Pelo Código Civil de 1916, a mulher foi obrigada a adotar “os apelidos” do marido, eis que a família era identificada pelo patronímico do varão.
A mudança compulsória do sobrenome não abalava a segurança das relações sociais. Afinal, com o casamento, a mulher perdia a plena capacidade. Seus bens passavam à administração do marido e ela precisava da autorização dele para trabalhar.
Foi o chamado Estatuto da Mulher Casada (Lei 4.121/1962) que devolveu à esposa sua plena capacidade e, com isso, a liberdade de trabalhar e gerir seus bens.
Neste contexto histórico é que foi editada, em 1973, a Lei 6.015 – Lei dos Registros Públicos, que consagrou o princípio da imutabilidade do nome para emprestar garantia aos registros públicos.
A imposição de mudança do nome pela mulher perdurou por mais de 60 anos, até o advento da Lei do Divórcio (L 5.015/1977). Admitida a dissolubilidade do casamento, a alteração se tornou facultativa.
Já o Código Civil atual faculta a ambos os noivos adotar o sobrenome do outro, o que permite a troca de sobrenome entre eles.
Quando do casamento, bastava a livre manifestação do noivo para que fosse possível a mudança do sobrenome.
Do mesmo modo, por ocasião quando do divórcio, tinha o cônjuge a faculdade de retornar ao nome de solteiro.
Apesar de ditas alterações provocarem a alteração da própria identidade da pessoa, não havia qualquer preocupação com a segurança social.
Agora, reconhecia repercussão geral, no julgamento da ADI 4.275, o Supremo Tribunal Federal (STF) assegurou aos transgêneros o direito de alterarem nome e sexo, diretamente junto ao registro civil, mediante autodeclaração, independente de terem realizado tratamento hormonal ou cirurgia de redesignação sexual.
Diante da decisão claramente autoaplicável, muitos cartórios passaram a proceder à alteração. Em face da insegurança de alguns registradores, vários Estados editaram provimentos regulamentando o procedimento retificatório, com o cuidado de atentar ao propósito da decisão em desjudicializar e agilizar a mudança, de modo a preservar a dignidade de quem busca adequar o nome à sua própria identidade.
De forma surpreendente – e para lá de preconceituosa – o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) expediu o Provimento 73/2018, trazendo uma série de exigências e limitações não impostas pelo STF.
Condiciona o pedido a quem tenha completa habilitação para a prática de todos os atos da vida civil, sem atentar que o Estatuto da Pessoa com Deficiência (L 13.146/2015) assegura a quem protege, o direito ao exercício da capacidade legal em igualdade de condições, sendo que a curatela afeta tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial. Assim, do jeito que está posto, o fato de alguém não ter condições de gerir seus bens não o autoriza a pedir a alteração da identidade de gênero.
Do mesmo modo, limita a pretensão a quem tiver mais de 18 anos, a impedir a iniciativa, a partir dos 16 anos, com a assistência dos pais. A restrição é igualmente descabida, uma vez que a identidade trans, de modo geral, se manifesta muito cedo e é causa de enorme sofrimento. Principalmente na adolescência, o que leva à evasão escolar e consequente baixa escolaridade e dificuldade de ingressar no mercado de trabalho, restando em situação de absoluta vulnerabilidade.
De outro lado, ao exigir um número exacerbado de negativas, parece pressupor uma pretensão espúria do requerente, impondo-lhe um verdadeiro calvário, dificilmente superável por quem, é marginalizado e excluído da sociedade.
Dita norma regulatória, no entanto, dispõe de efeito de outra ordem.
Como só agora foi estabelecido um procedimento para a alteração do elemento mais significativo da identidade de alguém, o mesmo é aplicável também ao pedido de alteração do sobrenome quando do casamento ou do divórcio. São situações que em nada se diferenciam do pedido de mudança do prenome da população trans. Qualquer das mudanças afronta o princípio da imutabilidade identitária e fragiliza a estabilidade das relações jurídicas.
Assim, manifestando um ou ambos os noivos o desejo de adotar o sobrenome do outro; ou, no divórcio, havendo o pedido de retorno ao nome de solteiro, é indispensável exigir certidões dos últimos cinco: do distribuidor cível, distribuidor criminal, execução criminal e de todos os tabelionatos de protesto, bem como das Justiças Eleitoral e do Trabalho.
A falta de qualquer destes documentos, impede quaisquer das alteração pretendidas. Havendo alguma ação em andamento, o Oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais deve comunicar aos órgãos competentes. Do mesmo modo, às expensas do requerente, devem ser cientificados os órgãos expedidores do RG, ICN, CPF, passaporte e o Tribunal Regional Eleitoral.
Ou é assim, ou o Provimento é escancaradamente discriminatório e tisnado de evidente inconstitucionalidade, ao pressupor a má-fé de quem, tanto quanto os noivos e os divorciandos, pretende a alteração registral na busca da felicidade.
Maria Berenice Dias
Presidente Nacional da Comissão de Diversidade Sexual e Gênero da OAB e da Comissão de Direito Homoafetivo e Gênero do IBDFAM