Alimentos ex delicto
Maria Berenice Dias*
1 – Consagra o art. 159 do CC[1] a teoria subjetiva da responsabilidade civil, que se assenta no princípio fundamental da culpa. O homicídio, decorrente da prática de ato ilícito, enseja obrigação indenizatória que, nos termos do art. 1.537 do CC, consiste (I) no pagamento das despesas com o tratamento da vítima, seu funeral, o luto da família e (II) na prestação de alimentos às pessoas a quem o defunto os devia.
A obrigação de pensionamento de origem delitual, como lembra Sérgio Gilberto Porto,[2] não tem limites preestabelecidos como os alimentos resultantes da relação de parentesco. É um benefício que se paga a título de perdas e danos decorrente de obrigação de caráter indenizatório, e não assistencial. A expressão pensão alimentar, segundo Mario Moacyr Porto, não desfigura a natureza indenizatória da obrigação. Não é o nome que define a natureza de uma obrigação, o predicado de um direito, a índole de uma instituição. A expressão ‘alimentos’, que a lei usa, significa apenas que, no pagamento da indenização, se deverá seguir o critério, a forma, o processo empregado para o implemento de uma obrigação alimentar. É uma referência, servindo de base para o cálculo da indenização.[3]
O pressuposto para a exigibilidade da obrigação alimentar é a identificação de que, na oportunidade do perecimento da vítima, esta tinha o dever de sustento ou procedia ao pagamento de pensão a alguém, encargo que passa à responsabilidade do causador de sua morte. Tal fato, porém, não determina a aplicação subsidiária dos regramentos do Direito de Família nem rotula a indenização como alimentar. Um exemplo de que a indenização não é de alimentos é a definitividade em que é concedida. Também a reciprocidade não se verifica nesta sede, pois eventual alteração de riqueza do obrigado não o torna credor de alimentos.
A quantificação do encargo não guarda observância com o parâmetro necessidade-possibilidade, binômio que rege a fixação dos alimentos devidos nas relações de família. Ao se estipular a obrigação alimentar ex delicto, não se perquirem as condições econômicas pessoais do beneficiário, pois faz jus aos alimentos mesmo quem deles não necessite. O balizamento é feito exclusivamente atentando-se nas possibilidades do obrigado.
2 – Fixa a lei os limites subjetivos e objetivos dos danos emergentes e lucros cessantes, sem estipulação de termo ad quem para a cessação da obrigação indenizatória. Somente quando se trata de alimentos decorrentes de lesões corporais é que há uma previsão de término do encargo, qual seja o fim da convalescença.
Para a indenização decorrente do crime de homicídio, limitação temporal existia na alínea segunda do art. 912 do estatuto processual de 1939: Se a vítima falecer em conseqüência do ato ilícito, prestará o responsável alimentos às pessoas a quem ela os devia, levada em conta a duração provável da vida da vítima. Dito balizador, por não está reproduzido na lei atual, não mais vigorando. No entanto, afastando-se da expressão legal, a jurisprudência vem-se inclinando em prefixar o fim da obrigação alimentícia à viúva da vítima fatal em caso de eventual “remaridação”.[4]
Mais recentemente, em julgados de que tive oportunidade de participar,[5] essa posição, apesar de rechaçada pela maioria, foi sustentada no voto vencido. Em ambos os julgamentos, porém, foi afastada somente a previsão a priori do término, mas resguardada a possibilidade de oportunamente ser posta a questão em causa. Estriba-se a restrição no reconhecimento do caráter alimentar da indenização, apesar de o STF haver se baseado lição de Orozimbo Nonato: A alusão a alimentos contida no inciso II do artigo 1.537 do Código Civil é simples ponto de referência para o cálculo da indenização e para a determinação dos beneficiários e, sendo critério de liquidação de obrigação de indenizar, não se destina a transformar a natureza dessa obrigação, metamorfoseando-a em outra, de caráter diverso, como é a de prestar alimentos.[6]
José de Aguiar Dias diz que a expressão legal não permite concluir que a indenização seja concedida como pensão alimentar. A referência a alimentos não tem, em nosso sistema de reparações, a influência fundamental que sempre se lhe tem atribuído. Deve ser tida como simples indicação subsidiária, para apontar os beneficiários da indenização ou para coibir abusos na liquidação.[7] Discorrendo longamente sobre as circunstâncias que não permitem se reconheça esse caráter à indenização, refere: ainda que alguém substitua o prestador de alimentos, até com vantagem, nem assim se aceita este fato como elisivo da obrigação de indenizar.[8]
Categórico sobre a questão é Hans Fischer, ao proclamar que a mulher que recebe uma pensão como reparação da morte do marido, dela não pode ser privada pelo fato de contrair segundas núpcias.[9]
3 – É de lembrar que, mesmo em sede de alimentos, nenhuma norma jurídica, explícita ou implícita, condiciona a subsistência do direito a alimentos à abstinência sexual da mulher. Continua o crédito alimentar a despeito de reparos que se oponham à sua vida afetiva.
Pontes de Miranda, o nosso jurista maior, muito bem se posiciona sobre o tema: Certa jurisprudência tem decidido que a mulher perde a pensão alimentícia se passa a viver com outro homem, ou se tem algum amante, ou se lhe provam relações sexuais (4ª Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo, 4 de abril de 1949, RT, 180, 348). Sem razão. O dever de fidelidade é ligado à sociedade conjugal, que o desquite dissolve; e não ao vínculo. Não mais tem o marido legitimação para investigar a vida da mulher; passa à frente o direito a velar a intimidade… Os julgados que permitiram esmiuçar-se a vida da mulher desquitada, inocente ao desquitar-se, não têm qualquer apoio em lei e ofendem direito de personalidade. São juízes que resolvem questões do Século XX, de que procede o CC, que respeitou a igualdade entre os cônjuges, com argumentos aos sistemas jurídicos já superados.[10]
Assim, descabe verdadeira migração normativa, com o só fito de inibir o uso da liberdade sexual quando a beneficiária da indenização é a mulher. A responsabilidade decorrente da prática de ato ilícito tem apenas a forma de pensionamento alimentar, calcula-se como os alimentos, nada mais. A eventual circunstância de a alimentada vir a contrair novas núpcias existe exclusivamente pelo seu estado de viuvez, que ocorreu por culpa do autor do homicídio de seu par.
De outro lado, não há por que condicionar o pagamento à provável necessidade da beneficiária. O dano não é elemento integrante do ato ilícito, bastando a violação do direito para impor a obrigação de indenizar.[11] A norma especial contida no art. 29 da Lei do Divórcio, que faz cessar a pensão pela ocorrência do casamento, não pode ser recepcionada como causa extintiva de obrigação de natureza delitual, com o que se estaria a brindar o responsável com excludente por ele indiretamente provocado.
4 – Prevê a lei a possibilidade de concessão de alimentos pela ruptura do casamento com caráter reparatório, hipótese regrada no art. 19 da Lei do Divórcio, ao atribuir ao cônjuge responsável pela separação o ônus do pagamento da pensão. Trata-se, como ressalta a doutrina, igualmente, de indenização por ato ilícito que se cumpre sob a forma de pensionamento.
É de lembrar que os juristas defendem a existência de direito indenizatório tão-só pelo presumível prejuízo que resultou da dissolução anormal e culposa da sociedade conjugal.[12] Se o rompimento foi causado por terceiros, a obrigação lhes fica transferida, mas não com o mesmo caráter. A pensão paga como cônjuge corresponde a indenização pelo rompimento do casamento. Se a separação ocorreu por culpa do marido, este paga a pensão nos termos da Lei do Divórcio. No entanto, se o fim da relação ocorreu por culpa de outrem, ou seja, pela morte do par, causada por terceiro, este assume a obrigação de pagar a indenização. Só que nessa hipótese o pagamento dos alimentos decorre da prática do homicídio, afastando-se das regras do direito alimentar decorrente do fim do casamento.
5 – Desnecessário lembrar que o casamento não é só um modo de garantir subsistência, não tendo a mulher, como único “benefício”, a obtenção de direito a ser alimentada. Também, e principalmente, matrimônio é o estabelecimento de um vínculo afetivo entre duas pessoas, cujo convívio foi ceifado por fato culposo imputável a alguém.
Nas circunstâncias atuais, não mais vigora a presunção de que o marido provê o sustento da esposa. O casamento deixou, felizmente, de ser fonte de sobrevivência da mulher, tornando-se um vínculo de companheirismo e comunhão de afeto. Essa nova concepção, que enseja inclusive maior respeito mútuo, está diretamente ligada à própria busca do reconhecimento da igualdade entre os cônjuges. A única forma de haver absoluta respeitabilidade entre pares é a sua total independência, sem qualquer vínculo de subordinação, em nenhum nível, inclusive no aspecto econômico.
Esse é o modelo da sociedade conjugal contemporânea, a ponto de estar proclamada na atual Carta Constitucional, que, ao estabelecer a plena igualdade dos gêneros masculino e feminino, traçou um perfil de modernidade. Assim, não se pode presumir que um casamento se baseie na dependência econômica da mulher como pressuposto da união, permanecendo a carga ideológica de que o encargo alimentar é exclusivo do cônjuge varão, sugerindo uma posição de dependência econômica da mulher.
Hostil e conservadora se apresenta a única exceção estabelecida nos julgamentos supra-referidos, pois muitas outras situações podem levar à independência econômica e mereceriam ser previamente elencadas, sob pena de se visualizar um certo ranço preconceituoso a ressalva de uma única causa extintiva. Assim, o recebimento de uma herança, o acerto de alguma aposta lotérica e tantas outras hipóteses não tão lícitas levariam a presumir a cessação da necessidade de pensionamento.
Como refere Aguiar Dias: Ora, na jurisprudência brasileira, nossa busca minuciosa não encontrou um só caso em que o juiz admitisse a variabilidade da indenização conforme a mudança dos haveres do credor.[13]
Se, com a morte do cônjuge, resta dissolvida a sociedade conjugal, deixa de existir dever de fidelidade, e a previsão de término do direito configura verdadeira tentativa de impor a castidade até após a morte do par. Essa solução revela uma forte carga ideológica e uma posição discriminatória contra a liberdade da mulher, sem lembrar que emergiram novos valores sociais referentes à sua dignidade, autonomia, liberdade e privacidade na área da sexualidade. Dita preocupação da jurisprudência não diz com a necessidade, mas com a conduta moral da mulher, revelando-se a honestidade como condição para persistir o pensionamento, condicionando-o direta e exclusivamente à abstinência sexual.
Já tive oportunidade de afirmar:[14] A vida sexual ou afetiva é área de indevassável intimidade. A castidade não integra o suporte fático do direito, não se podendo perquirir o perfil moral do necessitado. O direito a alimentos não é uma recompensa a virtudes morais, e tem natureza ético-social, e não ético-sexual.
(Artigo publicado na Revista AJURIS, nº 64, pp. 287/291, 1995;
[1] A referência é ao Código Civil de 1916 com correspondência nos art. 186 e 927 do Código Civil de 2002.
[2] PORTO, Sérgio Gilberto. Doutrina e Prática dos Alimentos. Rio de Janeiro: Aide, 1991. p. 15
[3] PORTO, Mario Moacyr. Ação de Responsabilidade Civil entre Mulher e Marido. Ajuris, n. 28, p. 177.
[4] Revista Julgados do Tribunal de Alçada do RS, v. 4/145, 18/304 e 24/237.
[5] Apelação Cível nº 192 208 937 e Embargos Infringentes nº 193 086 857, do qual fui Relatora.
[6] ALVES, José Carlos Moreira. Questões de Direito Civil na Jurisprudência mais Recente do STF. Revista Jurídica, p. 19, 1993/1994.
[7] DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1973. v. 2. p. 397.
[8] Ibid., p.396.
[9] FISCHER, Hans. A Reparação dos Danos no Direito Civil. Tradução de Férrer de Almeida. São Paulo, 1938, apud José de Aguiar Dias, op. cit., p. 397, nota 7.
[10] MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971. t. VIII, p. 92.
[11] PORTO, Mário Moacyr. O Art. 129 do Código Civil. Ajuris, v. 36, p. 143.
[12] COSTA, Moacir Lobo da. Desquite por Mútuo Consentimento. Revista dos Tribunais, 189, p. 610.
[13] DIAS, ob. cit., p. 396, nota 7.
[14] DIAS, Maria Berenice. A Mulher e o Poder Judiciário. Jornal do Comércio, Porto Alegre, 01 ago. 1994.
* Advogada especializada em Direito Homoafetivo, Famílias e Sucessões. Ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do RS. Vice-Presidente Nacional do IBDFAM
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