Vitimologia eSistema Penal: Por Um Garantismo da Vítima
Lélio Braga Calhau*
1. Notas Introdutórias (Violência e criminalidade).
No atual sistema de Justiça Criminal que o Brasil adota, a vítima foi esquecida; seu âmbito de expectativas é muito escasso; a reparação dos danos não é prioridade, senão a imposição do castigo. Buscava-se, quase que exclusivamente, a aplicação da pena para os acusados.
A justiça é, com efeito, a condição básica para o funcionamento harmônico de uma sociedade, em particular da sociedade moderna, democrática, em que justiça pressupõe não fazer distinções arbitrárias e usar regras visando primordialmente o equilíbrio adequado entre ações de muitas espécies, interesses conflitantes e diversas interpretações do que vem a ser justo ou injusto. Justiça é, portanto, “a primeira virtude das instituições sociais”, que, se forem injustas deverão ser reformadas ou mesmo abolidas, não importa quão eficientes, equilibradas e bem organizadas sejam. Nesse sentido, justiça é o requisito elementar de uma comunidade organizada; o primeiro, porém não o único, como vimos acima, nem exclusivo de determinadas instituições (2).
Até pouco tempo atrás os movimentos de direitos humanos protestavam veementemente contra as condições dos presos, em suas respectivas celas de penitenciárias, cadeias públicas ou distritos policiais, na maioria das vezes com inegável razão, entretanto, esqueciam-se completamente das vítimas desses mesmos criminosos, como se não existissem, ou mesmo não tivessem sido profundamente prejudicados pelo ilícito criminal contra elas perpetrado (3).
Violência e criminalidade são realidades cada vez mais presentes no cotidiano de nosso país. É chegado o momento de se pôr um termo nas saídas políticas mirabolantes e do amadorismo das instituições, que se apegam em métodos a muito superados para combater o crime. A Justiça Restaurativa (4), com a sua afirmação da importância, da vítima criminal na resolução do conflito é um modelo que pode suceder grande parte do espaço de conflito que atualmente é administrado pela Justiça Criminal Ordinária. Leciona Pedro Scuro Neto que violência e criminalidade também podem ser – na verdade são –encaradas pela sociedade e o direito, em particular, como se fossem uma caixa preta. São problemas sobre os quais pouco sabemos além de suas terríveis conseqüências, acerca dos quais freqüentemente nada queremos saber e, não podendo descartá-los, angustiados, com eles aprendemos a conviver (5).
Ser vítima criminal é um fato social cada vez mais rotineiro. Lamentavelmente, nem o Direito Penal, nem o Estado, nem juízes, promotores, policiais, passaram a buscar uma melhor posição para a vítima criminal em nosso sistema penal. Em pesquisa realizada na internet pelo nosso sítio (Revista de Direito Penal – www.direitopenal.adv.br), foram consultados 421 internautas, de 01.06.03 a 10.08.03, se o Direito Penal brasileiro deve tratar com mais equilíbrio o acusado, a vítima direta e a sociedade civil. Setenta e quatro por cento (74%) votaram pela necessidade de mudança no Direito Penal brasileiro para que o mesmo dê melhor tratamento à vítima criminal. Quatorze ( 14%) por cento entenderam que o Direito Penal deve manter o modelo atual, nove por cento (9%) não tinham opinião formada e três por cento (3%) afirmaram que esse assunto não interessa ao Direito Penal.
Nesse ponto, a lição de Paulo Queiroz ao analisar as funções do moderno Direito Penal é salutar: assim postas as coisas, cumprirá, decorrentemente, reintegrar a vítima no conflito, devendo-se privilegiar alternativas que minorem o sofrimento pelo qual tem passado aquele diretamente ofendido pelo delito. Vale dizer: deve a sentença penal buscar não apenas reprimir a conduta praticada pelo agente, mas também, dentro de certos limites, consultar os reais interesses da vítima do crime (de reparação do dano, prestação de serviços a ela, inclusive etc), sempre que isso seja possível (6). Nesse contexto, a Lei 9.099/95 inovou ao adotar postulados inovadores defendidos pela Justiça Restaurativa.
2. Garantismo: só do acusado?
Um dos modismos no atual Direito Penal brasileiro é o garantismo de Luigi Ferrajoli. A tradução brasileira Direito e Razão lançada no ano de 2002, com certeza, irá incentivar cada vez mais a aplicação dos conceitos do Professor Ferrajoli em nosso país. A teoria do garantismo se apresenta como uma teoria que dá sustentação à defesa dos direitos fundamentais no plano jurídico, inclusive, tratando sobre a incongruência da norma penal com elementos formais (vigência) ou do próprio conteúdo (validez) dos direitos fundamentais (7).
A reconquista da legitimidade do sistema repressivo depende de nossos esforços em elaborar dogmática que mantenha estreito contato com a realidade social e estimule nos operadores do Direito a atenção para com a preservação das garantias individuais. A planificação normativa há que se tornar realizável, e a resposta estatal ao fenômeno da criminalidade orientada por prudente reflexão (8).
Não se pode abrir mão da tarefa de aperfeiçoar a construção teórico-dogmática em se de direito penal. Rediscutir a dogmática penal é questão quer permanece atual, pois a operação justa do Direito pressupõe a observância de princípios fundamentais da matéria (9). É tarefa inadiável dar ao país uma nova e enxuta legislação penal (excetuando-se os princípios gerais, corretamente previstos na nova parte geral do Código Penal), em consonância com a pauta de valores e as exigências sociais dos tempos presentes. Posta esta legislação, necessário é que um Judiciário preparado e desenvolto dê uma resposta à criminalidade, que não deve ser nem tão rápida de forma a violentar os direitos humanos e a aplicação justa e correta da lei, mas o suficientemente célere, de modo a não torná-la inócua.
E tudo complementado por uma organização e uma política penitenciária, e pós-penitenciária, que pelo menos constitua uma responsável e séria tentativa de ressocialização dos que nos descaminhos da vida um dia buliram com os manes penais mas continuam a ser, por mais hediondos que hajam sido seus crimes, pessoas humanas (10). A teoria do Direito e a fundamentação epistemológica do Direito Penal Mínimo em Luigi Ferrajoli são de profunda técnica. Todavia, o autor padeceu de grave erro ao não dar á vítima criminal o espaço necessário que a mesma deveria receber do Direito Penal moderno. Tinha Ferrajoli a chance de dentro de seu sistema de garantismo, buscar uma posição de equilíbrio ( já que se busca acima de tudo a Justiça Material), mas da vítima quase nada disse, ficando seu garantismo, apenas como o garantismo do acusado.
3. “Direito Penal da Vítima”: uma realidade?
O Direito Penal da Vítima é um paradigma e uma demanda legítima da sociedade. Isso não significa a maximização do Direito Penal. Tanto um Direito Penal ausente (como no abolicionismo) como um Direito Penal Máximo, não atendem os anseios da sociedade civil brasileira. O Direito Penal deve ser responsável.
Não pode ser apenas um instrumento de opressão das classes dominantes, servindo de função simbólica para o Congresso nacional, mas também não pode evadir de sua responsabilidade de proteção da sociedade civil, como instrumento de ultima ratio. A posição de equilíbrio entre o réu e a vítima deve ser buscada. Com certeza será difícil de ser determinada, mas não deve ser abandonada, pois a sociedade é uma sociedade de vítimas (não de réus).
4. Sobre a criação do Fundo Nacional de Assistência às Vítimas de Crimes Violentos.
Com exceção de algumas ações isoladas, empreendidas nos poucos Centros de Apoios de Vítimas Criminais mantidos precariamente pelo Ministério da Justiça e governos estaduais em nosso país, e pelo trabalho voluntário e incansável de organizações não-governamentais, o que se vê é um quadro desolador para a vítima criminal em nosso país (11).
Durante o mês de julho de 2003, em iniciativa louvável, foi apresentado no Senado federal um projeto de autoria do Senador José Sarney que institui o Fundo Nacional de Assistência às Vítimas de Crimes Violentos. O projeto, que regulamenta dispositivo constitucional, receberá decisão terminativa da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ)(12). Todavia, a simples adoção de uma lei não será capaz de mudar a realidade da vítima criminal (principalmente que demande recursos passíveis de serem mínimos, em função de injunções políticas). Temos que avançar para criar tanto na sociedade civil como no Estado uma cultura de defesa da vítima criminal.
5. Nossa contribuição: a criação de uma norma constitucional onde a proteção da vítima criminal seja efetivada como uma cláusula pétrea.
Para isso seria de grande valor simbólico e norteador das ações do Estado que a Constituição Federal de 1988 recebesse uma emenda, adicionando ao artigo 5o, que trata dos direitos e garantias fundamentais, prevendo que a proteção da vítima criminal passe a ser um dos direitos fundamentais da carta Magna. Com isso haveria a possibilidade de se elevar o tratamento da vítima criminal (em total descaso na atualidade) a ponto de relevância na missão do Estado brasileiro, possibilitando ainda ao Poder Judiciário, uma releitura de diversas de suas decisões que na atualidade prestigiam (e não seria de forma diversa) totalmente o acusado em detrimento da vítima criminal e de seus familiares.
6. Considerações finais.
A sociedade civil deve buscar participar de forma imediata no problema das vítimas. O Estado deve fomentar, através de subsídios, a criação de organizações não governamentais que dêem assistências às vítimas criminais. Vários países, entre eles, Estados Unidos, Nova Zelândia, Inglaterra e Portugal, possuem organizações que prestam grande assistência às vítimas, inclusive em nível jurídico, psicológico e social.
A sociedade para atingir o valor básico de dignidade da pessoa humana, também deve zelar pelos direitos das vítimas promovendo a criação de entidades, tais como as associações de proteção às vítimas existentes nos Estados Unidos, subsidiando-as com fundos provenientes das multas aplicadas no sistema da Justiça Criminal brasileira. A aprovação de uma emenda constitucional declarando a proteção da vítima criminal como cláusula pétrea no Brasil, não teria, por si só, a condição de mudar a realidade de descaso que passa a vítima em nosso sistema criminal. Todavia, como primeiro passo restabeleceria uma posição de equilíbrio entre vítima-acusado e serviria como norte para a redefinição dos tratamentos pelo Estado (Poder Legislativo, Judiciário e Executivo) e facilitaria a implantação da Justiça Restaurativa no país. Só assim passaremos a dispor de um verdadeiro Garantismo da Vítima.
7. Notas de páginas.
(1) – Tese apresentada no Congresso Mundial de Criminologia, realizado pela Sociedade Internacional de Criminologia, no Rio de janeiro, em agosto de 2003.
(2) – SCURO NETO, Pedro. Justiça e sistema social. Versão provisória de um texto de apoio à conferência “Movimento restaurativo e a Justiça do século XXI”, recepcionada pela Escola Superior do Ministério Público da União, Brasília, 26 jun. 2003.
(3) – GARCIA, Carlos Roberto Marcos. Aspectos relevantes da vitimologia. RT 769/452.
(4) – Já introduzida em parte com o advento da Lei 9.099/95 (Juizado especial Criminal).
(5) – SCURO NETO, Pedro. O mistério da caixa preta-violência e criminalidade, São Paulo, Oliveira Mendes, 1998, p. 1.
(6) – QUEIROZ, Paulo de Souza. Funções do Direito Penal – legitimação versus deslegitimação do sistema penal, Belo Horizonte, Del Rey, 2001, p. 130.
(7) – Vide: FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón – teoria del garantismo penal. 3ª ed., Madrid, Trotta, 1998.
(8) – O estado não pode arrogar-se a faculdade de editar regras criminalizantes conforme sua vontade, ou de acordo com anseios político-administrativos de um governo. Tem que submeter a princípios retores de tal trabalho legislativo. Do contrário, estará criando leis eventualmente viciadas pela afronta à Constituição do país, sob ângulo interpretativo dos princípios da razoabilidade ou da proporcionalidade. ROSA, Fábio Bittencourt da. Legitimação do ato de criminalizar. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2001, p. 20.
(9) – GALVÃO, Fernando. Política Criminal. Belo Horizonte, Mandamentos, 2000, p. 130.
(10) – LUISI, Luiz. Um discurso sedicioso: a minimização do Direito Penal. In Discursos Sediciosos, número dois, Rio de Janeiro, 1996, Instituto Carioca de Criminologia, p. 42.
(11) – Apenas a título de exemplo, o estado de Minas Gerais só possui um Núcleo de Atendimento de Vítimas de Crimes Violentos, o qual funciona na capital Belo Horizonte, que vem se dedicando com afinco a garantir a cidadania das vítimas criminais.
(12) – De acordo com a proposta, a União dará assistência financeira às vítimas ou herdeiros e dependentes carentes quando verificada a prática dos seguintes crimes dolosos: homicídio, lesão corporal de natureza grave que resulte debilidade permanente de membro, sentido ou função, incapacidade permanente para o trabalho, enfermidade incurável, perda ou inutilização de membro, sentido ou função; ação contra a liberdade sexual, cometida mediante violência ou grave ameaça; homicídio ou lesão corporal de natureza grave, provocado por projétil de arma de fogo, quando ignorado o autor e as circunstâncias do disparo, ainda que inexista dolo (é o caso da bala perdida). O Fundo Nacional de Assistência às Vítimas de Crimes Violentos, a ser instituído no Ministério da Justiça, terá como fontes de recursos as dotações orçamentárias da União; as doações, auxílios, subvenções ou transferências voluntárias de entidades públicas ou privadas e de pessoas físicas; os decorrentes de empréstimos junto às agências ou bancos de desenvolvimento; as multas originárias de sentenças penais condenatórias com trânsito em julgado no âmbito da Justiça Federal; e as fianças quebradas ou perdidas nos termos da legislação processual penal, entre outras. JORNAL DO SENADO. CCJ examina fundo para vítimas de ação violenta. Brasília, 30.07.03.
8. Referências bibliográficas.
CALHAU, Lélio Braga. Vítima e Direito Penal, 2a. ed, Belo Horizonte, Mandamentos, 2003. ____________________. Vítima, justiça criminal e cidadania. Revista do IBCCrim, 31, São Paulo, RT, 2000.
FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón – teoria del garantismo penal,/i>. 3ª ed, Madrid, Trotta, 1998.
GALVÃO, Fernando. Política Criminal. Belo Horizonte, Mandamentos, 2000, p. 130. GARCIA, Carlos Roberto Marcos. Aspectos relevantes da vitimologia. RT 769/452.
JORNAL DO SENADO FEDERAL. Brasília, 2003. LUISI, Luiz. Um discurso sedicioso: a minimização do Direito Penal. In Discursos Sediciosos, número dois, Rio de Janeiro, 1996, Instituto Carioca de Criminologia, p. 42.
QUEIROZ, Paulo de Souza. Funções do Direito Penal – legitimação versus deslegitimação do sistema penal, Belo Horizonte, Del Rey, 2001, p. 130. ROSA, Fábio Bittencourt da. Legitimação do ato de criminalizar. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2001, p. 20.
SCURO NETO, Pedro. O mistério da caixa preta – violência e criminalidade, São Paulo, Oliveira Mendes, 1998. ____________________. Justiça e sistema social. Versão provisória de um texto de apoio à conferência “Movimento restaurativo e a Justiça do século XXI”, recepcionada pela Escola Superior do Ministério Público da União, Brasília, 26 jun. 2003
* Criminólogo. Professor de Direito Penal da UNIVALE – Universidade do Vale do Rio Doce. Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Pós-Graduado em Direito Penal pela Universidade de Salamanca (Espanha). Mestre em Direito do Estado e Cidadania pela Universidade Gama Filho (RJ).
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