Direito Civil

A adoção do patronímico em razão da filiação por afetividade e o reconhecimento do direito de igualdade aos filhos por afetividade

A adoção do patronímico em razão da filiação por afetividade e o reconhecimento do direito de igualdade aos filhos por afetividade

 

 

Ravênia Márcia de Oliveira Leite *

 

 

A Lei n.º 11.924/2009 alterou o art. 57 da Lei no 6.015, de 31 de dezembro de 1973, o qual passa a vigorar acrescido do seguinte § 8º:   O enteado ou a enteada, havendo motivo ponderável e na forma dos §§ 2º e 7º deste artigo, poderá requerer ao juiz competente que, no registro de nascimento, seja averbado o nome de família de seu padrasto ou de sua madrasta, desde que haja expressa concordância destes, sem prejuízo de seus apelidos de família.” (NR).

 

A jurisprudência e doutrina pátria, timidamente, vem ampliando o conceito de família, não apenas no que tange a consanguinidade, como também, no que se refere às relações de afeto. Sem dúvida, a supra citada alteração legislativa demonstra a intenção do legislador de adotar, por completo, o que reza a constituição, no que tange a igualdade formal e material, entre filhos, de qualquer origem.

 

Ora, nesse ponto, não podemos falar somente nos filhos oriundos das relações de casamento, por adoção ou consanguinidade. Deve-se reconhecer que em razão do atual estágio de evolução da sociedade, construiu-se, ao longo dos tempos, novas espécies de famílias formadas pela mãe ou pai e seus filhos, mas também, pelos padrastos e/ou madrastas, formando um núcleo familiar que deve ser reconhecido pela lei e conceder os direitos previstos na Constituição Federal e legislação especial, também, aos filhos por afetividade.

 

Em nossos tribunais pode-se verificar algumas decisões no sentindo de não deixar ao desamparo os filhos por afetividade. Senão vejamos:

 

PENSÃO – FILHA DE CRIAÇÃO DE MILITAR – DIVISÃO DO BENEFÍCIO. Comprovado, mediante justificação judicial, condição de filha de criação do instituidor militar, e sendo esta equiparada a filha adotiva, a apelante faz jus ao recebimento da pensão em igualdade de condições com sua mãe. (TRF-2ª Região – Ap. Cív. 910210227-7-RJ – Acórdão COAD 61938 – 1ª Turma – Rel.ª Juíza Lana Regueira – Publ. em 18-3-1993)

 

PENSÃO – MÃE DE CRIAÇÃO – DEFERIMENTO. O artigo 147, III, da Lei Complementar 180/78, ao se referir a “pais” não tem apenas um sentido biológico. Restrito, portanto. A expressão contida na lei encerra um sentido finalístico, teleológico. Abarca a palavra “pais”, sem dúvida alguma, também aqueles que criaram, como se filho fosse, o servidor falecido. Afinal, mãe não é quem deu alguém à luz. Mas sim quem cria uma criança como se filho seu fosse. É sabença popular. (TJ-SP – Ap. Cív. 133.401-5/4 – Acórdão COAD 108382 – 5ª Câm. de Direito Público – Rel. Des. Alberto Gentil – Julg. em 4-9-2003)

 

FILHO DE CRIAÇÃO – ADOÇÃO – SOCIOAFETIVIDADE. No que tange à filiação, para que uma situação de fato seja considerada como realidade social (socioafetividade), é necessário que esteja efetivamente consolidada. A posse do estado de filho liga-se à finalidade de trazer para o mundo jurídico uma verdade social. Diante do caso concreto, restará ao juiz o mister de julgar a ocorrência ou não de posse de estado, revelando quem efetivamente são os pais. (…). (TJ-RS – Ap. Cív. 70007016710 – 8ª Câm. Cív. – Rel. Des. Rui Portanova, – Julg. em 13-11-2003)

 

Segundo Paulo Luiz Netto Lôbo “o princípio da afetividade tem fundamento constitucional; não é petição de princípio, nem fato exclusivamente sociológico ou psicológico. No que respeita aos filhos, a evolução dos valores da civilização ocidental levou à progressiva superação dos fatores de discriminação, entre eles. Projetou-se, no campo jurídico-constitucional, a afirmação da natureza da família como grupo social fundado essencialmente nos laços de afetividade. Encontra-se na Constituição Federal brasileira três fundamentos essenciais do princípio da afetividade, constitutivos dessa aguda evolução social da família, máxime durante as últimas décadas do Século XX: a) todos os filhos são iguais, independentemente de sua origem (art. 227, § 6º); b) a adoção, como escolha afetiva, alçou-se integralmente ao plano da igualdade de direitos (art. 227, §§ 5º e 6º); c) a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, incluindo-se os adotivos, tem a mesma dignidade de família constitucionalmente protegida (art. 226, § 4º).”

 

Continua o ilustre jurisconsulto, em estudo que não demanda reparos:  “a filiação biológica era nitidamente recortada entre filhos legítimos e ilegítimos, a demonstrar que a origem genética nunca foi, rigorosamente, a essência das relações familiares. A Constituição não tutela apenas a família matrimonializada e não estabelece mais distinção entre filhos biológicos e adotivos. As pessoas que se unem em comunhão de afeto, não podendo ou não querendo ter filhos, é família  protegida pela Constituição. A igualdade entre filhos biológicos e adotivos implodiu o fundamento da filiação na origem genética. A concepção de família, a partir de um único pai ou mãe e seus filhos, eleva-os à mesma dignidade da família matrimonializada. O que há de comum nessa concepção plural de família e filiação é a relação entre eles fundada no afeto.”

 

Segundo o ilustre Luis Roberto Barroso, no que que se refere a relações afetivas, “em meio a esses princípios e direitos fundamentais encontram-se alguns que são decisivos para o enquadramento ético e jurídico da questão aqui enfrentada. Em primeiro lugar, o mandamento magno da igualdade, a virtude soberana, manifestado em inúmeras disposições constitucionais. Ao lado dele, o princípio da liberdade, que se colhe nos princípios da livre-iniciativa (cuja dimensão, relembre-se, não é apenas a de liberdade econômica) e da legalidade, bem como em referências expressas em todo o texto constitucional. Acrescente-se, ainda, o princípio da dignidade da pessoa humana, que ilumina o núcleo essencial dos direitos fundamentais e do qual se irradiam, também, na esfera privada, os direitos da personalidade, tanto na sua versão de integridade física como moral. E, por fim, o princípio da segurança jurídica, que procura dar ao Direito previsibilidade e estabilidade, bem como proteção à confiança legítima dos indivíduos.”

 

Acrescenta, de maneira irretocável, o ilustre jurista acima citado, que “todas as pessoas, a despeito de sua origem e de suas características pessoais, têm o direito de desfrutar da proteção jurídica que estes princípios lhes outorgam. Vale dizer: de serem livres e iguais, de desenvolver a plenitude de sua personalidade e de estabelecerem relações pessoais com um regime jurídico definido e justo. E o Estado, por sua vez, tem o dever jurídico de promover esses valores, não apenas como uma satisfação dos interesses legítimos dos beneficiários diretos, como também para assegurar a toda a sociedade, reflexamente, um patamar de elevação política, ética e social.”, reconhecendo, o sentido aristotélico do princípio da igualdade.

 

Os laços de afeto e de solidariedade derivam também das relações afetivas, no dizer do poeta, “pais por natureza, por amor e por opção”, mas, no sentido jurídico, deve-se elevar o tratamento dado a tal entidade familiar, com vistas a reconhecer e proteger, pais e filhos fruto do afeto, em seus direitos e deveres.

 

O Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul – José Carlos Teixeira Giorgis – no julgamento da Apelação Civil 70008795775 inovou ao decidir que “a paternidade sociológica é um ato de opção, fundando-se na liberdade de escolha de quem ama e tem afeto, o que não acontece, às vezes, com quem apenas é a fonte geratriz. Embora o ideal seja a concentração entre as paternidades jurídica, biológica e sócio-afetiva, o reconhecimento da última não significa o desapreço à biologização, mas atenção aos novos paradigmas oriundos da instituição das entidades familiares. Uma de suas formas é a ´posse do estado de filho`, que é a exteriorização da condição filial, seja por levar o nome, seja por ser aceito como tal pela sociedade, com visibilidade notória e pública. Liga-se ao princípio da aparência, que corresponde a uma situação que se associa a um direito ou estado, e que dá segurança jurídica, imprimindo um caráter de seriedade à relação aparente. Isso ainda ocorre com o ´estado de filho afetivo`, que além do nome, que não é decisivo, ressalta o tratamento e a reputação, eis que a pessoa é amparada, cuidada e atendida pelo indigitado pai, como se filho fosse”.

 

Nesse diapasão o Superior Tribunal de Justiça expressamente declarou a existência e os direitos relativos a filiação por afetividade: RECONHECIMENTO DE FILIAÇÃO – AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE – INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO SANGÜÍNEA ENTRE AS PARTES – IRRELEVÂNCIA DIANTE DO VÍNCULO SÓCIO-AFETIVO. (…) O reconhecimento de paternidade é válido se reflete a existência duradoura do vínculo sócio-afetivo entre pais e filhos. A ausência de vínculo biológico é fato que por si só não revela a falsidade da declaração de vontade consubstanciada no ato do reconhecimento. A relação sócio-afetiva é fato que não pode ser, e não é, desconhecido pelo Direito. Inexistência de nulidade do assento lançado em registro civil. O STJ vem dando prioridade ao critério biológico para o reconhecimento da filiação naquelas circunstâncias em que há dissenso familiar, onde a relação sócio-afetiva desapareceu ou nunca existiu. Não se pode impor os deveres de cuidado, de carinho e de sustento a alguém que, não sendo o pai biológico, também não deseja ser pai sócio-afetivo. A contrario sensu, se o afeto persiste de forma que pais e filhos constroem uma relação de mútuo auxílio, respeito e amparo, é acertado desconsiderar o vínculo meramente sanguíneo, para reconhecer a existência de filiação jurídica. Recurso conhecido e provido. (STJ – REsp 878941-DF – 3ª Turma – Relª. Minª Nancy Andrighi – Publ. em 17-9-2007).

 

Segundo Maria Cristina Almeida “o reconhecimento de situações  fáticas representadas por núcleos familiares recompostos, vem trazer novos elementos sobre a concepção da paternidade, compreendendo, a partir deles, o papel social do pai da mãe, desapegando-se do fator meramente biológico e ampliando-se o conceito de pai, realçando sua função psicossocial. A vinculação socioafetiva prescinde da paternidade biológica. No sentido da paternidade de afeto, o pai é muito mais importante como função do que, propriamente, como (Investigação de paternidade e DNA: aspectos polêmicos. Porto Alegre:Livraria do Advogado, 2001, p. 159).”

 

João Batista Villela reafirma tal idéia, que aqui se acompanha: “pensar que a paternidade possa estar no coincidir de seqüências genéticas constitui definitivamente, melancólica capitulação da racionalidade crítica neste contraditório fim de século” (O Modelo Constitucional da Filiação: Verdade e Superstições. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, v. 2, nº 6, p. 20, jul.-set/2000).

 

Continua o doutrinador, o qual enfaticamente ensina, bravamente, que: “todos os argumentos que militam em favor da prescrição – estabilidade das relações jurídicas, os limites da memória, a segurança, a certeza, etc. – ganham aqui um especial e extremo relevo. Se uma situação patrimonial modesta e reles já convém beneficiar com os favores da indisputabilidade prescriscional, tornando-a preclusa e, portanto, imune a questionamentos, o que não dizer da paternidade, ela própria a encenação do sólido e do permanente no universo afetivo de cada um? Pai é o contraponto da fragilidade e da insegurança em que está irremediavelmente imersa a criança, com seus medos e desvalias. Pai é ainda o porto aonde acorrem os adultos nas crises que o destino lhes propõe e de que nenhuma alma está livre. Morto, a imagem do pai continua a ser evocada e a cumprir seu misterioso destino de pensar as feridas do tempo. As ciências e as artes ditas da alma – psicologia, psiquiatria, psicanálise, etc – já insistiram ad nauseam na indispensabilidade de uma figura referencial permanente (Bezugsperson) a partir de cuja intervenção a criança constitui suas estruturas e se afirma em relação ao mundo” (O modelo constitucional …,cit, p. 137, apud Rocha, Marco Túlio de Carvalho. Prazo para impugnar a paternidade. Revista Brasileira de Direito de Família – nº 13 – Abr-Maio – Jun/2002 – Doutrina).

 

Portanto, não basta, como aqui se demonstrou, reconhecer, tão somente, o direito daqueles que mantêm uma filiação por afetividade, da mera aquisição do patronímico do padrasto e/ou madrasta, mas com base em nossa Carta Magna, conceder todos os direitos e deveres constitucionalmente previstos aos filhos e pais sociológicos.

 

Assim, o filho sociológico deve, da mesma forma que os demais, cumprir seu dever de abrigo e proteção aos pais sociológicos e vice-versa. Da mesma forma, que não se pode afastar o direito à herança ou pensão em quaisquer das vias afetivas citadas, com base não somente na lei fundamental do país, mas, principalmente, em seus princípios e garantias.

 

 

* Delegada de Polícia Civil em Minas Gerais. Bacharel em Direito e Administração – Universidade Federal de Uberlândia. Pós graduada em Direito Público – Universidade Potiguar. Pós-graduada em Direito Penal – Universidade Gama Filho.

Como citar e referenciar este artigo:
LEITE, Ravênia Márcia de Oliveira. A adoção do patronímico em razão da filiação por afetividade e o reconhecimento do direito de igualdade aos filhos por afetividade. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-civil/a-adocao-do-patronimico-em-razao-da-filiacao-por-afetividade-e-o-reconhecimento-do-direito-de-igualdade-aos-filhos-por-afetividade/ Acesso em: 05 fev. 2025