Direito Administrativo

A reformatio in pejus na atualidade nos processos administrativos sancionadores

I – CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

No âmbito do Direito Penal brasileiro, bem conhecido é o instituto da reformatio in pejus, expressão latina que se traduz, literalmente, como reforma para pior, mas cujo significado quer dizer, na prática processual desse ramo do Direito Público, que a decisão de um recurso interposto exclusivamente pelo réu, por desinteresse do Ministério Público em fazê-lo, não pode agravar-lhe a pena, ou seja, o Tribunal não pode reformar a decisão da sentença condenatória criminal, proferindo outra que piore a situação do recorrente.[1]

Já na processualística disciplinar do Direito Administrativo, porém, esse princípio é polêmico, encontrando-se opiniões doutrinárias e jurisprudenciais divergentes quando há um único interessado que, voluntariamente, seja ele um administrado ou mesmo um servidor público, recorre às instâncias administrativas cabíveis, visando à reforma do ato punitivo, inconformado com a sanção a ele imposta pelo cometimento de alguma ilegalidade.

Ainda que não pacífico esse entendimento, o agravamento da pena em grau recursal, nos processos administrativos disciplinares ou sancionatórios, parece ser possível, a princípio, em face do que dispõe a Lei n° 9.784/99 – reguladora dos processos administrativos no âmbito da Administração Pública Federal direta e indireta –, posto que, ao tratar da matéria, o próprio legislador admitiu, sem deixar dúvidas, que a autoridade decisória “poderá confirmar, modificar, anular ou revogar, total ou parcialmente, a decisão recorrida, se a matéria for de sua competência” (art. 64), ressaltando, ademais, no parágrafo único desse mesmo dispositivo na lei, que, “se da apreciação deste artigo puder decorrer gravame à situação do recorrente”, a autoridade competente deverá cientificá-lo do fato para que formule suas alegações antes da decisão mais gravosa, do que se pode inferir que, assim, a autoridade busca zelar pela legalidade do ato, sem afrontar aos princípios constitucionais fundamentais do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal.[2]

Note-se, então, em primeiro plano, que a aplicação da reformatio in pejus nos processos administrativos não pode ser de todo descartada enquanto a questão estiver sendo discutida em grau de recurso, ao contrário do que ocorre, porém, quando o interessado requer a revisão de processo, pois o mesmo legislador expressamente vedou à autoridade prolatar uma sentença que desfavoreça o requerente, aplicando-lhe uma sanção mais gravosa[3], ao entender que, nesta hipótese, por lógica, o sujeito jamais teria por objetivo piorar sua situação junto à Administração, e sim reduzir, ou até suprimir, a pena a ele imputada no processo administrativo originário, já findo, vale lembrar, mediante a apresentação de novos fatos ou circunstâncias relevantes que eventualmente possam justificar sua inocência ou a inadequação da penalidade aplicada, dessa forma fazendo valer o princípio da segurança jurídica.

Em sendo assim, Celso Antônio Bandeira de Mello[4] aponta que, em sede recursal, há uma incongruência legislativa, porquanto a própria Lei nº 9.784/99 estabelece, afinal, a regra da reformatio in pejus, no já citado art. 64, ainda que esta possa resultar em desconforto maior ao recorrente, caso haja a possibilidade de uma decisão mais gravosa do reexame da questão, pois ao administrado ou servidor público interessado caberá apresentar mais alegações, agora para se defender contra o agravamento da decisão.

Não havendo como negar a existência dessas normas contraditórias, porém, uma que veda a aplicação da reformatio in pejus nos processos de natureza sancionatória e outra que a admite no bojo dos processos administrativos em geral – destoando do idealizado pelo ordenamento jurídico, onde não deve subsistir um peso, duas medidas –, a matéria acaba gerando opiniões conflitantes, exigindo do órgão julgador extrema ponderação, especialmente quando o recurso é interposto exclusivamente por um único interessado, vale repisar, no sentido de a autoridade interpretar adequadamente a lei, proferindo uma decisão justa.[5]

Faz-se necessário observar, contudo, nesse contexto, que esse recorrente fica a depender da filiação dogmática do aplicador do Direito ou intérprete, tendo em vista que a doutrina se divide em correntes distintas de entendimento, todas muito bem representadas e fundamentadas em argumentos pertinentes, mas utilizando-se de diferentes conjuntos de princípios jurídicos.

Partindo dessas primeiras considerações, esse artigo objetiva apreciar, em breves pinceladas, o posicionamento doutrinário acerca do tema.

II – Entendimentos DOUTRINÁRIOS ACERCA DA REFORMATIO IN PEJUS

Antes de dar início à apreciação proposta, dois assuntos pertinentes merecem aqui ser ventilados. Um deles diz respeito à norma constitucional estabelecida no inciso LV do art. 5o, da Constituição de 1988, que assegura aos administrados, também na esfera administrativa, as mesmas garantias conferidas em processos judiciais, ainda que, em se tratando de recursos, comumente seja feita uma diferença, segundo a lição deixada por Lúcia Valle Figueiredo, a saber:

[…] se os recursos forem interpostos de decisões emanadas em procedimentos administrativos (nominados ou inominados), que não relativos a punições disciplinares ou sanções administrativas, devemos entender que as garantias deverão ser as do processo judicial civil. Enquanto que para os últimos (os disciplinares e sancionatórios) deverão viger as garantias do processo judicial penal.[6]

Um outro, também de fundamental importância a ser observado, relaciona-se aos princípios, reconhecidos como mandamentos nucleares de um sistema, seu verdadeiro pilar, onde nele repousam as diretrizes básicas que devem ser seguidas por todo o Direito, irradiando-se sobre diferentes normas, “compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão”, conforme ensina Celso Antônio Bandeira de Mello[7]. Assim sendo, eles exercem diversos papéis no ordenamento jurídico de uma nação, ora desempenhando uma função argumentativa, fundamentadora, ao atuar como cânone hermenêutico, limitando o subjetivismo do aplicador do Direito, ora servindo de instrumento para revelar as normas não expressas nos enunciados legislativos, despontando, enfim, como imposições deontológicas capazes de conferir força de convencimento às decisões jurídicas.[8]

Considerando que os princípios não necessariamente precisam estar formulados positivamente para que tenham existência como categoria jurídica, por vezes eles se opõem, insurgindo-se contra algumas disposições do direito vigente, transparecendo haver um conflito entre eles, que não podem ser aplicáveis simultaneamente, embora isto não signifique dizer que, se algo é permitido por um princípio, ou por um conjunto de princípios, mas vedado por outro, aquele tenha que ser declarado nulo[9], ou seja, a adoção de um princípio ao caso concreto não implica o afastamento de outro, que a ele se contrapõe, pois, reconhecidamente, princípios contraditórios podem coexistir no mundo jurídico, de sorte que, para certos casos, soluções e decisões somente são alcançadas através de ponderada reflexão dos interesses jurídicos opostos envolvidos.[10]

É nesse contexto, então, quese pode inserir o tema proposto nesse trabalho, eis que a matéria sobre a admissibilidade ou não da reformatio in pejus, no seio do Direito Administrativo, ainda não se encontra pacificada, como ao contrário está no âmbito do processo penal, havendo doutrinadores que defendem a aplicação do instituto a todas as espécies de processo administrativo, por interpretação extensiva do art. 64 da Lei nº 9.784/99, e outros que, contrariamente, advogam que não há por que estender a medida aos processos disciplinares e sancionatórios, por serem diversos os elementos inspiradores desse modelo, além de com estes coexistir uma terceira vertente de opiniões, composta por doutrinadores que aceitam o princípio do agravamento da pena sob certas condições.

Assim sendo, dentre os mais clássicos doutrinadores que defendem a reforma da sentença em prejuízo do recorrente, encontra-se o eterno mestre Hely Lopes Meirelles[11], cuja tese se baseia, fundamentalmente, no princípio da verdade material, cujo postulado exprime o dever da Administração saber como os fatos se apresentam na realidade, para realizar o interesse público, daí poder valer-se, desde que motivadamente, de quaisquer provas lícitas de que tenha conhecimento, em qualquer fase do processo, até seu julgamento final, para tomar sua decisão, mas sempre com base na verdade real, substancial, cujas provas tenham sido carreadas aos autos do processo.[12]

Partindo desse princípio, o referido mestre sustenta que, na seara administrativa, em qualquer modalidade de recurso, a autoridade ou tribunal administrativo tem ampla liberdade decisória para “reformar o ato recorrido além do pedido ou, mesmo, agravar a situação do recorrente (reformatio in pejus)”[13], podendo modificá-lo ou invalidá-lo, portanto, segundo critérios de conveniência e oportunidade, ou mesmo para corrigir uma ilegalidade de ordem técnica cometida, que tenha comprometido a eficiência do serviço público, por exemplo, embora ressalte que, para tanto, é de fundamental importância a autoridade apontar seus motivos, além de oportunizar ao recorrente apresentar suas razões, antes da tomada de decisão mais gravosa, de forma a não ofender aos princípios do contraditório e da ampla defesa (art. 5o, LV, da CF), assim conferindo superioridade a um outro princípio, o da legalidade.

Contudo, referindo-se ao princípio da verdade material, que dá sustentação à tese de Hely Lopes Meirelles, José Armando Costa discorda de sua opinião sob o argumento de que tal princípio também informa o Direito Processual Penal, mas nem por isso autoriza a reformatio in pejus. Daí asseverar o autor que a reforma para pior, “consoante a compreensão resultante da boa lógica jurídica que norteia o relacionamento existente entre as normas e os princípios que constituem o nosso jus positum, não encontra o menor eco na nossa processualística disciplinar”.[14]

Nesse mesmo sentido, diz Ana Teresa Ribeiro da Silveira:

O processo administrativo disciplinar e sancionatório possuem a mesma natureza punitiva do processo penal, ambos estão informados pelos mesmos princípios da ampla defesa e do contraditório. Não há nada que justifique tratamento diferenciado, pois os direitos a serem resguardados são os mesmos, assim como a proteção conferida pela Constituição.[15]

José dos Santos Carvalho Filho ressalta, porém, que “são diversos os interesses em jogo no Direito Penal e no Direito Administrativo, não podendo simplesmente estender-se a este princípios específicos daquele”. Acrescenta, além disso, corroborando a tese de Hely Lopes Meirelles, que uma das razões possíveis à aplicação da reformatio in pejus reside no fato de que “um dos fundamentos do Direito Administrativo é o princípio da legalidade, pelo qual é inafastável a observância da lei, devendo esta prevalecer sobre qualquer interesse privado”.[16]

Também se manifestando a favor da reformatio in pejus, com base no princípio da legalidade, Carlos Ari Sundfeld observa que os recursos não existem exclusivamente para a garantia do administrado, “mas também para assegurar que a decisão seja o mais possível ajustada à lei, que é o único interesse da Administração”. Segundo o autor, é preciso atentar para o fato de que os procedimentos administrativos normalmente não imitam os judiciais e, sendo assim, “se inadmitida a reformatio in pejus, a primeira autoridade a decidir seria absoluta, quando favorecesse o acusado”, de sorte que sua interdição, “se a aceitássemos, viria em benefício exclusivo das decisões ilegais”.[17]

Quanto à jurisprudência, também o STJ já teve a oportunidade de se manifestar em favor do agravamento da pena em julgamento de recursos administrativos, mesmo antes de ser editada a Lei nº 9.784/99, valendo notar as seguintes ementas:

ADMINISTRATIVO. PENA DE SUSPENSÃO. “REFORMATIO IN PEJUS”. PROCEDIMENTO DISCIPLINAR. Não se aplica ao procedimento disciplinar a vedação da “reformatio in pejus”, pelo que pode a autoridade hierarquicamente superior aplicar pena mais gravosa do que a imposta pelo inferior (STJ, ROMS 29/RJ, Recurso Ordinário em Mandado de Segurança (1989/0009260-0), rel. Min. Américo Luz).

ADMINISTRATIVO – MANDADO DE SEGURANÇA – ATO DE SECRETÁRIO DE ESTADO – MULTA POR INFRAÇÃO AO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR – VALOR FIXADO NO MÁXIMO LEGAL – REEXAME DE PROVAS – IMPOSSIBILIDADE – SÚMULA 07/STJ – DIREITO LÍQUIDO E CERTO NÃO CONFIGURADO – PROCESSO ADMINISTRATIVO – “REFORMATIO IN PEJUS” – POSSIBILIDADE – PRECEDENTES. Os critérios adotados pela administração pública para gradação da penalidade por infração ao Código de Defesa do Consumidor não são passíveis de discussão na estreita via do mandado de segurança, haja vista que ensejam reexame de provas. […] Motivada a decisão que julgou o recurso administrativo, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, não se há que falar em ilegalidade ou abuso de autoridade. No âmbito do processo administrativo, a autoridade superior pode aplicar pena mais gravosa do que a imposta pela autoridade inferior. Recurso conhecido e improvido (STJ, ROMS 2016/0218307-6, rel. Min. Francisco Peçanha Martins, 2a T.[18]

Percebe-se, pois, que essa parte da doutrina – que aqui é representada, apenas, por alguns conceituados juristas – sustenta a admissibilidade da reformatio in pejus nos processos administrativos que se destinam à aplicação de uma sanção a administrados ou a servidores públicos, em virtude da prática de um ato ilícito, com fulcro nos princípios da legalidade, da indisponibilidade do interesse público, da oficialidade e da verdade material, dentre outros, assim privilegiando um grupo de princípios clássicos dos processos disciplinares, bem como da Administração Pública, dando aos órgãos públicos ampla liberdade para rever os atos administrativos de sua competência, o que autorizaria a reforma da decisão em desfavor do recorrente, mesmo nos casos em que somente um interponha recurso. Asseveram esses doutrinadores,além disso, que a reforma para pior, realizada conforme previsto na lei, não violaria as garantias constitucionais ao contraditório e à ampla defesa, pois a Administração não está vinculada às razões do recurso, e sim à lei e ao interesse público, apesar de seu julgamento assumir contornos consideravelmente vastos em face do que dispõe o parágrafo único do art. 64 da Lei nº 9.784/99.

Contrário a esse entendimento, porém, Heraldo Garcia Vitta é um dos que rejeitam a reformatio in pejus no âmbito do Direito Administrativo, mesmo que a Administração abra prazo para o interessado se manifestar, segundo a norma estabelecida no dispositivo da lei acima mencionada. Seu argumento baseia-se no fato de que, “[…] se a autoridade pudesse impor sanção mais grave, os particulares ficariam inibidos de recorrer”, constrangendo-os, portanto, por se sentirem ameaçados de ver sua situação piorada. Ademais, “haveria ofensa ao duplo grau de jurisdição, inerente ao regime democrático, além de ir de encontro ao contraditório e à ampla defesa”, de sorte que a medida ofende ao devido processo legal. Conclui, por fim, que é a non reformatio in pejus, na verdade, o “princípio geral do Direito, corolário do direito de defesa.” [19]

No mesmo diapasão, segue a tese jurídica do eminente administrativa argentino Agustín Gordillo, para quem a ameaça da possibilidade de agravamento da sanção pode ser um meio de coagir indiretamente o interessado a não interpor o recurso contra seus atos, nesse sentido lembrando que, em diferentes situações e, portanto, de diferentes maneiras, o recurso é tanto um meio de defesa, como um direito dos indivíduos, um meio legal de contestar um ato administrativo, embora reconheça, forçosamente, que tal remédio pode vir a ser perigoso para o interessado.[20]

Opondo-se a esse argumento, no entanto, Carlos Ari Sundfeld entende que, se é verdadeiro que a reformatio in pejus pode indiretamente constranger o acusado, igualmente certo é que, “se a revisão resultar em ilegalidade, sempre haverá o recurso ao Judiciário. Portanto, este constrangimento só poderá ser eficaz contra quem sabe que o Judiciário não alterará a decisão, por ser ela válida”. Daí concluir que tal “constrangimento só pode atingir a quem foi sancionado de forma mais branda que o correto”, de modo que a interdição da reformatio in pejus viria somente a beneficiar as decisões ilegais.[21]

Ana Teresa Ribeiro da Silveira, por sua vez, observa que, em grau recursal, mesmo que a Administração conceda novo prazo ao administrado para se manifestar, quando há possibilidade de agravamento da sanção, isto não supre as exigências impostas pelo devido processo legal, não atenua a violação do exercício da ampla defesa em igualdade de condições, e sob o crivo do contraditório, nem tampouco “deixa de inibir o uso do direito ao recurso, pois não impede que a iniciativa do administrado leve ao agravamento de sua própria situação jurídica”.[22]

Convém observar que, além desses, outro argumento também é muito utilizado entre os doutrinadores para defender a vedação da reformatio in pejus nos processos administrativos sancionatórios, o qual consiste em cotejar o procedimento de revisão de que trata o art. 65 da Lei nº 9.784/99 com o art. 64, do mesmo Diploma, dispondo este sobre recursos, embora tais institutos não se confundam. Válido de se registrar, entretanto, é o entendimento de Rafael Munhoz de Mello:

Se em processo de revisão, à luz de “fatos novos ou circunstâncias relevantes”, não se pode admitir o agravamento da sanção, a mesma regra deve valer para os recursos interpostos no curso do processo, que devolvem ao órgão superior o exame dos mesmos fatos e circunstâncias já apreciadas pelo órgão a quo. É dizer, nem mesmo um fato novo, até então desconhecido pela Administração Pública, que revele a “inadequação da sanção aplicada”, pode levar ao agravamento da medida sancionadora, sob pena de ofensa à regra que veda a reformatio in pejus. Com maior razão a vedação deve ser aplicada aos recursos administrativos. (grifos do autor).[23]

Apreciados tais posicionamentos, é de inferir que a corrente doutrinária que rejeita a aplicação da reformatio in pejus nos processos administrativos disciplinares e sancionatórios baseia-se no fiel cumprimento dos princípios do contraditório, da ampla defesa e da segurança jurídica, consagrados como garantias fundamentais pela Constituição de 1988, cuja “real obediência se dará com a efetiva possibilidade de defesa e produção de provas pelos ‘acusados’ e, também, à possibilidade de recurso, quando a decisão não lhe for favorável”, conforme lição de Helena Marques Junqueira, que ainda assevera: “É consenso entre a maioria da doutrina a total proibição da reformatio in pejus, para os processos disciplinares ou sancionatórios”[24], aos quais deverão ser aplicados os princípios de Direito Penal.

Verifica-se, por fim, uma vertente doutrinária mista, que admite que o agravamento da sanção é passível de ser aplicado nos processos administrativos, embora com restrições, ou seja, desde que observadas certas condições, inclusive buscando conciliar os princípios clássicos da Administração Pública com as garantias fundamentais a serem observadas nos processos judiciais e administrativos.

Fazem parte dessa corrente, dentre outros, Romeu Felipe Bacellar Filho[25], Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari, que toleram a reformatio um pejus nos termos propostos no parágrafo único do art. 64 da Lei nº 9.784/99, embora os dois últimos doutrinadores ressaltem que, nesse dispositivo, não caiba falar-se em reformatio in pejus, propriamente, em razão do princípio da legalidade e da obrigação da busca da verdade material, assim esclarecendo:

Não é possível agravar discricionariamente a situação do recorrente; somente pode haver agravamento por considerações de direito, em virtude de algum vício jurídico, de alguma ilicitude na decisão recorrida. Havendo esse pressuposto, antes da decisão, deverá ser proporcionada ao recorrente a oportunidade de exercer o contraditório e a ampla defesa. Dessa maneira, fica preservado o princípio da legalidade, que é fundamental no regime jurídico-administrativo, e ficam ressalvadas as garantias constitucionais do cidadão.[26]

José dos Santos Carvalho Filho também admite a reformatio in pejus, mas somente quando a matéria a ser reformada for de legalidade estrita, vale dizer, na “hipótese em que o ato administrativo da autoridade inferior tenha sido praticado em desconformidade com a lei, conclusão extraída mediante critérios objetivos”. Entretanto, caso seja de manifestação da vontade subjetiva da Administração, nas situações em que há permissivo legal para tal discricionariedade, o autor sustenta que “não poderá a autoridade de instância superior proceder à nova avaliação subjetiva dos elementos do processo”. (grifos do autor).[27]

Lúcia Valle Figueiredo, por sua vez, passou a admitir a reformatio in pejus somente se “o processo revisivo for feito ‘de ofício’ pela Administração ou, se provocadamente, encontrem-se outros envolvidos”, dando como exemplo o ato de habilitação no procedimento licitatório, quando “a Administração, instigada pelo recurso de um dos licitantes […] contra a habilitação de outro, […], verifique a necessidade de reformá-lo por inteiro. Inclusive inabilitando, até, o recorrente já habilitado”.[28]Nesta hipótese, todavia, segundo essa doutrinadora, a reformatio in pejus é apenas aparente, pois o que existe, na verdade, é um “ato de controle de legalidade, por importar em nulidade do procedimento; caso assim não se procedesse, estaria a Administração agindo contra legem”.[29]

Portanto, quando o art. 64 da Lei nº 9.784/99 admite a modificação de uma decisão administrativa, por via recursal, não haveria que se falar em agravamento ou piora da situação do recorrente, e sim em correção de uma situação de ilegalidade, que jamais poderia prevalecer, por desconformidade com o ordenamento jurídico, diferentemente do que ocorre na reformatio in pejus, onde não há juízo de legalidade, mas uma reapreciação de mérito da decisão recorrida.

III – CONCLUSÃO

Enfim, do que foi apreciado, percebe-se que, não obstante vozes se levantem contra a possibilidade da reforma em prejuízo da situação daquele que interpõe recurso voluntário, seja ele administrado ou servidor público, invocando os princípios constitucionais do contraditório, da ampla defesa, do devido processo legal e da segurança jurídica, outras concordam com a previsão contida no art. 64, e parágrafo único, da Lei nº 9.784/99, curvando-se ao controle de legalidade e à supremacia do interesse público.

A formação de opiniões divergentes sobre a aplicabilidade ou não da reformatio in pejus no âmbito da processualística disciplinar regulada pelo Direito Administrativo tem suas origens, ao que parece, na ausência de lógica do próprio legislador, que estabeleceu consequências jurídicas diametralmente opostas para aspectos da mesma espécie de processo, a saber, o sancionador, ao se interpretar as regras dos arts. 64 e 65, capita e seus respectivos parágrafos únicos, da Lei nº 9.784/99, cujas redações se contrapõem, literalmente, ainda que os institutos neles tratados não se confundam: o primeiro cuida dos recursos administrativos em geral, sem nenhuma especificação, portanto, e, o seguinte, da revisão de processo administrativo.

Mas, em se tratando de processos que se destinam à aplicação de uma sanção disciplinar a servidor público, especificamente, em virtude de cometimento de alguma irregularidade que, de maneira inequívoca, não constitua crime previsto no Código Penal, cumpre observar que o poder de punir da autoridade administrativa, enquanto prerrogativa a ela conferida legalmente, não se confunde com o jus puniendi do Estado. Aquele, regido pelo Direito Administrativo Disciplinar, é atividade que faz parte do poder-dever do administrador público, e visa punir, no âmbito interno da Administração Pública, as condutas qualificadas como ilícitos administrativos, nos estatutos ou leis administrativas, para que eles não se repitam, ao passo que o poder punitivo do Estado é exercido pelo Poder Judiciário, regido pelo Direito Penal e Processual Penal, e objetiva tutelar os interesses do Estado.

Dessa forma observado, ficam então algumas dúvidas, que carecem de criteriosa reflexão, enquanto não encontradas soluções para as controvérsias em apreço, daí indagando-se: seria justo a Administração, que tem o dever-poder de anular seus próprios atos, quando eivados de vícios, conforme reiteradamente decidido pelo Pretório Excelso, vedar ao órgão administrativo de segunda instância, em julgamento de recurso voluntário, reformar uma decisão sancionatória inadequada, tomada pela própria Administração Pública, ainda que tal reforma agrave a situação do administrado ou do servidor público? Nesta hipótese, então, seria mais coerente que seja mantida a situação de ilegalidade do ato, inadmitindo a reformatio in pejus nos processos administrativos disciplinares, engessando as decisões tomadas pela Administração?

José Maria Pinheiro Madeira

Procurador (apos) – Mestre em Direito do Estado – Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais. Doutor em Filosofia da Administração Pública – Pós-Doutorado em Direito Público pela Cambridge International University.

Sérgio Luis Tavares

Advogado e Servidor Público Federal (apos) – Graduado em Direito (UFRJ) e em Teologia (FACETEN) – Pós-graduado em Direito Público (UNESA) – Mestrando em Direito pela Universidade Estácio de Sá (UNESA).



[1] Dispõe o art. 617 do Código de Processo Penal que: “O tribunal, câmara ou turma atenderá nas suas decisões ao disposto nos arts. 383, 386 e 387, no que for aplicável, não podendo, porém, ser agravada a pena, quando somente o réu houver apelado da sentença”. Em outras palavras, diz o jurista Julio Fabbrini Mirabete que, “recorrendo apenas o réu, não é possível haver reforma da sentença para agravar sua situação; recorrendo a acusação em caráter limitado, não pode o Tribunal dar provimento em maior extensão contra o apelado”. MIRABETE, Julio Fabbrini. Código de processo penal interpretado: referências doutrinárias, indicações legais, resenha jurisprudencial. 10. ed. São Paulo: Atlas, 216, p. 1.581.

[2]Comentando a Lei nº 9.784/99, José dos Santos Carvalho Filho esclarece que “a atenuação instituída pelo legislador corre por conta da obrigatória oportunidade de se abrir ao recorrente espaço para o oferecimento de novas alegações. Assim, confirmando-se decisão mais gravosa, não se poderá dizer que o interessado não teve a chance de deduzir razões para evitá-la, o que representa observância do princípio do contraditório e da ampla defesa”. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Processo administrativo federal. São Paulo: Editora Atlas, 2016, p. 300.

[3]Conforme dispõe o art. 65 da Lei nº 9.784/99, “os processos administrativos de que resultem sanções poderão ser revistos, a qualquer tempo, a pedido ou de ofício, quando surgirem fatos novos ou circunstâncias relevantes suscetíveis de justificar a inadequação da sanção aplicada.Parágrafo único. Da revisão do processo não poderá resultar agravamento da sanção”. Da mesma forma, assim consta no Código de Processo Penal: “Art. 626. Julgando procedente a revisão, o tribunal poderá alterar a classificação da infração, absolver o réu, modificar a pena ou anular o processo.Parágrafo único. De qualquer maneira, não poderá ser agravada a pena imposta pela decisão revista.” E, de modo idêntico, especificamente no Estatuto dos Servidores Públicos Federais (Lei nº 8.112/90):Art. 182. Julgada procedente a revisão, será declarada sem efeito a penalidade aplicada, restabelecendo-se todos os direitos do servidor, exceto em relação à destituição do cargo em comissão, que será convertida em exoneração. Parágrafo único. Da revisão do processo não poderá resultar agravamento de penalidade.”

[4] Bandeira de MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 22a. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2015, p. 475.

[5] Nesse sentido, segundo o magistério de Celso Ribeiro Bastos, o fundamento da interpretação jurídica é a lei e, em sendo assim, toda interpretação que se faça de uma regra regulamentadora terá imediata repercussão na liberdade do indivíduo, eis que o sentido prático da interpretação está na exata e adequada aplicação dessa regra ao caso concreto. BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. 2. ed. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1999.

[6]FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. 12ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 362.

[7] BANDEIRA DE MELLO, op. cit., p. 817.

[8] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 10a ed. Coimbra: Livraria Almedina, 2013, p.  172-173.

[9]ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundmentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2013. 88.

[10]Nesse contexto, Ruy Samuel Espíndola, esclarece que “o conflito entre princípios se resolve na dimensão do peso e não da validade, ou melhor, princípios colidentes não se excluem de maneira antinômica, perdendo um deles a existência jurídica, a validade e ou a vigência; apenas se afastam diante da hipótese colocada ao juízo decisório. Assim, pelo procedimento da ponderação de princípios em conflito afasta-se, no caso, o princípio cujo peso foi sobrepujado pelo outro, que recebeu aplicação, ou, ainda, pela metódica da harmonização ou concordância prática aplicam-se ambos os colidentes, até o limite das possibilidades que o peso de cada um comporta”. Espíndola, Ruy Samuel. Conceito de princípios constitucionais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p.248.

[11] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2014.

[12]Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que “é lícito à autoridade administrativa competente divergir e aplicar penalidade mais grave que a sugerida no relatório da comissão disciplinar”, pois “a autoridade não se vincula à capitulação proposta, mas sim aos fatos.” (MS nº 8.184-DF, Rel. Min. Paulo Medina, 3a S., jul. em 10 de março de 2014). Informativo do STJ nº 201.

[13] MEIRELLES, op. cit., p. 645; 651.

[14] COSTA, José Armando da. Teoria e prática do processo administrativo disciplinar. 6 ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2014, p. 54-55.

[15] SILVEIRA, Ana Teresa Ribeiro da. A Reformatio in Pejus e o Processo Administrativo. Revista Bimestral de Direito Público, Porto Alegre, n. 30, mar./abr 2015, p. 70.

[16] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 25. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Atlas, 2012, p. 747-748.

[17] SUNDFELD, Carlos Ari apud HARGER, Marcelo. O processo administrativo e a reformatio in pejus. Revista Forense. Rio de Janeiro: Forense, n. 371, jan./fev. 2014, p. 211.

[18] Do Tribunal Regional Federal da 5a Região, também há precedentes nesse sentido, transcrevendo-se o seguinte excerto de um deles: “[…] 1. A Lei 9.784/99, que regula o processo administrativo no âmbito da administração federal, em seu art. 64, prevê a possibilidade de agravamento da penalidade em sede de recurso, desde que o recorrente seja cientificado desta possibilidade, a fim de que apresente suas alegações. 2. O Conselho Regional de Engenharia aplicara pena de censura pública. Em recurso ao CONFEA, há reformatio in pejus, com sanção de cancelamento de registro. Ausência de notificação no âmbito do CONFEA sobre a possibilidade de agravamento da pena. Ilegalidade do agravamento, em virtude de não ter sido, previamente, ouvido o interessado. Nulidade do ato de cancelamento do registro e restabelecimento da censura pública. […]” (TRF-5a Reg. AC 433451/PE (0010562-14.2006.4.05.8300), rel. Des. Fed. Carlos Rebêlo Júnior, 3a T.).

[19] VITTA, Heraldo Garcia apud SANTOS, Marcel Mascarenhas dos. Reformatio in Pejus em Processo Administrativo Sancionador: o caso do Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional. Revista da Procuradoria-Geral do Banco Central, v. 1, n. 1, dez. 2017. Brasília: BCB, 2017, p. 132.

[20]GORDILLO, Agustín. Tratado de derecho administrativo. Tomo 4. El procedimiento administrativo. 12a ed, Belo Horizonte: Del Rey y Fundación de derecho administrativo, 2013, p. III-19.

[21] Sundfeld apud HARGER, op. cit., p. 211.

[22]Quanto aos casos de revisão de processo, a autora sustenta, outrossim, a inaplicabilidade da reformatio in pejus, por ser “[…] incompatível com a moderna concepção de processo administrativo trazida pela lei federal, que defende um processo modelado constitucionalmente, inspirado pelo ideal democrático, respeitador dos direitos e garantias dos administrados”. SILVEIRA, op. cit., p. 69-71.

[23]Mello, Rafael Munhoz de apud SANTOS, op. cit., p. 134.

[24]JUNQUEIRA, Helena Marques. A reformatio in pejus no processo administrativo. In: Figueiredo, Lúcia Valle (Coord.). Processo administrativo tributário e previdenciário. São Paulo: Max Limonad, 2012, p. 108.

[25]Em sede de revisão do processo disciplinar (art. 182, parágrafo único, da Lei nº 8.112/90), entretanto, Romeu Felipe Bacellar Filho não admite a reformatio in pejus, por tal medida ser contrária ao ordenamento jurídico constitucional vigente, pois, “com efeito, a garantia da ampla defesa não se compadece com essa atitude arbitrária que, no passado, quando consentida, atuava como fator de desestímulo às postulações recursais”.BACELLAR FILHO, Romeu Felipe apud HARGER, op. cit., p. 212.

[26] FERRAZ, Sérgio; DALLARI, Adilson Abreu. Processo administrativo. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 196.

[27] CARVALHO FILHO. Manual…, op. cit., p. 748. (grifos do autor).

[28]Figueiredo, Curso…, op. cit., p. 455.

[29] Idem.

Como citar e referenciar este artigo:
MADEIRA, José Maria Pinheiro; TAVARES, Sérgio Luis. A reformatio in pejus na atualidade nos processos administrativos sancionadores. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2018. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-administrativo/a-reformatio-in-pejus-na-atualidade-nos-processos-administrativos-sancionadores/ Acesso em: 21 mai. 2024