tarde tal conceito de pessoa fora aprofundado pelos escolásticos quando se superou a visão monista da realidade e se dotou de teor metafísico o conceito de pessoa, no sentido de ser a singularidade substancial ou o princípio último de individualização.
A noção filosófica de pessoa só fora verdadeiramente aprimorada pela Escolástica, estimulada pela necessidade de enquadramento das pessoas divinas.
A Escolástica[5] fundamentada nas reflexões cosmológicas gregas, erigidas no século VI d.C., que definiu a pessoa como indivíduo que subsiste na natureza racional. E, se parte da verdade revelada, dentro do pensamento teológico, procurando entendê-la, ilustrá-la e explicá-la racionalmente, deixando o homem de ser objeto para passar a ser sujeito e, portanto, portador de valores.
Na concepção teológico-cristã o conceito de pessoa se encontra ligado a três de suas grandes questões, a saber: a natureza da Santíssima Trindade (Deus ou três Deuses, ou manifestações divinas); a Encarnação do Verbo (Deus ou o gomem); e a semelhança ontológica entre o Homem e Deus.
Almejava-se explicar a fé e a crença que se tinha em um Deus-Trindade e na Encarnação da Segunda pessoa dessa Trindade como homem, sem perder sua divindade. O mistério dos três nomes divinos: Deus, Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo conduziu a reelaboração deste conceito.
Durante os séculos IV e V tais afirmações geraram controvérsias ideológicas que tinham na sua origem o problema linguístico. E, ocorreu no início da elaboração da doutrina trinitária, começo do século III, as palavras prosôpon e persona, na tentativa de designar aquilo que distingue os Três, foram aplicadas à Trindade no sentido de que o Pai, o Filho e o Espírito Santo eram tão-somente funções, papéis ou até mesmo meros modos ou manifestações da substância divina única.
Tal tipo de entendimento era característico de alguns teólogos do século III chamados de modalistas [6], tanto que fora condenado como herético pela Igreja, que insistiu na igualdade e na distinção das pessoas divinas, quanto não colocou fim à exigência de uma linguagem rigorosa, que descrevesse e explicasse a trindade de Deus e a dupla natureza de Cristo fundamental para o entendimento do conceito de pessoa, tornando claro que prosôpon e persona, no sentido explicado, só eram parcialmente adequados para expressar a o que a fé cristã confessava a respeito da Trindade.
Deve-se Tertuliano[7] (século II e III) a identificação da palavra grega prosôpon ao conceito latino de pessoa, próprio do Direito Romano. Para ele, o termo pessoa exprimia o indivíduo particular a quem se endereça. Não se referia a um simples personagem, mas da presença efetiva e real de alguém que existe nele mesmo, de uma realidade individual e distinta, de uma realidade incomunicável. Na sua relação com o outro, a pessoa se expressa como sujeito que diz “eu” em relação a um “tu”.
Também se deve a Tertuliano a contribuição de projetar o mistério trinitário no primeiro plano da reflexão teológica, acentuando a distinção da Trindade sem separação: em Deus há una substantia, tres personae (uma única substância, três pessoas).
Ademais, foi ele quem utilizou os termos latinos substantia, persona e status para sanar as confusões modalísticas, sem, contudo, resolver a questão. Isso só virá a ocorrer no momento em que, na teologia cristã, o monismo antigo cede lugar ao dualismo filosófico, ou seja, a natureza (phisis) e versus pessoa (hypostasis).
O único Deus se realiza em três hypostasis: Pai, Filho e Espírito Santo, que são modos de expressão, mas constituem a realidade imanente de Deus.
No contexto trinitário, Tertuliano é o primeiro a usar a palavra persona em relação à Trindade. E em seu pensamento jaz a origem a fórmula latina: há tres personae em Deus, no sentido de ser três individualidades distintas. Ele conhecia o idioma grego e também o uso bíblico de prosôpon para exprimir o rosto ou a voz de Deus.
Nesse derradeiro sentido, persona deixa de expressar o papel social de um homem e passa a significar seu núcleo constitutivo, do qual irá derivar sua inigualável dignidade.
Eis onde reside o cerne do conceito ontológico ou metafísico de pessoa, pelo qual as respostas aos questionamentos assinalados começaram a alinhavar-se. A antiga dificuldade em lidar com a individualidade, se vê atualmente superada.
Pessoa tornar-se a forma especial de ser, a natureza, a universalidade ou a essência da realidade. O conceito de pessoa ganha um conteúdo ontológico, capaz de designar uma realidade ôntica, a qual nem mesmo Aristóteles [8], o pensamento clássico conseguiu identificar.
Foi com Santo Agostinho que se acentuou a singularidade e a individualidade no conceito de pessoa, sendo sistematizadas as potências da inteligência, da memória e da vontade. Precursor da reflexão sobre a pessoa humana, como subjetividade vivente, Santo Agostinho [9], em seu tratado “Da Trindade”, oferece um primeiro ensaio em que se exprime a subjetividade do eu. Assinalou-se que “Deus é o mestre interior cuja pessoa transcendente fala para a pessoa humana”.
Já no século VI com Boécio encontrou-se a aguda percepção da fronteira e da transição do uso filosófico de persona para o uso teológico, quando se consagrou a primeira formulação doutrinária de pessoa que veio a constituir na raiz teórica dos tratados posteriores dado ao conceito em comento.
Persona proprie dicitur naturae rationalis individua substantia (diz-se propriamente pessoa a substância individual de natureza racional).
Boécio concebe o ser humano como um composto de corpo mortal e alma imortal. E, por uma parte, a alma é a forma do corpo e, é por ela que o homem é. A alma, porém, não é todo o ser humano, senão só uma parte de sua essência.
Desta forma, Boécio consolidou o vocabulário sobre pessoa (prosôpon), como também reafirmou a existência de duas naturezas em uma só pessoa.
Ainda no século XII, Ricardo de São Vitor com o fito de melhor adaptar a definição de pessoa ao dogma trinário, propôs uma definição que transfere o constitutivo de pessoa para o campo existencial e introduziu- lhe a noção de incomunicabilidade e substituindo a expressão “individua substantia por incommunicabilis” e singulares existências: pessoa é a existência incomunicável da natureza divina.
O conceito de pessoa surge, assim, como realidade ontológica, única, fechada, incomunicável, sendo a natureza humana racional singularizada na existência concreta de cada ser. Pessoa que pertencendo a si mesmo, é autônomo e independente.
Mais tarde, no final do século XII, São Tomás de Aquino [10] soube desenvolver doutrina sobre as relações subsistentes na Trindade, introduzindo as necessárias distinções ao conceito de pessoa desenvolvido por Boécio que exerceu notável influência no seu pensamento, a fim de evitar a heresia de que em Deus a natureza é pessoa, enquanto natureza.
Para tanto afirmou, que a substancialidade da relação in divinis por entender que não havia outra forma de se esclarecer o significado das pessoas divinas, senão a de esclarecer as relações entre elas, com o mundo e com os homens.
São Tomás de Aquino define pessoa como subsistente indivíduo em alguma natureza racional. Concebe o significado da ideia de pessoa como relação, ou seja, a substancialidade da relação in divinis. Para ele, não haveria outra forma de elucidar o significado das pessoas divinas, senão a de esclarecer as relações entre elas, com o mundo e com os homens.
S. Tomás[11] vale-se de Boécio para afirmar que a pessoa, em Deus, significa precisamente relação: todo atinente às pessoas, significa uma relação [12]. Além disso, entendia ele que não havia outra forma de se esclarecer o significado das pessoas divinas, senão a de esclarecer as relações entre elas, com o mundo e com os homens.
Desta forma, a persona est subsistens in rationalis natura de São Tomás de Aquino é uma concepção na qual já se encontra inserida a noção de sujeito subsistente, na medida em que a substância é aquilo que recebe o ser em si, o qual, por sua vez, confere pelo seu ato um caráter de unidade e totalidade ao sujeito.
Desta concepção de pessoa destaca-se o caráter único do ser humano, bem como a ideia de que todos os seres humanos são iguais em dignidade, visto que todos são inata e naturalmente dotados da mesma racionalidade.
A consequência antropológica de tal concepção se explicita na medida em que o ser humano não pode ser verdadeiramente pessoa a não ser que viva em rede de relações fundamentais e de reconhecimento mútuo.
Tal perspectiva oferece uma fundamentação na a dignidade não está condicionada e não se sujeita às convenções jurídico-sociais, ou seja, não depende de fatores externos ao ser humano.
Por isso, a concepção aquiniana de pessoa é considerada de fundamental para a construção do conceito de pessoa na modernidade e permite pensar a pessoa a partir daquilo que o homem tem de mais individual, próprio, incomunicável, menos comum e mais singular (persona como per se uma).
Embora a síntese aquiniana situada entre a tradição clássica e a teologia cristã, tenha sofrido rupturas nos séculos que se seguiram, é inegável que os pensadores cristãos foram responsáveis não só pelo aprofundamento do conceito de pessoa, como também pela ressignificação da antropologia subjacente à ideia de pessoa.
A verdade que a mudança de padrões filosóficos ocorrida na Idade Média representou os primeiros passos para se ter o desenvolvimento da noção de pessoa na filosofia moderna. Pois na perspectiva clássica e medieval, a pessoa humana, embora reconhecida na sua singularidade e dignidade ontológica, não chegou a ser o centro das preocupações: se a influência cristã a colocou na qualidade de sujeito dotado de valores intrínsecos a sua própria humanidade, o fez por ser ela imagem e semelhança de Deus.
A preocupação era propriamente com cosmos, ou então, Deus. A filosofia preocupava-se com os problemas relacionados ao “ser” enquanto ser e o conhecimento, por ser de cunho metafísico, impossibilitava a construção de uma teoria do conhecimento.
A partir do século XVI na natureza e na história, Deus vai perdendo a transparência que tinha para os antigos e o eixo e o centro da humanidade deslocam-se do contexto religioso.
As relações entre os homens se apresentam menos hierarquizadas e já não há mais uma central orientação política, religiosa ou cultural. E novas produções subjetivas são feitas a partir da Renascença, na qual as realidades passam a se referir ao ser humana, a começar pelo mundo da natureza.
Na qualidade de sujeito, o ser humano destaca-se da natureza e a transcende, inverte-se, portanto, a relação homem-natureza.
Esta atitude filosófica acarreta uma alteração do objeto da filosofia: do estudo da ontologia do ser, a filosofia passa a ter por objeto o próprio sujeito cognoscente, o homem que antes e primeiro é um ente que conhece.
Desta forma, o conceito de pessoa sofre necessariamente, uma alteração semântica, e a ideia de persona perde o seu conteúdo ontológico e passa a designar uma realidade psíquica, na esteira de um crescente avanço da razão técnico-instrumental.
Frise-se que a alteração conceitual é bastante sensível, pois se a reflexão teológica cristã havia construído uma noção metafísica de pessoa e mesmo seu prestígio moral, na época moderna observa-se uma desconstrução do conceito, retirando-lhe o conteúdo ôntico, para identificá-la com uma realidade psíquica, emotiva, subjetiva.
No século XVII, o “eu” de Pascal[13] distingue o Deus dos filósofos do Deus pessoal de Abraão, de Isaac e de Jacó, capaz de invadir a pessoa humana em uma experiência única.
Do mesmo modo, o “eu” do cogito de Descartes rompeu com o modelo tradicional de pensar a unidade do homem mediante forma ou matéria: a filosofia passa de uma reflexão metafísica sobre os objetos para uma reflexão sobre os sujeitos e, portanto, sobre as pessoas.
Através do cogito, Descartes[14] desenvolveu a tese de que o pensamento humano é simultâneo à existência, não sendo possível pensar e não existir – o “eu” como consciência, uma autoconsciência, ao mesmo tempo em que enfraquece ou diminui o reconhecimento do caráter substancial da pessoa, acentua a sua natureza de relação, especialmente no que tange à relação do homem consigo mesmo.
Essa nova forma de pensar o mundo deu origem ao racionalismo que, como corrente filosófica, concebe a pessoa como ser intelectual, capaz de duvidar e de elaborar ideias claras e distintas.
A partir daí a imagem de homem que irá prevalecer na cultura ocidental é a do homem como pessoa. A pessoa passa a ser centro de todo o saber e também a sua fonte.
O alcance da filosofia cartesiana é inquestionável e influiu em todas as consequências históricas nos rumos técnico-científicos que a civilização ocidental tomou a partir do século XVII nos planos social, histórico e político.
E, não é necessária muita perspicácia para se avaliar o quanto o pensamento cartesiano sobre a pessoa humana e sobre o sujeito contribui enfaticamente para a direção histórica que contemporaneamente estamos trilhando, sobretudo, se consideradas a complementação da subjetividade que recebeu posteriormente.
Já no século XVII, a filosofia iluminista e o movimento enciclopedista francês se engajaram em traçar os direitos da pessoa, da liberdade pessoal de pensar e da propriedade privada. A pessoa humana passou a ser percebida não só pelo fato de existir, mas sobretudo, de como ela existe.
John Locke[15] propôs um conceito de pessoa no qual a construção do “eu” é resultado do processo de conhecimento. Pessoa é o ser pensante, dotado de razão e reflexão, que pode reconhecer-se a si mesmo, agora, como o mesmo eu que era antes; e que essa ação passada foi executada pelo mesmo “eu” que reflete, agora sobre ela, no presente.
No século XVIII, os direitos se tornaram mais efetivos e os valores mais cruciais da convivência humana em sociedade. Foi nesse século que a civilização dos direitos efetivamente explodiu, é o século da grande virada do Ocidente conforme aludiu Ascensão.
Transmuta-se de uma sociedade em que a sociedade política apelava aos deveres dos cidadãos para uma sociedade em que se apela aos direitos. Passa-se de uma comunidade de deveres para a comunidade de direitos, e até, nas formas mais sofisticadas, a comunidade de direitos sem deveres. Pelo menos, os deveres passam a ocupar um lugar mais recuado perante essa categoria nuclear que é representada pelos direitos humanos ou direitos do homem.
Para tanto, muitos pensadores e estudiosos contribuíram para as formulações de Immanuel Kant, quando a pessoa se torna propriamente um conceito filosófico, ultrapassando o pensamento cartesiano, o “eu-pessoa” aparecerá em Kant como “eu do dever-ser”.
Pessoa se traduz em ser o sujeito a quem se podem imputar suas próprias ações. Com Kant, o homem possui um valor absoluto que ele detém em vista de sua pessoa; enquanto ser raciona e, como tal, a pessoa é entendida como sujeito autônomo que age segundo a determinação de vontade, e não, por leis da natureza, mas consoante aos ditames da própria razão pura e também da razão prática, o que possibilita ser livre.
A convergência do conceito de liberdade com o conceito de pessoa ocorre na medida em que esta é um ser racional e seu agir deriva da vontade pura, ação de causa puramente racional, e consequentemente livre.
A autonomia reduz-se à experiência inerente à própria subjetividade do indivíduo como realização de sua humanidade, o que implica o imperativo categórico de Kant no sentido de reconhecer, a partir da identidade de sua própria consciência, a existência da humanidade em si.
Nessa dimensão, ao considerar o homem coo fim em si mesmo, é considerar o homem como pessoa, ou seja, como valor absoluto e nunca como meio a atingir determinada finalidade. O ser racional identifica-se com a razão e, tal como esta, não deve estar subordinado a condições estranhas, a princípios externos.
Compreende-se assim, que a pessoa se distingue de tudo o que, sob o nome de necessidades e inclinações, constitui aquilo a que se chama individualidade. E, por ser insubstituível em sua individualidade, o homem possui dignidade e não um preço.
Daí, Kant[16] tirou a máxima do imperativo moral que deve ordenar a conduta individual ou coletiva do ser humano e que prescreve, simultaneamente, o respeito por si e o respeito pelos outros.
A principal crítica que se aponta na concepção formulada por Kant é o fato de ser influenciada por seu idealismo e, ainda, o fato de estar presa a uma filosofia do sujeito ligado ao conceito pré-social de pessoa. Esse sujeito puramente individual, autônomo e privado, é visto como uma ilusão da ideologia burguesa e do seu jogo de espelhos, em que a um conceito atomista de pessoa corresponde um conceito contratualista e racional de sociedade.
Em Kant[17], o conceito de pessoa se torna mais nítido. E, entre os séculos XIII e XIX principalmente visando superar o dualismo entre corpo e alma, ainda prevalente na filosofia, surge a reflexão hegeliana sobre a individualidade.
Ao dualismo essencial de Kant existente entre “ser” e o “dever-ser” se contrapõe Hegel com a unidade indissolúvel do pensamento com a realidade, de tal modo que o deve ser não é senão um momento do devir de algo, pois, aquilo que deve ser é, e, ao mesmo tempo não é.
Enquanto que Kant concebe o dever-ser como peculiar tão somente à essência e à dignidade humana, Hegel, concebe-o como um momento de destinação dos seres em geral.
Mas, Hegel não atinge seu alvo apesar de postular pela superação, no plano da racionalidade concreta, a finitude e a infinitude do ser humano. Sua premissa inicial de objetivação ética, uma abstração infecunda, acabou por esvaziar o conceito de pessoa de seu conteúdo axiológico.
O resultado dessa concepção de pessoa é o sacrifício da subjetividade, perdendo seu sentido ôntico. Conclui-se que o pensamento kantiano haveria ainda de prevalecer para a elaboração do conceito de pessoa no século XIX.
O conceito de pessoa em Hegel está relacionado à esfera jurídica, à capacidade jurídica do indivíduo, embora ainda se cogite numa capacidade em potência. É uma manifestação ainda abstrata e indeterminada uma vez que todas as pessoas são portadoras de direitos e deveres, sendo, portanto, fundamentalmente iguais.
A personalidade contém a capacidade jurídica e constituiu o conceito e base do direito abstrato que, por isso, é ainda formal.
Segundo Hegel: “O homem vale assim, porque ele é homem, não porque ele é judeu, católico, protestante, alemão, italiano e, etc. Essa consciência, pela qual o pensamento vale, é de uma importância infinita, apenas é insuficiente quando se fixa, enquanto cosmopolitismo, num opor-se à vida concreta do Estado.
Munido com essa afirmação Hegel reconhece a igualdade formal de todas as pessoas, e deixa evidente a defesa de que esse reconhecimento só é realmente efetivo dentro da vida concreta.
Para Hegel o ponto de partida para a concretização da noção de liberdade é, portanto, a efetivação da ideia de dignidade humana, é a pessoa de direito. De onde se inicia o desenvolvimento da vontade racional e autônoma.
Por essa razão, no direito abstrato, quando pela primeira vez surge a ideia de pessoa, a propriedade é tratada como direito fundamental do homem. Justamente é no ato de se apropriar de algo que o homem natural se torna pessoa e afirma a sua individualidade.
Nas palavras de Hegel, em seus §§ 41 e 43, respectivamente: “A pessoa precisa se dar uma esfera externa de sua liberdade, a fim de ser enquanto ideia. Porque a pessoa é a vontade infinita sendo em si e para si nessa determinação primeira ainda totalmente abstrata, esse seu aspecto diferenciado, que pode constituir a esfera de sua liberdade, é igualmente determinado como o que é imediatamente diverso e separável dela.
A pessoa, enquanto conceito imediato e, por isso, também essencialmente [indivíduo] singular, tem uma existência natural, em parte, em si mesma, em outra parte, como aquilo com o que se relaciona com o mundo exterior. – É apenas nessas Coisas que são imediatamente tais, e não determinações que são capazes de se tornar Coisas pela mediação da vontade, que aqui se fala a propósito da pessoa, a qual está, ela mesma, em sua imediatidade primeira”.
É graças aos estudos inovadores de filósofos como Brentano, Lotze e Nietzsche, na segunda metade do século XIX, ficou evidente que o bem e o mal não se encontram confinados nos objetos ou ações exteriores à pessoa, mas resultam sempre de avaliação, ou seja, da estima ou preferência que os bens possuem na consciência de cada indivíduo, significando uma interrelação entre sujeito e objeto. No exato sentido de cada pessoa que aprecia algo porque o objeto dessa apreciação tem objetivamente um valor.
Se o homem não cria valores do nada, também é veraz que a avaliação individual dos bens da vida varia imensamente, o que exige o consenso social sobre a força ética de tábua hierárquica de valores.
Precisa-se entender que os bens e ações humanas não se organizam somente numa oposição primária de valores e contravalores. Existe igualmente e necessariamente, em toda sociedade organizada, uma hierarquia a ser considerada, dentro de cada série positiva ou negativa: há sempre bens ou ações humanas que, objetivamente, valem mais que outros, ou que representam contravalores mais acentuados que outros, como obstáculo ao desenvolvimento da personalidade humana.
Este foi o eixo conceitual de pessoal no século XIX trazendo ideias valorativas e fundamentos éticos que consistiu no reconhecimento de que o homem é o único ser vivo capaz de dirigir a sua vida em função de suas preferências valorativas, por ser racional e possuir vontade e autonomia.
Ou seja, a pessoa humana é, ao mesmo tempo, o legislador universal, em função dos valores éticos que aprecia, e o sujeito que se submete voluntariamente a essas normas valorativas.
Num segundo momento da filosofia do Direito, no momento da moralidade, se acentua a fundamentação subjetiva da vontade livre, privilegiando-se, a noção de liberdade como autodeterminação. E o enfoque não é mais a pessoa do Direito, mas a pessoa da moralidade, ou seja, o sujeito.
Do ponto de vista moral que é o ponto de vista da vontade, que não é meramente em si, mas para si e infinita, determinando que a pessoa passa a ser sujeito. É a autodeterminação da vontade que traduz o conceito e a subjetividade.
A moralidade, portanto, trata diretamente das condições da responsabilidade subjetiva. A moralidade é pressuposto básico para o desenvolvimento da dignidade humana, que ainda assim, encontra-se incompleta.
Em Hegel, a moralidade é um momento no processo de determinação do princípio da liberdade, mas ele vai além e desenvolve, na eticidade, o desdobramento objetivo das vontades livres. Hegel critica e acusa Kant de não ter ultrapassado o ponto de vista subjetivo, de ter desenvolvido uma moralidade que trata do dever-ser, mas não se preocupa com como ele será cumprido, o que ocorrerá, para Hegel, na Eticidade, locus da realização objetiva nas instituições sociais.
Hegel ultrapassa a subjetividade da vontade tratando das determinações objetivas, da mediação social da liberdade. Não há como realizar plenamente a liberdade humana, e garantir sua dignidade, fora de uma determinada estrutura social.
A dignidade não existe isoladamente, como característica natural, mas é conquistada nas instituições éticas, nas palavras de Hegel: na família, na sociedade civil e no Estado.
Para Hegel, a dignidade não existe nesse estágio indeterminado, não existe apenas enquanto característica natural do homem, ela precisa ser objetivada. A vontade livre e autônoma é confundida com a vontade natural e imediata, mas a dignidade só existe na intersubjetividade, onde a liberdade é assegurada mediatamente, estando suprassumida no ético e garantida pelas instituições das quais é membro.
O Estado do século XIX agrupou os indivíduos autônomos, independentes, livres, dotados de igualdade política e jurídica. Em oposição ao Estado absolutista, consagraram-se liberdades e direitos dos indivíduos. Deixam de ser súditos e ascendem ao grau de cidadãos.
Daí, os valores desse Estado: a garantia da liberdade, da convivência pacífica, da segurança e da propriedade. O Estado que serve de instrumento de garantia dos direitos individuai e, disso decorrendo sua utilidade e necessidade.
Nos quadros do liberalismo que marcou o século XIX desenvolveu-se o individualismo, bem propício à propriedade privada e dada à satisfação de egoísmos individuais e, em contraponto, aos movimentos igualmente materialistas, mas de sinal contrário, conducentes a uma luta de classes.
Dessa evolução notável adveio o conceito moderno de pessoa que significa a resposta ao questionamento “o que é o homem?” que se afirma cada vez mais como um termo interrogativo. Posto que persona já não mais responde e nem atende à realidade humana, torna-se, antes de tudo, uma interrogação sobre o homem.
A desconstrução conceitual de pessoa que se deu na modernidade lançou as bases para o personalismo contemporâneo, especialmente presente na primeira metade do século XX, quando entrou em cena o pensamento existencialista, segundo o qual cada indivíduo possui identidade inconfundível e singular.
O existencialismo acentuou a pessoa como única e insubstituível, defendendo a sua unicidade. E a primazia da existência sobre a essência.
Uma reação contra a progressiva despersonalização do homem do mundo surgiu como reflexo da mecanização e burocratização da vida humana em sociedade, a reflexão filosófica dos primórdios do século XX acentuou ainda mais o caráter único e, por isso mesmo, inigualável e irrepetível da pessoa individual.
De certa maneira, confirmou-se a visão estoica que reconhecia que a essência da personalidade humana não se confunde com a função ou papel que cada qual exerce na vida. A pessoa não é personagem. A chamada qualificação pessoal composta de estado civil, nacionalidade, profissão e domicílio é mera exterioridade, que nada diz da essência própria do indivíduo.
Cada qual possui uma identidade singular, inconfundível com a de outro qualquer. Por essa razão, ninguém pode experimentar, existencialmente a vida ou a morte de outrem posto que sejam realidades únicas e insubstituíveis.
Há um aparente contraste com a unicidade da pessoa humana pregada pelo existencialismo, o pensamento filosófico do século XX que coloco ênfase na realidade relacional da vida humana, implicada, de certa maneira, no inter-relacionamento sujeito/objeto.
É enfático Ortega Y Gasset, por exemplo, que aduz que a realidade foi a pessoa imersa no mundo. Eu, sou eu e minha circunstância, entendendo-se como circunstância, no sentido étimo latino, aquilo que envolve e impregna minha vida e, sem o que, seria propriamente inconcebível.
Heidegger, na mesma direção de pensamento também formulou como característica principal da pessoa, o “ser-no-mundo” (in-der-Welsein), o modo de ser no mundo.
Retomando as proposições renascentistas de Giovanni Pico Della Mirandola, o pensamento contemporâneo retoma as ideias, aparentemente circunscritas a um determinado período da história do Renascimento, ultrapassam esta perspectiva, alcançando validade atemporal.
Com Mirandola há maior força no antropocentrismo, afinal: o homem está no meio do mundo, não em sentido físico ou meramente topográfico, mas em sentido ontológico, pois a ele estão abertas as mais diversas possibilidades para sua própria realização.
Afinal quem está literalmente “no meio” do mundo, tem maior facilidade para tomar qualquer direção. A existência humana não fora limitada por Deus a um destino único ou a uma só vontade. O homem está no meio para ele possa escolher a sua direção, o seu caminho próprio para que ele se torne o que quiser ser.
E mais, o homem não está somente no mundo, mas atua sobre o mundo, é um ser livre, e a liberdade é o dom que teria recebido de Deus, árbitro e soberano de si mesmo. Por essa razão, a razão e a inteligência do homem não possuem exclusivamente um alcance ético, mas também um viés poiético (poesis, produção, fabricação). A natureza humana seria, portanto, determinada pelo próprio homem, e determinada por cada homem considerado individualmente.
Diante dessa conceituação se postula pelo auto-aperfeiçoamento, a capacidade de se tornar, pelo uso da razão, um animal celeste, próximo da máxima perfeição, e que converte o homem em ser digno e merecedor de respeito por parte dos demais homens.
A reflexão filosófica contemporânea sobre pessoa acentua a visão do conceito não como algo imutável, mas como um ser em contínua e dinâmica transformação e, portanto, seria incompleto e inacabado, evolutivo, e especialmente mutável, e assim um eterno vir-a-ser, um contínuo devir.
Heidegger salienta que o ser humano apresenta essa característica peculiar de um ser em permanente inacabamento. E, neste sentido, o homem é o único ser incompleto pela sua própria essência, posto que não tenha substância, no sentido clássico que o termo possui na filosofia grega, medieval e moderna.
Entende-se pessoa sob um viés transdisciplinar e multidisciplinar, onde se alinha as reflexões filosóficas atuais ao caráter mutável da pessoa, demonstrado nas continuidades e rupturas de sua trajetória histórica.
O conceito de pessoa deve ser investigado em seus elementos quais sejam: corpo, valor, e elementos incontornáveis, como a autonomia, alteridade e dignidade [18]. Tal concepção de pessoa seria um projeto inacabado, em construção intersubjetiva constante, uma vez que ser pessoa significa ser um fluxo de valores em eterna mudança.
Para a teoria jurídica e para o sistema jurídica de tutela de direitos humanos as consequências desse conceito de pessoa são relevantes para a finalização de um conceito de pessoa humana onde se enfoca o caráter único, insubstituível de cada ser humano, de portador de um valor próprio, e que veio demonstrar que a dignidade da pessoa existe singularmente em todo indivíduo.
A contemporânea noção de pessoa acentua como algo permanentemente mutável, como ser em contínua transformação, portanto, sendo incompleto e inacabado, naturalmente evolutivo, num vir-a-ser em contínuo devir.
Na perspectiva atual de pessoa ancora-se a noção de dignidade da pessoa humana e que coloca o desafia aos civilistas e a todo direito privado, pois é a capacidade de ver a pessoa em sua ampla dimensão ontológica, restaurando a primazia da pessoa humana, nas relações civis, relações sociais e relações essencialmente jurídica.
A defesa da dignidade humana é a condição primeira de adequação do Direito à realidade e aos fundamentos primaciais que justificam existir Estados, nações e pátrias.
Referências:
DE ALMEIDA, Rogério Tabet. Evolução histórica do conceito de pessoa – enquanto categoria ontológica. Disponível em: http://faa.edu.br/revistas/docs/RID/2013/RID_2013_16.pdf Acesso em 22.02.2016.
ASCENSÃO, José Oliveira. A dignidade da pessoa e o fundamento dos direitos humanos. Revista do Mestrado em Direito. vol. 8, n.2. São Paulo, Osasco, 2008.
COMPARATO, Fabio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2005.
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do Direito Civil. Revista de Informação Legislativa, Ano 36. Brasília. Jan/Mar de 1999.
REBOUÇAS, Marcus Vinícius Parente; PARENTE, Analice Franco Gomes. A Construção Histórica do Conceito de Pessoa Humana. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=066d47ae0c1f736b Acesso em 22.02.2016.
REALE, Miguel. Introdução à filosofia. São Paulo: Saraiva, 1989.
SARLET, Ingo. Os direitos fundamentais, a reforma do judiciário e os tratos internacionais de direitos humanos: notas em torno dos §§2º e 3º do art. 5º da CF/1988. Juris Plenum Ouro. Caxias do Sul: Plenum, n.14, jun.,/ago, 2010.
STANCIOLI, Brunello Souza. Renúncia ao exercício de direitos da personalidade: ou de como alguém se torna o que quiser. Belo Horizonte: Del Rey, 2010.
[1] Freud sempre foi contra a ideia de um eu lógico, fixo e estável. O Eu não é algo unitário, firme, seguro e autônomo, diferente de tudo mais. O que chamamos de nossa consciência é continuado para dentro, sem qualquer delimitação nítida, por uma entidade mental inconsciente denominado “Id”, região dos impulsos, afetos e desejos. Essa nova instância descoberta pela psicanálise tornou questionável a própria noção do que entendemos por eu. Para Freud, é como se o indivíduo existisse em duas dimensões: um lado consciente e outro inconsciente. “A psicanálise não vê na consciência a essência do psíquico, mas somente uma qualidade do psíquico, que pode somar-se a outras ou faltar em absoluto (…). Ser consciente é, em primeiro lugar, um termo puramente descritivo que se baseia na percepção mais imediata e segura. A experiência nos mostra logo que um elemento psíquico (por exemplo, uma percepção não é, em geral, duradouramente consciente. Pelo contrário, a consciência é um estado eminentemente transitório”.
[2] O século XX foi reconhecido como o século do trabalho. Pois o trabalho tornou-se seu aspecto central. Deixou de estar submetido aos tempos da natureza e às variáveis climáticas e, passou então, ele próprio, a reger o tempo dos homens. Deixou de ser apenas o meio de subsistência, para ser elemento constitutivo de identidade. Por essa razão, o século XX cristalizou mudanças radicais que começaram duzentos anos antes, quando se consagrou que o trabalho é o criador permanente de riquezas e nele indivíduos foram transformados em trabalhadores. Também é o século da polarização ideológica e de mudanças radicais no mundo do trabalho. Enfim, o século XX foi fundamental para a definição hierárquica da pessoa.
[3] O século IV começa com a grande disputa trinitária, quando surgiram grandes heresias orientais sobre a questão cristológica. Ário foi o promotor da primeira grande disputa. Desenvolveu uma teologia trinitária subordinacionista, segundo a qual, Deus, único e indivisível, não pode compartilhar sua essência (ousía) com outra pessoa, e por isso o Filho não pode ser da mesma substância que o Pai. Para Ário, Deus é princípio (arché) e Cristo, o Logotipos, sendo engendrado, a primeira e superior das criaturas, criado fora do tempo, de absoluta perfeição, mas não compartilhando nem da eternidade nem da essência do Pai. O Espírito é a primeira criatura engendrada pelo Filho. Desse modo, essa vertente discordava da ordem de hierarquia entre as três entidades divinas, que formam a Trindade.
[4] A disputa sobre a natureza do Cristo enfrentava duas visões distintas sobre a alma humana, uma visão platônica sobre as três classes de almas encerradas em um corpo, e uma visão aristotélica segundo a qual a alma é a substância do corpo. Estes dois pontos de vista permitiam interpretar a encarnação do Logotipos de duas maneiras distintas: a primeira uma cristologia descendente, em que o Logotipos se faz carne (Lógos-sarx); e a segunda uma cristologia ascendente, onde o homem é assumido pelo Logotipos (Lógos-ánthropos).
A Escola da Alexandria assumiu a cristologia descendente, que finalmente acabou se impondo, enquanto que a Escola da Antioquia, com o Teodoro da Mopsuéstia à cabeça, mantinha que a união entre o Logotipos e homem é uma conjunção (sináfeia), o que deixava claro que não havia mescla de naturezas. No ano 428, o imperador Teodosio II nomeia ao Nestório Patriarca de Constantinopla. Nestório, orador ardente, combateu do púlpito a popular concepção da Maria como “mãe de Deus” (theotocos); da teologia antioquena, Maria só podia ser mãe de Cristo, não do Logotipos que lhe é anterior. Cirilo de Alexandria, apoiando-se em teses próximas ao apolinarismo, mantinha que Cristo tinha uma única natureza, porém também tendo corpo e alma humanos – tese que conseguiu se impor e predominar no Concílio de Éfeso do ano 431, o que custou a condenação e deposição de Nestório.
[5] Na Idade Média, bem no seio da Igreja, devido sua influência e força, surgiu a necessidade de responder as exigências da fé. A Europa comungava da fé cristã, em sua absoluta maioria, e assim, um modelo de vida e de ensino se fazia imperioso, surgiu dessa forma a Escolástica ou escolasticismo, uma linha dentro da filosofia medieval de acentos notadamente cristãos, que deve o seu nome às artes ensinadas pelos escolásticos nas Escolas medievais. Tais artes podiam ser divididas em trivium (gramática, retórica e dialética) e quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música). Percebe-se que a educação, a cultura e a filosofia que até o início da idade das trevas possuíam traços marcadamente clássicos e helenísticos, sofreram influências da cultura judaico-cristã ao longo dos séculos posteriores à entrada do cristianismo no Império Romano. Para entender a Escolástica é preciso tentar responder ao questionamento: Como conciliar a fé e a razão? Tal questão principal é que irá atravessar todo o período de pensamento escolástico na busca de harmonizar as duas esferas (razão e fé).
O pensamento de Agostinho defenderá uma subordinação maior da razão em relação à fé, por acreditar que esta (a fé) venha com mais sucesso restaurar a condição decaída da razão humana no seu retorno às origens divinas. Por outro lado, Tomás de Aquino defenderá a autonomia da razão na busca e obtenção de respostas (por influência do aristotelismo). Entretanto, em nenhum momento Aquino negará a premissa da subordinação da razão à fé.
[6] O modalismo foi uma das heresias do século III, seus representantes são Noeto, Preassea e Sabellio que postulavam o entendimento que Deus é um só através de diversos modos de manifestação. O Filho é o Pai, enquanto que ele se manifesta em nós. Deus nele mesmo é apenas um só. Enfim era doutrina cristã que negava a existência de três pessoas em Deus, subordinando Jesus Cristo e o Espírito Santo a Deus.
[7] Tertuliano talvez fosse mais afamado por suas declarações paradoxais ou aparentemente contraditórias, tais como estas: “Deus é então especialmente grande quando ele é pequeno”. Deve-se crer de todos os modos [na morte do Filho de Deus], porque ela é absurda”.
O paradoxo de Tertuliano envolve mais do que as suas declarações. Sua contribuição principal foi uma teoria sobre a qual os estudiosos posteriores elaboraram a doutrina da Trindade. Para Tertuliano, a questão das relações entre a fé e a filosofia nem sequer se colocavam, pois entre ambas nada existia de comum. A filosofia era vista como adversária da fé, e os filósofos antigos como patriarcas dos hereges.
Para ele, de facto, fé e razão opõem-se, e podemos encontrar na filosofia a origem de todos os desvios da fé. No entanto, é forçado a reconhecer que algumas vezes os filósofos pensaram como os cristãos, e denuncia algumas influências de correntes filosóficas antigas, nomeadamente do Estoicismo.
É bem conhecida a frase “credo quia absurdum“. Apesar de ela não se encontrar nos escritos de Tertuliano, mas apenas algumas semelhantes, ela condensa bem o seu pensamento acerca da razão. Note-se que o seu significado é não apenas “creio embora seja absurdo”, mas sim “creio porque é absurdo”. A verdadeira fé tem de se opor à razão.
[8] Dentre os pensadores cristãos que promoveram a difusão das ideias de Aristóteles no Ocidente merece destaque Alberto Magno (1207-1280) que procurou inserir a razão aristotélica no conhecimento cristão medieval e, com isso, apontar a importância de se conhecer as coisas por intermédio da experimentação e do uso da razão. Em linhas gerais, a universidade medieval se caracterizava por ser uma corporação formada por mestres e alunos ( universitas magistrorum) que tinham como ofício a produção e a transmissão do conhecimento de determinadas ciências, tais como as Artes, a Teologia, a Medicina e o Direito.
[9] O desvendamento do enigma que é o homem, magnum miraculum, Santo Agostinho lhe atribuiu um status de importância do qual abstraiu inúmeras titulações como milagre, primazia, maravilha, dignidade, grandeza, quia summae naturae.
O seu conceito de pessoa correspondia ao homem total. Que o corpo se une à alma para forma e constituir o homem total e completo. O termo pessoa aqui não quer representar outro que não homem, e ambos têm o mesmo significado. A essência da pessoa era garantir as características pessoais que possibilitam a virtude, levando à formação da individualidade. Entenda-se a virtude como a eficácia do papel da alma, é a substância dotada de razão, apta a reger um corpo. Nesse sentido se distanciou de Platão que havia dividido alma e corpo. Pois na definição agostiniana a alma não está dentro de um corpo, mas está encarnada em um corpo.
[10] Para Agostinho, o homem deve ser compreendido como um ser composto, ou seja, formado por um corpo e uma alma, sendo esta a sua parte superior. Apesar de ser o corpo a parte inferior, em Agostinho só merece o nome de homem quando estão juntos os dois elementos, pois o homem não é só alma e nem só o corpo.
Apesar de se acentuar a unidade dos compostos, há grande diferença entre os dois, pois a lama recebeu o corpo como servo, portanto, o homem é uma lama racional que se utiliza de um corpo material e mortal.
Para o Bispo de Hipona, o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, mas esta imagem e semelhança no homem, não se referem apenas ao Verbo, pois este é da mesma essência que o Pai, ou seja, a imagem e semelhança de um implicam também a do outro. Portanto, a alma humana é o reflexo e a imagem de toda a Trindade.
[11] Na reflexão antropológica de Santo Tomás de Aquino há a definição do homem como animal racional que somente pode ser denominado homem quando entendido em sua totalidade, ou seja, o homem é constituído por uma alma e por um corpo, traduzindo uma união intrínseca de espírito e matéria. Nenhum dos elementos separadamente pode ser chamado de homem.
Em síntese, no pensamento tomasiano, o homem pelo seu espírito é semelhante a Deus. E, por sua própria natureza é ser espiritual, racional e também por natureza um animal social e político, diferindo dos animais.
[12] Para o pensador Boaventura Bagnoregio (1217-1274) era necessário ir além da definição do filósofo romano Boécio (480-524) para o qual a pessoa é uma substância individual de natureza racional. Consoante com o Doctor Seraphicus, o conceito de relação parece definir com maior profundidade a pessoa, por se tratar de um elemento constitutivo essencial. A pessoa se define pela substância ou pela relação. Noutros termos, na pessoa a relação não é simplesmente algo acidental, mas estrutural, e, portanto, inerente a sua própria natureza.
[13] A propósito, a aposta de Pascal foi uma proposta argumentativa de filosofia apologética criada pelo filósofo, matemático e físico francês do século XVII. Esta postula que há mais vantagem a suposição de existência de Deus do que pelo ateísmo e, que uma pessoa racional deveria pautar sua existência como se Deus existisse, mesmo que a veracidade da questão não possa ser conhecida de fato. Pascal formulou a questão em um contexto cristão e, foi publicado no seu livro póstumo Pensées (Pensamentos). Historicamente, foi um trabalho pioneiro no campo da teoria das probabilidades e marcou o primeiro uso formal da teoria da decisão, antecipou as filosofias futuras como existencialismo, pragmatismo e voluntarismo.
Segundo Pascal, o homem é um ser miserável, um “nada do ponto de vista do infinito universo, um tudo do ponto de vista do nada, isto é, um meio-termo entre o nada e o tudo”. Ele é incapaz de atingir a verdade, pois a razão humana é constantemente enganada pela imaginação ou outras “potências enganadoras”. Sua única esperança é Deus: ele tem tudo a ganhar apostando na existência Dele. É o famoso argumento da aposta.
[14] A expressão “pessoa cartesiana” é utilizada para caracterizar uma pessoa inflexível que pensa e age sempre da mesma forma. A mente cartesiana é egocêntrica e quando pensa no outro, sua avaliação é sempre sobre a vantagem que poderá obter da situação.
O dualismo cartesiano ou psicofísico, ou ainda, a dicotomia corpo-consciência é conceito segundo o qual o ser humano é um ser duplo, composto de uma substância pensante e uma substância extensa. Isso porque o corpo é uma realidade física e fisiológica e, como tal, possui massa, extensão no espaço e movimento. Como também desenvolve atividades de alimentação, digestão e, etc, sempre sujeito às leis deterministas da natureza, enquanto os fenômenos mentais não possuem a extensão e nem localização no espaço.
[15] A definição de pessoa por Locke até hoje permeia as discussões no campo da filosofia, um ser pensante, inteligente, dotado de razão e reflexão, e que pode considerar-se a si mesmo como um “eu”, ou seja, como o mesmo ser pensante, em diferentes tempos e lugares, põe em destaque as características da autoconsciência e da capacidade de reconhecer-se a si mesmo, como o mesmo eu que era antes, e que essa ação passada foi executada pelo mesmo eu que reflete, agora, sobre ela, no presente.
Locke distingue os conceitos de homem e de pessoa. Para o filósofo, o homem é o organismo biológico, é um corpo. Nascemos homens e podemos nos tornar pessoas. Da bem-sucedida combinação entre o homem e a pessoa, surge o homem moral, o homem que reflete sobre si, que se reconhece como um eu no tempo e no espaço, que é capaz de perceber-se como responsável por suas ações passadas e de refletir sobre suas ações futuras.
[16] “O ser humano está destinado, por sua razão, a estar numa sociedade com seres humanos e a se cultivar, civilizar e moralizar nela por meio das artes e das ciências”. A tese central da Fundamentação da Metafísica dos Costumes orbita em torno da liberdade instalada na subjetividade humana. Por entender todo ser humano como um ser de liberdade, Kant o desenha como um fim em si mesmo e prende todas as ramificações morais e filosóficas (essencialistas e existencialistas) em um único argumento, a saber: a pessoa humana é um ser de dignidade. Impossível negá-lo, isso seria renunciar à própria humanidade e dessignificar a própria existência significada enquanto essencialmente humana. Ora, a tradição desde Agostinho de Hipona já asseverava: é melhor saber que se vive do que simplesmente viver.
[17] Pelo exposto, em Kant, o que caracteriza a pessoa humana, tanto no aspecto prático quanto no pragmático, é a capacidade de agir livremente, ou seja, o homem é o único ser na natureza capaz de estabelecer um fim para si e ao mesmo tempo fazer da felicidade de outrem o seu próprio fim.
[18] Nesse novo arquétipo civilizatório averba-se a primazia material dos valores espirituais da contemporaneidade, o que endossa a visão pós-positivista onde dogmaticamente a pessoa humana, por sua dignidade imanente, é reconhecida como realidade axiológica e teleológica fundamental de per si, o que justifica a irradiação do princípio da dignidade humana por todo o corpus juris do Estado atual. Nas lições de Ingo Sarlet ainda temos in litteris: (…) o reconhecimento e proteção da dignidade da pessoa pelo Direito resulta justamente de toda uma evolução do pensamento a respeito do que significa este ser humano e de que é a compreensão do que é ser pessoa e de quais os valores que lhe são inerentes que acaba por influenciar ou mesmo determinar o modo pelo qual o Direito reconhece e protege esta dignidade”.