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Possibilidades e limites das clínicas jurídicas: o caso do Núcleo de Prática Jurídica – NPJ do Centro de Ciências Jurídicas – CCJ da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC

Rafael Celeste[1]

Resumo: o presente artigo pretende apresentar as possibilidades e limitações das clínicas jurídicas, método de aprendizado pela prática jurídica. Inicialmente, a exposição das possibilidades da clínicas jurídicas é fundamental para compreender a sua relação entre a teoria – o que é ensinado na sala de aula – e a prática em casos reais, bem como seu papel social de dar assistência jurídica aos hipossuficientes. Em seguida, levantou-se limitações comuns encontradas no exercício das práticas jurídicas, com o enfoque na experiência do Núcleo de Práticas Jurídicas – NPJ do Centro de Ciências Jurídicas – CCJ da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Por fim, foram realizados alguns apontamentos sobre a crítica do (ao) ensino do Direito no Brasil com a visão de Roberto Lyra Filho, conhecida como Teoria Dialética do Direito. Este artigo utilizou de pesquisa teórica/bibliográfica e do método dedutivo.

Palavras-chave: Clínicas Jurídicas. Práticas Jurídicas. Ensino Jurídico. Teoria Dialética do Direito.

1 INTRODUÇÃO

A universidade cumpre um papel de destaque na nossa sociedade, sobretudo as públicas, produtoras de mais de 95% da produção científica no Brasil.[2] Isso, por si só, poderia ser o indicativo que o nosso ensino universitário público desempenha sua função social para a resolução dos problemas sociais nacionais. Contudo, a universidade pública é formada pelo tripé ensino-pesquisa-extensão, o que significa que só a pesquisa não é suficiente para dar conta da tarefa que é reduzir as desigualdades sociais e melhorar a vida do povo brasileiro.

Desse modo, o tripé articulado dá mais firmeza ao propósito da educação. É nesse sentido que o presente trabalho pretende expor uma das diversas formas de extensão realizadas no país, em especial no ensino jurídico: as clínicas jurídicas. São núcleos de prática jurídica que combinam a teoria – adquirida no tripé ensino, nas salas de aula – com a prática. Modelo de extensão que possibilita a formação de profissionais do Direito competentes e responsáveis, a desenvolver habilidades e valores de interação coletiva e o atendimento à população mais necessitada.

Pretende-se apontar as possibilidades e limitações, visando analisar um caso específico, o Núcleo de Prática Jurídica – NPJ do Centro de Ciências Jurídicas – CCJ da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC (NPJ/CCJ/UFSC[3]). Análise feita a partir dos estudos realizados por Ana Mara França MACHADO e Rafael Francisco ALVES (2006) de várias universidades estadunidenses, visando identificar semelhanças e diferenças entre o que está consolidado nos Estados Unidos da América – EUA e o que temos no Brasil, com a abordagem específica do NPJ/CCJ/UFSC.

Por fim, tentando compreender o Direito como um campo em disputa, vislumbra-se que o ensino jurídico positivista e formalista – voltado para um viés tecnicista e lógico-formal – encontra alternativas. Fugindo da ideia de um Estado detentor do monopólio da produção de normatividade, a teoria crítica do direito, na abordagem da Teoria Dialética do Direito de Roberto Lyra Filho, possibilita uma visão de Direito marcado por contradições e lutas constantes, onde há espaço para disputas institucionais e para a transformação social. Nesse sentido, a advocacia popular contribui para traduzir os anseios da população hipossuficiente e dar respostas às demandas sociais mais urgentes.

2 POSSIBILIDADES DAS CLÍNICAS JURÍDICAS: OS DOIS LADOS DE UM MÉTODO DE APRENDIZADO

É pacífico entre educadores que métodos diferentes de aprendizado proporcionam maior capacidade de articulação entre teoria e prática. Definitivamente, esse é o caso das clínicas jurídicas. Espaços de aprendizado que promovem o intercâmbio dos conhecimentos adquiridos em sala de aula com a realidade prática. Isto é, o momento em que ensino, pesquisa e extensão dialogam.

Ademais, o segundo lado das clínicas jurídicas é o de assistência jurídica à população hipossuficiente. Possibilidade dos mais necessitados a terem acesso à representação gratuita. O que pode fazer muita diferença em um país com mais de 12 milhões de desempregados[4] e desigualdade social crescente.[5] Além disso, quando consideramos as universidades públicas, a assistência jurídica funciona com uma modalidade de retorno aos contribuintes que financiam a estrutura dessas instituições de educação, é o caso do NPJ/CCJ/UFSC.

O uso do termo clínica na abordagem da prática jurídica vem de uma analogia das clínicas no ensino da medicina, as quais combinam o uso da teoria e prática. MACHADO e ALVES (2006, p. 06 ) apontam que é possível que a primeira Faculdade de Direito a adotar o método de clínicas jurídicas foi a Universidade de Pennsylvania em 1893. Em síntese, o método de clínica compreenderia dois objetivos: encurtar a distância entre teoria e prática no ensino jurídico e assistência jurídica aos hipossuficientes.

MACHADO e ALVES (2006, p. 11) expõem um panorama comum das universidades estadunidenses no estudo realizados por eles para o curso de Direito da Fundação Getúlio Vargas – FGV:

A prática das clínicas jurídicas nas diversas Universidades norte-americanas apresenta um panorama geral bastante uniforme. O processo educativo é normalmente dividido em dois momentos. O primeiro ocorre na própria sala de aula, onde os alunos assistem a cursos sobre as habilidades específicas que serão desenvolvidas posteriormente na prática ou ainda sobre a matéria específica com a qual irão lidar nos casos práticos. O segundo momento ocorre na prática: os estudantes têm então oportunidade de enfrentar situações concretas em casos reais ou simulados, tendo que tomar decisões, assumir a responsabilidade pelo sucesso ou insucesso das pretensões de seus clientes e encarar dilemas éticos.

O estudo é realizado em várias universidades estadunidenses, mas encontra semelhanças com a prática jurídica efetivada no Brasil, afinal, consiste, primeiro, em unir teoria e prática, e, segundo, dar assistência jurídica aos mais necessitados. É o que está elencado no site do NPJ/CCJ/UFSC como objetivo: “qualificar os futuros profissionais do Curso de Direito durante sua formação acadêmica, conciliando os interesses da população carente ao acesso à justiça”.[6]

Embora o presente trabalho se debruce sobre um tipo específico de clínica jurídica, MACHADO e ALVES (2006) identificaram quatro modalidades de clínicas jurídicas: 1) assistência jurídica; 2) pesquisa; 3) simulação; e 4) estágio prático. No primeiro caso é o que estamos analisando aqui, é a vivência dos estudantes de Direito em casos reais e como participantes do processo, acompanhando em audiência, produzindo peças processuais, dialogando com o clientes[7], com a outra parte etc. A pesquisa está voltada para consultoria e produção de pareceres, no caso do Centro de Ciências Jurídicas – CCJ temos a Locus Iuris[8], Empresa Júnior focada na consultoria jurídica. A simulação tem como base o uso de casos consolidados ou hipotéticos, para que os estudantes, por meio de exercícios de simulação, possam entender e resolver conflitos jurídicos. Por fim, o estágio prático, voltado ao exercício da prática jurídica em órgãos, escritórios, empresas etc. externos à instituição de ensino.

MACHADO e ALVES (2006) fazem referência ao estudo Legal Education and Profesional Development – an Educational Continuum, publicado em 1992 no Estados Unidos, considerado divisor de águas no ensino jurídico. O estudo concentrou-se nos advogados e no exercício de suas profissões, concluindo que o ensino jurídico deveria promover habilidades comuns da advocacia e alguns valores profissionais de carreira jurídica. As habilidades e valores identificados pelo estudo não são taxativos, muito menos podem ser compartimentalizados.

O estudo levanta dez habilidades, são as seguintes: i) resolução de problemas; ii) análise e raciocínio jurídicos; iii) pesquisa jurídica; iv) investigação dos fatos; v) comunicação oral e escrita; vi) consultoria; vii) negociação; viii) compreensão dos procedimentos judiciais e extrajudiciais de resolução de disputas; ix) organização e administração do trabalho jurídico; reconhecimento e resolução de dilemas éticos.

Complementando, o estudo elencou quatro valores: i) representação competente: responsabilidade com o cliente; ii) promoção da justiça e da moralidade: responsabilidade com o sistema de Justiça; iii) aperfeiçoamento da profissão: responsabilidade com a carreira; iv) autodesenvolvimento profissional: responsabilidade com si próprio.

Portanto, são habilidade e valores que contribuem para a promoção da advocacia competente e responsável, mas considerados como fundamentais para uma formação continuada. Isto é, essa formação não se encerra nas faculdades de direito, pelo contrário, deve prevalecer na prática jurídica cotidiana tanto na vida acadêmica, com os educadores, quanto para os operadores do Direito, advogados e membros do Poder Judiciário.

Desse modo, visualiza-se como possibilidades no método de clínicas jurídicas a oportunidade do estudante de Direito relacionar teoria e prática, visando aprimorar os seus conhecimentos no campo jurídico em casos reais, participando ativamente do processo. Assim como possibilita aos mais necessitados o acesso à assistência jurídica gratuita e a promoção de um interesse público voltado para áreas sociais. Dois lados de um método de ensino que convergem para a promoção de habilidades e valores de uma advocacia eticamente competente e responsável.

3 LIMITAÇÕES: O CASO DO NPJ/CCJ/UFSC

O site do NPJ/CCJ/UFSC não traz o histórico da clínica, nem desde quando se denominou Núcleo de Prática Jurídica – NPJ, pois o nome antigo (ainda inscrito no site[9]) era Escritório Modelo de Assistência Jurídica – EMAJ. Diante das poucas informações disponíveis nos sites da universidade, nos limitaremos a encontrar semelhanças com o estudo de MACHADO e ALVES (2006) e os poucos detalhes publicizados pela instituição no site do NPJ/CCJ/UFSC.

Como já dito acima, o NPJ/CCJ/EMAJ tem como objetivo contribuir para a formação acadêmica do estudante do Direito e conciliar esse objetivo com a assistência jurídica gratuita aos mais necessitados. Essa assistência é realizada por duplas, matriculadas nas disciplinas de Prática Jurídica Real I, II, III e IV, e supervisionadas por um professor-orientar, o qual fica responsável pela avaliação e ações das duplas.

O estágio no NPJ/CCJ/EMAJ é obrigatório[10]. Portanto, para que o estudante de Direito da UFSC se forme é obrigatório a cumprir créditos-aula na prática jurídica, desde o sétimo semestre até o décimo, variando em cada semestre os dias que as duplas atenderão. “As turmas da 7a fase atenderão nas quintas-feiras; as da 8a, nas quartas-feiras, as da 9a, nas terças-feiras; e as da 10a, nas segundas feiras (…)”. [11]

O atendimento não abrange todas áreas do Direito, pelo contrário, concentra-se apenas em uma grande área: Direito Civil. A área de atuação é dividida do seguinte modo[12]:

1.    Procedimentos extrajudiciais

a)    Mediação familiar

2.    Procedimentos judiciais:

a)    Direito de Família: ação de alimentos; adoção; alteração de registro civil; guarda de menor; regulamentação e dissolução de união estável; ação de divórcio; outros;

b)    Direito Sucessório: inventário; arrolamento; outros;

c)    Direito Civil: interdição; ação em Direito do Consumidor (retirada de nome de cadastro de devedores e indenização); ação de medicamentos; responsabilidade civil do Estado (ação contra União, Estado, Municípios); Mandado de segurança (inclusive para pleitear vagas em creche);

d)    Direito Real: usucapião; reintegração e manutenção de posse; direitos de uso; outros direitos sobre propriedade.

Desse modo, percebe-se que outras áreas, tão ou mais importantes para a população hipossuficiente, como Direito do Trabalho e Direito Previdenciário, são ignoradas pelo NPJ/CCJ/UFSC. Encontramos aqui a primeira limitação, pois a falta de atendimento em áreas sociais demonstra a negligência com o atendimento à população, tão carente em seus direitos trabalhistas e com dificuldades com a previdência social em tempos de reformas estruturais do Estado.

A segunda limitação diz respeito ao método de intervenção. O NPJ/CCJ/UFSC tem uma atuação meramente reativa, sua participação tem início em uma relação de conflito instaurada previamente. Judicializado ou não, o problema já existe. A atuação de assessoramento e prevenção é ignorada, por exemplo, não há intercâmbio entre o núcleo e as associações de bairros, sindicatos e movimentos populares. Esse diálogo permitiria evitar conflitos e diminuir a judicialização, por exemplo, a partir das associações de bairros seria possível um diálogo com a população de um determinado bairro sobre métodos de resolução de conflitos sem a necessidade de judicialização ou mesmo para evitar o prolongamento de uma situação que poderia ser prevenida.

MACHADO e ALVES (2006) apresentam alguns problemas identificados em 1947 pelo Conselho de Ensino Jurídico para a Responsabilidade Profissional – CLEPR, que, embora tão distante no tempo, são presentes no ensino jurídico no Brasil.

  1. Pouca participação dos estudantes. Nos EUA, a participação em clínicas jurídicas é facultativa. No caso do NPJ/CCJ/UFSC é obrigatória. Portanto, todos os estudantes de Direito, para se formar, devem passar pelo estágio obrigatório, já que consiste em disciplina integralizada no currículo da graduação. Assim, esse problema não é identificado no NPJ/CCJ/UFSC. Por outro lado, não existem outras clínicas, exceto a Locus Iuri, o que limita a participação de estudantes de Direito em outras frentes, como na seara trabalhista e previdenciária.
  2. Dos que participavam, menos de 40% estavam em programas bem supervisionados e com efetivo envolvimento dos professores. Lembrando que essa análise é sobre a participação nas clínicas jurídicas nos EUA no anos de 1947. Ademais, para chegar a conclusões sobre qualidade e envolvimento da orientação dos professores, precisaríamos aprofundar os estudos, envolvendo análise de casos e entrevistas, o que não é o caso para o presente trabalho. Desse modo, tal problema foi exposto só para evidenciar um problema possível.
  3. Os créditos referentes às clínicas tinham pouca integração com o currículo como um todo. É possível visualizar isso na negligência de áreas sociais importantíssimas, como a trabalhista e previdenciária, crítica apontada acima. Além disso, o método de ensino fica a critério do professor, ou seja, se o professor ignorar a necessidade dos estudantes a aprenderem a redigir peças processuais, a atuação no NPJ/CCJ/UFSC fica debilitada por essa deficiência. É preciso reconhecer que muito tempo depois foi criada a disciplina Prática Jurídica, mesmo assim é insuficiente, primeiro, porque é optativa, mas o NPJ/CCJ/UFSC continua sendo obrigatório. Desse modo, cria uma disparidade entre aqueles que tiveram a oportunidade de fazer a disciplina e aqueles que não puderam por motivos diversos, e, segundo, continua sendo um momento posterior às disciplinas processuais, ou seja, aprender a fazer uma petição inicial parece estar descolado de aprender quais são os requisitos de uma petição inicial.
  4. Os orientadores das clínicas eram vistos como docentes de segunda categoria e as suas condições de trabalho e remuneração eram inferiores àquelas dadas aos demais professores. Novamente, o problema levantado aqui demandaria um estudo para confirmar se há ou não semelhanças com o NPJ/CCJ/EMAJ, portanto, serve como reflexão

Existem várias limitações, as quais são superáveis. Contudo, necessita mais de uma atitude crítica e política do que simplesmente uma mudança de planejamento ou de método educativo. Nesse sentido, tal mudança converge com a necessidade de repensar o ensino jurídico em uma sociedade marcada por fortes desigualdades sociais e abordar o perfil do jurista em formação numa perspectiva crítica. É desse modo que se poderá gerar uma possibilidade de mudança estrutural no modus operandi do mundo jurídico e na resolução de problemas sociais.

4 O ENSINO JURÍDICO E UMA PRÁTICA JURÍDICA CRÍTICA E TRANSFORMADORA

A educação pode ser um caminho transformador em uma sociedade extremamente desigual. O papel do ensino jurídico é (ou deveria ser) o de formar cidadãos aptos a atuar em um contexto de extrema pobreza, adotando uma perspectiva de mudança social. Isso só é possível com uma formação crítica, capaz de traduzir as demandas da classe trabalhadora. É claro, a posição assumida aqui tem um viés marcadamente de defesa dos interesses de uma classe social, a de trabalhadores. Isso não quer dizer que não haja o ensino jurídico voltado à reprodução do status quo e da dominação das elites sobre a classe trabalhadora, pelo contrário, ele existe e é majoritário. Contudo, no presente trabalho, o primeiro é defendido e o segundo, combatido.

É preciso reconhecer que o Direito também é uma instância ideológica. Antônio Alberto MACHADO (2009, p. 35) aponta que “o direito é um fenômeno ideológico […]. A ideia de direito, sua metodologia e fins estão […] condicionados pelos interesses e, portanto, pela visão de mundo daqueles que se propõem à tarefa de lidar com o fenômeno jurídico”. Como instância ideológica, o Direito reproduz enunciados, sistemas de regras legais, objetivos e valores de um grupo social. No capitalismo, o Direito funciona como instrumento da classe social que tem a hegemonia ideológica e o controle do Estado: a burguesia (não sem contradições e polarizações políticas).

Portanto, o ensino do Direito reflete a visão de mundo de um grupo social que mantém uma estrutura ideológica baseada no liberalismo, na articulação entre conservadorismo, retórica liberal e práticas patrimonialistas. O positivismo ainda é a marca do ensino jurídico, com ênfase no normativismo e no método lógico-formal em detrimento dos problemas sociais reais vivenciados pelos sujeitos (MACHADO, 2009). Ademais, como visto acima, essa ideologia liberal influência nas escolhas de quais áreas a clínica jurídica vai atender, o caso do NPJ/CCJ/UFSC é explícito, dominado pelo Direito Civil.

Desse modo, o ensino jurídico dá destaque ao formalismo, no estudo de códigos e procedimentos formais; volta-se para o tecnicismo (mesmo assim com problemas de formação técnica); predominantemente positivista; esvaziado de conteúdo social e humanístico etc. Também é promotor da ideia de que o Estado é o único produtor de Direito, ou seja, detentor do monopólio da produção normativa, assim, ignora-se a produção de Direito fora do âmbito do Estado em detrimento do pluralismo jurídico.

Assim sendo, é possível outro ensino jurídico? É possível que o direito seja um instrumento de mudança social? Para MACHADO (2009) é possível. A possibilidade é vislumbrada pela teoria crítica do Direito, que, segundo o autor, articula um saber antidogmático com o diálogo concreto com as realidades sociais do fenômeno jurídico. A saber:

Portanto, esse pensamento parte da constatação de que o idealismo que caracteriza o universo teórico tradicional do direito, limitado pelo conhecimento lógico-formal e meramente descritivo de normas e instituições, tal como positivadas pelo legislador racional, jamais responderá às necessidades concretas dos sujeitos sociais. Tais necessidades, demandas e aspirações somente podem ser absorvidas e contempladas por meio de uma aplicação do direito inteiramente articulada com a base material da sociedade, sensível aos problemas reais desta última, e comprometida com a sua transformação democrática. (MACHADO, 2009, p. 53)

Assim, uma das correntes da teoria crítica é a Escola Dialética do Direito, com destaque para o professor Roberto Lyra Filho, defensor da ideia de que o Direito e o ensino jurídico:

Devem ser agentes de um conhecimento mais completo e profundo, e não apenas conhecer artigo, parágrafos e alíneas que representam as noções burguesas de liberdade, cultura e direito […]. Vosso direito não passa da vontade de vossa classe erigida em lei, vontade cujo conteúdo é determinado pelas condições materiais de vossa existência como classe. (LYRA FILHO, 1980, p.44)

Assim, segundo Lyra Filho (1980), os currículos e programas dos cursos de Direito, em geral, não propõem uma abordagem dinâmica, totalizadora e progressista da área jurídica. Portanto, o direito estatal ganha relevo nesse modelo de ensino, porém, mesmo assim, considerado pleno, hermético e livre de contradições. Desse modo, ignora o Direito como possibilidade da concretização de justiça social, deixada em segundo plano; assim, diante desse modelo, cumpriria defender uma reforma no ensino jurídico, a revisão das mutilações do direito, para alterar o que se tornou comum.

É aqui, portanto, que a prática extensionista voltada a atender e resolver as demandas sociais nacionais entra como perspectiva de mudança, aliada ao ensino e à pesquisa para tanto formar profissionais qualificados – competentes, responsáveis e sensíveis – quanto para a ajudar aos mais necessitados (seria bom usar o termo retorno, haja vista que o financiamento de instituições públicas é realizado com o suor e sangue da classe trabalhadora). Destarte, o NPJ/CCJ/UFSC não poderia deixar de ofertar o atendimento em áreas sociais, como trabalhista e previdenciário, nem ignorar o assessoramento de associações de bairros, sindicatos e movimentos sociais, pois assim estaria mais próximo de cumprir com a sua função social.

Em seu trabalho sobre a advocacia popular, Alberto Liebling KOPITTKE (2010, p. 53) afirma que “o caminho para corrigir as distorções das ideologias começa no exame não do que o homem pensa sobre o Direito, mas do que juridicamente ele faz”. Isto é, é na prática que verificamos a conformação do homem a determinadas ideologias, assim poderemos chegar na dialética do Direito, “não já como simples repercussão mental na cabeça dos ideólogos, porém como fato social, ação concreta e constante donde brota a repercussão mental”.

Dessa maneira, através deste diálogo entre experiência e prática dialética, é possível a formulação de uma concepção do Direito que não ignore as conquistas jurídicas fruto da luta social dos excluídos (como é o caso da igualdade formal e da própria democracia), e, ao mesmo tempo, reconheça a legitimidade da luta pela efetivação daqueles direitos que ainda não se encontram nas leis, ou especialmente, na realidade concreta da maioria da população. (KOPITTKE, 2010, p. 94)

Essa abordagem nos dá a visão de que o NPJ/CCJ/UFSC está distante de realizar esse papel transformador, pois, como apontado acima, reproduz a realidade majoritária do ensino jurídico em detrimento de uma perspectiva dialética do Direito. Isso significaria abandonar noções básicas que se tornaram autoevidentes no mundo jurídico: o Estado como único produtor de normatividade; o positivismo e/ou formalismo; o modelo lógico-formal etc. Portanto, a teoria crítica do Direito – e a Teoria Dialética do Direito – se apresenta como uma ferramenta eficaz na defesa de interesses coletivos e humanistas. Como afirma KOPITTKE (2010, p. 94), “a concepção dialética do direito […] é fundamental para a consolidação substancial do Estado Democrático e Social de Direito, promovendo o reencontro do Direito com a Justiça”.

5 CONCLUSÃO

É evidente que esse trabalho é insuficiente para abordar toda a complexidade das análises sobre o ensino jurídico, nem foi a pretensão do autor. Contudo, é um passo, entre tantos outros, dado para a compreensão desse fenômeno social que ganha cada vez mais espaço na nossa sociedade: o Direito.

Com o objetivo de propor mudanças no ensino e, sobretudo, na prática jurídica, foram abordadas algumas possibilidades e limitações do método de clínicas jurídicas, em especial o modelo de prática jurídica em casos reais, o qual concilia o intercâmbio entre teoria e prática e a assistência jurídica à população hipossuficiente.

Por um lado, entre as possibilidades, foi demonstrada a importância de uma extensão que forme profissionais do Direito continuamente, aperfeiçoando habilidade e valores voltados para qualificação de juristas competentes, responsáveis e sensíveis às demandas sociais. Por outro, demonstrou-se que existem limitações ao método, mas, como sustenta o autor do trabalho, com problemas mais políticos do que acadêmicos, os quais podem ser ultrapassados se adotarmos uma postura crítica diante da situação.

É nesse sentido que optou-se por expor uma das teorias críticas do Direito, a Teoria Dialética do Direito, com destaque para o professor Roberto Lyra Filho. Para romper com a visão extremamente positivista do Direito e de que o Estado é o único produtor de normatividade, vislumbrando o caráter ideológico do Direito e apontando suas contradições, assim, apostando nas oportunidades que a tensão política permite espaços para a transformação.

Concluindo, o Direito não é um fenômeno neutro. O mundo jurídico comporta contradições, bem como o ensino jurídico é permeado por tensões e ideologias diversas. A hegemonia de uma ideologia não significa sua imutabilidade na história, pois sua vitória significou a derrota ou incorporação de outras que a precederam. Pensar num Direito crítico e, portanto, num ensino jurídico transformador é tarefa não só de educadores, mas também de todos os operadores do Direito preocupados com a realidade social. Por isso, apontar as críticas do NPJ/CCJ/UFSC significa explicitar as contradições de um modelo com o intuito de intervir e transformar para que os estudantes de Direito, juristas em formação, possam compreender esse espaço como uma possibilidade, a possibilidade de dizer: existe outro Direito.

Referências bibliográficas

KOPITTKE, Alberto Liebling. Introdução à Teoria e Prática no Direito Brasileiro: a experiência da Renap. São Paulo: Expressão Popular, 2010.

LYRA FILHO, Roberto. O Direito que se ensina errado. Brasília: Centro Acadêmico de Direito da UnB, 1980.

MACHADO, Antônio Alberto. Ensino Jurídico e Mudança Social. São Paulo: Expressão Popular, 2009.

MACHADO, Ana Mara França; ALVES, Rafael Francisco. Programas de clínicas nas escolas de Direito de universidade norte-americanas. São Paulo: FGV, set. 2006. (Cadernos Direito GV, v. 2, n. 5). Disponível em:  http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/2824



[1]Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito – PPGD da Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail:  rrafaceleste@gmail.com

[2]Informações disponíveis no seguinte endereço eletrônco:  http://www.abc.org.br/2019/04/15/universidades-publicas-respondem-por-mais-de-95-da-producao-cientifica-do-brasil/

[3] Para fins práticos, usarei a sigla NPJ/CCJ/UFSC sempre que necessário citar o exemplo utilizado no presente artigo. .

[4]Informações disponíveis no seguinte endereço eletrônco:  http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2019-08/taxa-de-desemprego-no-brasil-cai-para-118-em-julho-diz-ibge

[5]Informações disponíveis no seguinte endereço eletrônco:  https://www.dw.com/pt-br/desigualdade-entre-ricos-e-pobres-%C3%A9-a-mais-alta-registrada-no-brasil/a-50860552

[6] Informações disponíveis no seguinte endereço eletrônco:  https://ccj.ufsc.br/emaj/

[7] No NPJ/CCJ/UFSC é usado o termo assistido, na tentativa de fugir da ideia consumerista entre cliente e prestador de serviços.

[8]Informações disponíveis no seguinte endereço eletrônco:  https://locusiuris.com.br/

[9]Informações disponíveis no seguinte endereço eletrônco:  https://ccj.ufsc.br/emaj/

[10] Informações sobre o currículo do curso disponíveis no seguinte endereço eletrônico:  https://ccj.ufsc.br/curriculo/

[11]Informações disponíveis no seguinte endereço eletrônco:  https://ccj.ufsc.br/emaj/

[12]Informações disponíveis no seguinte endereço eletrônco:  https://ccj.ufsc.br/area-de-atuacao/

Como citar e referenciar este artigo:
CELESTE, Rafael. Possibilidades e limites das clínicas jurídicas: o caso do Núcleo de Prática Jurídica – NPJ do Centro de Ciências Jurídicas – CCJ da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2020. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/conhecimento-artigos/possibilidades-e-limites-das-clinicas-juridicas-o-caso-do-nucleo-de-pratica-juridica-npj-do-centro-de-ciencias-juridicas-ccj-da-universidade-federal-de-santa-catarina-ufsc/ Acesso em: 27 jul. 2024