1) INTRODUÇÃO
Como é cediço, no Brasil, ocorrendo a morte (aberta a sucessão), a herança transmite-se de forma automática aos herdeiros legítimos e testamentários (artigo 1.784 do Código Civil). Nisso consiste o Princípio da “Saisine”, segundo o qual o próprio de cujus transmite ao seu sucessor a propriedade e a posse da herança.
Excluir o herdeiro da sucessão significa tirar dele a vocação hereditária, em outras palavras, é o mesmo que lhe arrancar um direito adquirido em decorrência da “Saisine”.
A exclusão poderá ocorrer de duas formas: 1) pela indignidade, em que se presume existir a manifestação de vontade do autor da herança que, em tese, excluiria o herdeiro se tivesse feito declaração última de vontade; ou 2) pela deserdação, na qual a manifestação de vontade de excluir é compulsória, ou seja, deve obrigatoriamente ser manifestada pelo autor da herança antes de morrer. Ressalte-se, porém, que a deserdação não será abordada no presente trabalho.
A exclusão por indignidade é uma sanção civil, por ter o sucessor praticado algum ato ilícito contra: a) a vida do autor da herança, de seu descendente, ascendente, cônjuge ou companheiro; b) a honra do falecido, ou de seu cônjuge ou companheiro; ou c) a liberdade do de cujus de trazer regras para o direito sucessório.
2) FUNDAMENTO DA EXCLUSÃO POR INDIGNIDADE
No que tange à exclusão do herdeiro ou legatário por indignidade, ensina o eminente doutrinador Carlos Roberto Gonçalves[1], in litteris:
“A exclusão da sucessão por indignidade pressupõe: a) seja o herdeiro ou legatário incurso nos casos legais de indignidade; b) não tenha sido ele reabilitado pelo de cujus; e c) haja uma sentença declaratória da indignidade.”
Assim, a lei outorgou efeitos especiais aos herdeiros necessários que somente poderão ser privados da herança do sucedido em razão da justa causa da indignidade, caso contrário essa privação é defesa por lei.
Urge salientar que a previsão do legislador consistente em tirar, do herdeiro ou legatário, os direitos inerentes à herança soa bastante justa, posto que não seria plausível que alguém que praticara atos ofensivos ao autor da herança ou à pessoa de sua família recebesse bens do acervo hereditário.
No mesmo sentido é o entendimento de Maria Helena Diniz[2] que, utilizando-se dos pensamentos de Antonio Cicu e Ferri, ratifica sua opinião:
“Antonio Cicu e Ferri, dentre outros, ressaltam, acertadamente, o fundamento ético da indignidade, pois repugna à ordem jurídica como à moral que alguém venha auferir vantagem do patrimônio da pessoa que ofendeu. Deveras, a sucessão hereditária baseia-se na afeição real ou presumida do falecido para com o herdeiro ou legatário; se este último, por atos inequívocos, demonstrar ingratidão, desapreço ou ausência de sentimento afetivo para com o de cujus, nada mais justo do que privá-lo do que lhe caberia em razão do óbito do autor da herança.”
Destarte se aquele que figura como herdeiro ou legatário do autor da herança tem como único objetivo apropriar-se de seu patrimônio, atentando contra os bens mais preciosos que o último possui, quais sejam sua vida, honra e liberdade de testar, manifesto está seu intuito mercenário, sem qualquer ligação afetiva devendo, indubitavelmente, ser privado da herança que receberia se sua ganância não saltasse aos olhos, fazendo-o praticar atos criminosos e reprováveis, que vão de encontro à moral, aos bons costumes e principalmente ao ordenamento jurídico.
3) CAUSAS DE EXCLUSÃO POR INDIGNIDADE
Os incisos I, II, e III, do artigo 1.814 do Código Civil[3] trazem, de maneira taxativa, os atos ofensivos que ensejam a indignidade, verbi gratia:
“Art. 1.814. São excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários:
I – que houverem sido autores, co-autores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente;
II – que houverem acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrerem em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro;
III – que, por violência ou meios fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade.”
Far-se-á agora uma análise pormenorizada de cada causa caracterizadora da indignidade, que deverá ser comprovada em sede ação específica. Vejamos.
3.1) ATENTADO CONTRA A VIDA
Consoante inciso I, do dispositivo supracitado, será considerado indigno aquele que atentar ou houver sido cúmplice de homicídio contra a vida do autor da herança, de seu descendente, ascendente, cônjuge ou companheiro. Ressalte-se que referido atentado contra a vida deverá ser perpetrado em sua forma dolosa, seja ele tentado ou consumado, não abrangendo, portanto, o homicídio culposo.
Saliente-se que o colateral não entra no rol dos familiares daquele cuja sucessão se referir, assim, o herdeiro ou legatário que tirar a vida do irmão do autor da herança, seja dolosa ou culposamente, não será considerado indigno, não podendo consequentemente ser privado do acervo hereditário.
É de grande valia observar que a lei não fala em crime de homicídio; assim, para a caracterização de referida causa de indignidade não há necessidade de sentença penal condenatória. E mais, a lesão corporal não leva à exclusão da sucessão, pois nesse caso também não existe previsão legal.
No Brasil, a responsabilidade civil é independente da penal. Assim, a condenação criminal não extinguirá a ação no cível, mas fará prova contundente e, ainda, se houver a condenação pelo crime de homicídio doloso, tentado ou consumado, tecnicamente, poderá haver a absolvição no juízo cível, pois aqui também há produção de provas.
A sentença penal condenatória somente fará coisa julgada no cível se, aqui, não envolver prejuízo. Porém, a sentença penal absolutória faz coisa julgada no juízo cível.
Nesse sentido, ensina o eminente doutrinador Washington de Barros Monteiro[4]:
“No direito pátrio, porém, o reconhecimento da indignidade não depende de prévia condenação do indigno no juízo criminal. Não há interdependência entre as duas jurisdições; a prova da indignidade pode ser produzida no juízo cível. Mas, se há sentença no juízo criminal, absolvendo o réu, por não lhe ser imputável o fato, ou por não ter este existido, não mais será possível questionar a respeito no juízo cível, de acordo com o art. 935 do Código Civil de 2002. A sentença criminal produz efeito de coisa julgada e lícito não será reconhecer a indignidade no juízo cível.”
Portanto, como bem salientado por Carlos Roberto Gonçalves[5], ao citar provérbio alemão: “mão ensanguentada não apanha herança (blutige hand nimmt kein erbe).”
3.2) ATENTADO CONTRA A HONRA
O presente caso de indignidade pode ser perpetrado de duas formas: a) através da imputação, em juízo, de fato criminoso ao autor da herança, sabendo que este é inocente, ou seja, praticar o crime de denunciação caluniosa (previsto no artigo 399 do Código Penal) contra a pessoa cuja sucessão se tratar; ou b) praticar qualquer crime contra a honra do autor da herança, de seu cônjuge ou companheiro.
No primeiro caso, a jurisprudência dominante exige que a denunciação caluniosa tenha sido levada a termo em juízo criminal, porém a lei não exige a condenação criminal daquele que praticou a denunciação caluniosa.
Já, relativamente à prática de crime contra a honra do autor da herança, de seu cônjuge ou companheiro – calúnia, difamação ou injúria (artigos 138, 139 e 140 do Código Penal; respectivamente) – a prova da condenação no juízo criminal é de suma importância.
3.3) ATENTADO CONTRA A LIBERDADE DE TESTAR
Atentar contra a liberdade de testar diz respeito somente ao autor da herança, ou seja, é fazer com que a liberdade que este tem de trazer regras para direito sucessório seja inibida ou obstada.
Nas palavras de Carlos Roberto Gonçalves[6], inibir ou obstar o autor da herança de dispor de seus bens significa:
“Inibir é cercear a liberdade de disposição de bens. Obstar corresponde a impedir tal disposição.”
Ressalte-se que, em qualquer dos casos, para que o herdeiro ou legatário seja considerado indigno é necessário que o ato de inibir ou obstar seja perpetrado por meio de violência (ação física) ou qualquer meio fraudulento (ação psicológica). Em não sendo comprovada tal violência ou fraude, a indignidade será afastada.
4) SENTENÇA DECLARATÓRIA DA INDIGNIDADE
Em qualquer dos casos vistos anteriormente, de exclusão do herdeiro necessário por indignidade, indispensável que o interessado à sucessão ajuíze uma ação específica para a exclusão do indigno, que será ou não declarada pelo juiz na sentença (ação própria no juízo cível). Conforme prescreve o artigo 1.815 do Código Civil[7]:
“Art. 1.815. A exclusão do herdeiro ou legatário, em qualquer desses casos de indignidade, será declarada por sentença.”
Nesse diapasão, ensina Silvio Rodrigues[8]:
“A exclusão do indigno não deriva apenas do ato de ingratidão. A fim de assegurar seu direito sucessório, o art. 1.815 do Código Civil determina que a exclusão deverá ser feita por meio de ação, só se caracterizando a indignidade se a sentença final o proclamar.”
Assim, nem mesmo o herdeiro, em tese, indigno pode ter a iniciativa da ação, uma vez que a parte legítima ativa dessa ação ordinária é o interessado na sucessão; o indigno, por sua vez, será a parte com legitimação passiva. Porém, se este vier a falecer antes do autor da herança, a ação específica de indignidade não mais terá razão de ser, posto que não chegou a adquirir a vocação hereditária.
O parágrafo único do artigo retrotranscrito prescreve que o prazo para a propositura da ação de indignidade é de 04 (quatro) anos, contado da abertura da sucessão. Ressalte-se que esse prazo é decadencial.
Por fim, deve ser salientado que na indignidade, aquele considerado indigno adquire os bens da herança conservando-os até que ocorra o trânsito em julgado da sentença que declarou sua exclusão da sucessão hereditária. Com isso, se o imputado vier a falecer durante o processo, a ação será extinta, haja vista que os efeitos da exclusão são pessoais e retroagem à data em que a sucessão foi aberta, não podendo passar da pessoa do indigno.
Para aclarar referida questão, importante transcrever ensinamento do escritor jurídico Carlos Roberto Gonçalves[9]:
“Morrendo o réu no curso do processo, extingue-se a ação, por efeito do princípio da personalidade da culpa e da pena. A morte do indigno acarreta a transmissão dos bens herdados, dos quais vinha desfrutando desde o falecimento do de cujus, aos seus próprios sucessores, visto que a indignidade só produziria efeitos depois de declarada por sentença, e tal pena não pode ir além da pessoa do criminoso.”
Vale, ainda, ressaltar que na indignidade a situação do excluído é equiparada à do herdeiro premorto, ou seja, mesmo estando vivo será tido como se tivesse morrido antes da abertura da sucessão. Desse modo, sua parte na herança será passada aos seus descendentes (ex: filhos), que não podem receber nenhum tipo de punição em decorrência dos atos praticados, única e exclusivamente, pelo indigno.
5) REABILITAÇÃO DO INDIGNO
Relativamente ao perdão do indigno, prescreve o artigo 1.818, caput, do Código Civil[10]:
“Art. 1.818. Aquele que incorreu em atos que determinem a exclusão da herança será admitido a suceder, se o ofendido o tiver expressamente reabilitado em testamento, ou em outro ato autêntico.”
Depreende-se de referido dispositivo que o herdeiro necessário que praticou algum dos atos de indignidade vistos anteriormente, poderá ser perdoado pelo autor da herança e, consequentemente, não ser privado do acervo hereditário.
Assim, se um filho atentar, dolosamente, contra a vida de seu pai, este poderá reabilitá-lo, desde que o faça de forma expressa em testamento ou em outro ato autêntico (escritura pública). Ressalte-se que o perdão, uma vez concedido, torna-se irretratável.
Nesse sentido ensina Sílvio de Salvo Venosa[11]:
“…o de cujus, ofendido por uma das causas de indignidade, é o primeiro e melhor juiz para saber se a pena deve ser aplicada. Daí por que pode ele perdoar o ofensor. Esse perdão, já por nós aqui acenado, é ato formal e privativo da vítima. Só o próprio ofendido pode fazê-lo. Ninguém o fará por ele: é ato personalíssimo. Assim, o perdão pode ter como veículo o testamento, que é ato personalíssimo por excelência, além de ato autêntico, citado pela lei (art. 1.818).”
Outra questão relevante é trazida pelo parágrafo único, do artigo 1.818 do Código Civil, o qual aduz que se não houver reabilitação expressa do indigno pelo ofendido, que o contemplou em seu testamento, se o último ao testar já conhecia a causa da indignidade, o primeiro poderá suceder no limite do disposto em testamento.
Deve ser salientado que esse dispositivo não cria perdão tácito, pois aqui o testador deixa algo para o indigno por força testamentária, sabendo, por exemplo, que aquele atentara contra sua vida. Isso ocorre porque a sentença de indignidade irá atingir somente a lei.
Destarte, referido benefício é conferido ao testador pela lei para que possa atacar a indignidade, deixando algo para o indigno.
6) CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, restou claro que a lei não é conivente com aquele que, para fazer parte da sucessão hereditária, é capaz de praticar ato reprovável contra o autor da herança ou seus familiares. Assim, a razão moral da exclusão do indigno da parte do acervo hereditário que lhe caberia, dispensa qualquer tipo de comentário, sendo por si só, explicativa.
7) BIBLIOGRAFIA
DINIZ. Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro – Direito das Sucessões. Editora Saraiva. Volume 6. 23ª Edição. 2009.
GONÇALVES. Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro – Direito das Sucessões. Editora Saraiva. Volume 7. 4ª Edição. 2010.
MONTEIRO. Washington de Barros. Curso de Direito Civil – Direito das Sucessões. Editora Saraiva. Volume 6. 35ª Edição. 2006.
RODRIGUES. Silvio. Direito Civil – Direito das Sucessões. Editora Saraiva. Volume 7. 26ª Edição. 2006.
VADE MECUM. Obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Antonio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Lívia Céspedes. 7° edição atualizada e ampliada. 2009.
VENOSA. Sílvio de Salvo. Direito Civil – Direito das Sucessões. Editora Atlas. Volume VII. 9ª Edição. 2009.
*Daniela Intrabartolo – Estudante do 4° ano do Curso de Direito da Universidade de Ribeirão Preto – UNAERP
[1] GONÇALVES. Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro – Direito das Sucessões. Editora Saraiva. Volume 7. 4ª Edição. 2010. Página 113.
[2] DINIZ. Maria Helena. Curso de Direito Civil Bra
sileiro – Direito das Sucessões. Editora Saraiva.Volume 6. 23ª Edição. 2009. Página 50.
[3]VADE MECUM. Obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Antonio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Lívia Céspedes. 7° edição atualizada e ampliada. 2009. Página 292.
[4] MONTEIRO. Washington de Barros. Curso de Direito Civil – Direito das Sucessões. Editora Saraiva. Volume 6. 35ª Edição. 2006. Página 64.
[5] GONÇALVES. Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro – Direito das Sucessões. Editora Saraiva. Volume 7. 4ª Edição. 2010. Página 114.
[6] GONÇALVES. Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro – Direito das Sucessões. Editora Saraiva. Volume 7. 4ª Edição. 2010. Página 119.
[7] VADE MECUM. Obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Antonio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Lívia Céspedes. 7° edição atualizada e ampliada. 2009. Página 292.
[8] RODRIGUES. Silvio. Direito Civil – Direito das Sucessões. Editora Saraiva. Volume 7. 26ª Edição. 2006. Página 70.
[9] GONÇALVES. Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro – Direito das Sucessões. Editora Saraiva. Volume 7. 4ª Edição. 2010. Página 129.
[10] VADE MECUM. Obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Antonio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Lívia Céspedes. 7° edição atualizada e ampliada. 2009. Página 292.
[11] VENOSA. Sívio de Salvo. Direito Civil – Direito das Sucessões. Editora Atlas. Volume VII. 9ª Edição. 2009. Página 57.