Direito Administrativo

Parcerias Público-Privadas- PPPs

Parcerias Público-Privadas- PPPs

 

 

Kiyoshi Harada*

 

 

O projeto de lei conhecido como ‘PPPs’, de nº 2.546/03, já foi aprovado na Câmara dos Deputados sob forte pressão do governo que, agora, ameaça editar medida provisória a respeito, caso o Senado Federal continue querendo exercer sua prerrogativa legislativa, mediante amplos estudos e debates, ao invés de simplesmente referendar o que foi aprovado pela Câmara Baixa.

 

     Esse projeto legislativo é um desastre total do ponto-de-vista jurídico-constitucional. Representa, sem sombra de dúvida, um outro instrumento poderoso de desmontar a administração pública, como a terceirização e a privatização de serviços públicos não terceirizáveis nem privatizáveis.

 

     Prescreve o art. 175 da CF:

 

‘Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos’.

 

     O texto proclama com lapidar clareza que os serviços públicos só podem ser executados diretamente pelo Poder Público, ou por concessionários ou permissionários, vencedores de certames licitatórios . Estes prestam serviços públicos em nome do Poder Público, titular desses serviços, mediante percepção direta da remuneração (tarifa) dos usuários . Por isso, nada recebem do Poder Público a título de remuneração e respondem objetivamente pelos danos que seus agentes causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos caos de dolo ou culpa (art. 37, § 6º da CF).

 

     A administração pública é regida pelos rígidos princípios de direito público, onde se sobressaem o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado e o princípio da indisponibilidade do interesse público, além de inúmeros outros expressos no art. 37 da Carta Política. O agente público só pode agir quando, onde e como a lei prescrever. É escravo fiel da lei. O setor privado é informado pelo princípio da licitude ampla. Por isso, o particular pode fazer tudo que a lei não proíbe e nem contrarie os bons costumes. É informado pelo princípio da autonomia da vontade.

 

     O Poder Público detém o monopólio legislativo, o monopólio punitivo e o monopólio tributário. O particular limita-se a se submeter à legislação estabelecida pelo Poder Público (Estado) e está obrigado a transferir, ao primeiro, parcela da riqueza que produzir, sob a forma de tributos. Essa riqueza é produzida sob o regime de economia privada, que tem como sua espinha dorsal o princípio da livre concorrência. O Estado só pode intervir diretamente na exploração da atividade econômica nos casos de imperativos de segurança nacional, ou de relevante interesse coletivo, para implementar o setor não desenvolvido pela iniciativa privada, quer em razão do vulto do capital exigido, quer em razão da demora no retorno do capital investido. Mesmo nesses casos, as empresas estatais, que fazem às vezes do Estado, devem sujeitar-se ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive, no que tange às obrigações trabalhistas e tributárias (art. 173, §§ 1º e 2º da CF).

 

     Com tantos contrastes, pergunta-se, como é possível uma parceria público-privada para prestação ou exploração de serviço público ou o desempenho de atividade de competência da administração pública, precedido ou não da execução de obra pública , como permite o art. 3º do projeto legislativo sob exame? Como se explica essa promiscuidade entre o interesse público e o interesse privado, quase sempre antagônicos? O particular satisfaz o interesse individual, ou seja, persegue o lucro do empreendimento, consubstanciado na execução de obras ou serviços, ao passo que, a administração pública persegue o interesse da coletividade que, muitas vezes, impõe o sacrifício de interesses particulares. Enfim, o particular dispõe de máquina para produzir riquezas, enquanto o poder público dispõe de máquina para retirar, compulsoriamente, parcela da riqueza produzida. Como conciliar esse antagonismo? Há algo de muito estranho nisso tudo!

 

     Confirmando a estranheza acima apontada, está o art. 7º do projeto autorizando o Poder Público a instituir garantias a favor do parceiro privado. Para efetivação dessa garantia pode até vincular receitas públicas como se estas fossem bens disponíveis do poder público, e não bens indisponíveis, inegociáveis e irrenunciáveis sob pena de responsabilidade do governante, porque receitas públicas existem para consecução das finalidades do Estado, que se resumem na realização do bem comum. Pelo princípio de unidade de tesouraria, todas as receitas públicas devem ser recolhidas ao Tesouro e daí saírem apenas e tão somente em forma de despesas legalmente autorizadas , de conformidade com as dotações fixadas na Lei Orçamentária Anual, sem o que, inviabiliza-se a implementação do mecanismo de fiscalização e controle da execução orçamentária. Será isso que querem os defensores desse projeto legislativo? Não seria mais prudente deixar o Senado da República refletir sobre isso?

 

     Esse parceiro privado, que o projeto denomina de ‘qualquer interessado’ (parágrafo único do art. 2º), na verdade, só pode ser aquele próximo à administração pública que submete os concorrentes a um certame licitatório sui gneris , a ser julgado pelo critério da melhor técnica ou da melhor proposta econômica , ou, ainda, pela combinação de ambos . O critério objetivo para aferição da proposta vencedora, previsto na lei de regência, deixa de existir. O parceiro privado escolhido passa a operar nos diferentes campos da atividade pública e privada, sem o riscos usuais do regime empresarial , porque beneficiário de garantias públicas a serem outorgadas ao arrepio das normas da Lei nº 4.320/64 e da LC nº 101/00, que disciplinam a conduta da administração pública em matéria de finanças públicas.

 

     Tudo tende no sentido de tornar nebuloso o marco divisor entre o público e o privado, de sorte a afastar ou dificultar a aplicação dos preceitos de direito público. Cria-se um condomínio de que participam setores com interesses opostos. Costuma-se invocar o patriotismo para justificar esse tipo de simbiose. Só que esse tipo de patriotismo é privilégio de poucos. Vejam-se as ONGs contempladas com vultosas verbas públicas, quase sempre desviadas na consecução de seus meritórios objetivos filantrópicos . Afinal, fazer cavalheirismo com chapéu alheio é fácil!

 

     Essa mistureira generalizada, entre o interesse público e o interesse privado, acaba desorganizando os dois setores ao mesmo tempo. De um lado, afasta do mercado da livre concorrência os setores empresariais ou empresários não afinados com a filosofia dos detentores temporários do poder político. Isso representa, sem sombra de dúvida, uma extrapolação do poder regulatório do Estado no campo da atividade econômica (art. 174 da CF). De outro lado, mina as bases da administração pública, delegando tarefas próprias do Poder Público, a serem desempenhadas por meio de seu quadro permanente de servidores públicos em sentido estrito.

 

     O curioso nisso tudo é que o legislador ordinário, que promove o desmonte paulatino da administração pública, é o mesmo que vem aprovando Emendas para fortalecer e melhorar o desempenho do serviço público.

 

     De fato, a EC nº 19/98 acrescentou o § 7º ao art. 39 da CF para prescrever a obrigatoriedade das entidades políticas de disciplinar a aplicação de recursos orçamentários provenientes da economia com despesas correntes em cada órgão, autarquia e fundação, para aplicação no desenvolvimento de programas de qualidade e produtividade, treinamento e desenvolvimento, modernização, reaparelhamento e racionalização do serviço público, inclusive sob a forma de adicional ou prêmio de produtividade.

 

     Mais recentemente, a EC nº 42/03 acrescentou o inciso XXI ao art. 37 da CF considerando as administrações tributárias da União, dos Estados-membros, do Distrito Federal e dos Municípios como atividades essenciais ao funcionamento do Estado, a serem exercidas exclusivamente por servidores de carreiras específicas. Prescreveu-lhes a aplicação de recursos prioritários para a realização de suas atividades e atuação de forma integrada, inclusive com compartilhamento de cadastros e informações fiscais, na forma da lei ou convênios firmados entre as entidades políticas. Entretanto, poucos dias após, o Senado Federal, agora, investido de suas funções de legislador infraconstitucional, aprovou uma Resolução, autorizando os Municípios, por meio de endosso-mandato ceder e transferir sua dívida ativa às instituições financeiras, que antecipará até 30% do valor do crédito cedido, mediante oferecimento de garantia representada pela vinculação das receitas do Fundo de Participação dos Municípios. A instituição financeira endossatária contemplada poderá promover o parcelamento desses créditos tributários cedidos. A justificativa para tal procedimento foi a busca da celeridade na realização do ativo ‘através de instituições financeiras, que possuem expertise na cobrança mais célere de créditos de toda a natureza’ . Só que a realidade é bem outra. As instituições financeiras estão terceirizando os serviços de cobrança, ou por não possuírem a ‘expertise’ nesse tipo de serviço, ou porque esse serviço é deficitário. Trata-se, na verdade, de uma burla à Lei de Responsabilidade Fiscal, que proíbe a contratação de operaçãos financeiras no último ano de mandato do governante. Representa uma autêntica Antecipação de Receita Orçamentária, a ARO, só que sem as limitações que lhe são próprias.

 

     O legislador constituinte e o legislador ordinário, por sinal, o mesmo, deve agir com coerência. Não faz sentido algum fortalecer o serviço público, enquanto investido da função de legislador constituinte derivado, e desestabilizar a administração pública, enquanto investido das funções de legislador ordinário, editando normas atentatórias ao serviço público.

 

SP, 07.09.04

 

 

* Professor de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

kiyoshi@haradaadvogados.com.br

 

Compare preços de Dicionários Jurídicos, Manuais de Direito e Livros de Direito.

Como citar e referenciar este artigo:
HARADA, Kiyoshi. Parcerias Público-Privadas- PPPs. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-administrativo/parcerias-publico-privadas-ppps/ Acesso em: 25 abr. 2024