Liminar. Cassação fundada no efeito multiplicador da lide
Kiyoshi Harada*
Existem certas afirmativas tidas como ‘verdades sabidas’, que são consagradas no mundo jurídico com a maior naturalidade, sem qualquer questionamento pelos operadores do direito. Às vezes, essas ‘verdades sabidas’ confrontam-se com o ordenamento jurídico-constitucional, que existe para o bem da sociedade, e não para o bem do Estado, ou conforto de seus dirigentes. O Estado é meio , e não, fim, já dizia o saudoso Ataliba Nogueira.
Direitos e garantias fundamentais não podem ser ignorados em nome do interesse financeiro do Estado, que não se confunde com o verdadeiro interesse público. Não pode haver interesse público, por exemplo, em tributar além do permitido pela ordem jurídica vigente, sob pena de confundi-lo com mero interesse privado do Poder Público.
Uma dessas ‘verdades sabidas’ é aquela que fundamenta a suspensão de medidas liminares e decisões de mérito, de cunho satisfativo. Refiro-me ao ‘efeito multiplicador da lide’ , diariamente, invocado pelos tribunais como única razão para suspender as liminares concedidas pelos juizes de primeira instância, no uso regular do poder-dever de cautela, a fim de tornar efetiva a jurisdição e, por conseguinte, manter o indispensável prestígio e credibilidade da Justiça. Nada mais injusta e revoltante que uma decisão tardia.
O fundamento desse ‘efeito multiplicador da lide’ , data maxima vênia, nada tem de jurídico. Ele mais se assemelha àquele poder discricionário conferido aos Presidentes de Tribunais, pelo art. 4º da Lei nº 4.348/64, para suspender as liminares e sentenças a requerimento de pessoa jurídica de direito público interessada, que alegar perigo de grave lesão à ordem, à economia etc. E essa situação de ‘perigo’, invariavelmente , é provocada pela própria Fazenda requerente da medida excepcional, sempre que se tratar de matéria tributária , campo fértil das liminares.
Ora, a Lei nº 4.348/64, violadora do princípio do juiz natural , porque permite suspensão de liminares fora do âmbito da via recursal própria, gerada no ventre da ditadura militar, é absolutamente incompatível com os ventos democráticos que sopram nesta nova República. Será que estou enganado?
Retomando o assunto, suspender a liminar sob a injurídica alegação do perigo de ‘efeito multiplicador da lide’ , além de afrontar o princípio do juiz natural, tanto quanto a suspensão facultada pela Lei 4.348/64, acaba atingindo em cheio o princípio da efetividade da jurisdição . Foi exatamente em nome desse princípio que a Carta Política conferiu ao juiz o poder geral de cautela , que passou a integrar a jurisdição, exercitada em regime de monopólio estatal pelo Poder Judiciário. Daí a noção de juiz-Estado, soberania do Judiciário. A matriz constitucional dessa afirmativa está no art. 5º , XXXV da CF: A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
Logo, suspender a decisão que afastou a ameaça a direito, sem o uso da via recursal própria, implica inibição do poder cautelar geral de que se acha investido o juiz no exercício de sua função jurisdicional . E isso, reclama alteração constitucional, porque a existência do Judiciário como um Poder independente e harmônico só se justifica enquanto preordenado a tornar efetiva a jurisdição.
Mas, o pior é que a ‘máxima’ do ‘efeito multiplicador’, utilizada em grande escala em matéria tributária , encerra uma série de contradições inafastáveis.
De fato, se a liminar deve ser cassada , porque gera efeito multiplicador da lide, causando lesão aos cofres da entidade política requerente da medida, temos que admitir, por coerência, o seguinte:
1. quando houver perigo de lesão ou ameaça a direitos de poucos contribuintes (hipótese que não gera efeito multiplicador), o juiz pode valer-se do seu poder cautelar;
2. quando houver perigo de lesão ou ameaça a direitos em relação a um contingente enorme de contribuintes (hipótese de efeito multiplicador), ao juiz é vedado o uso do poder cautelar;
3. logo, quanto mais patente o vício da norma legal impugnada, a atrair maior número de contestantes, menor a possibilidade de uso do poder cautelar;
4. liminar em ação coletiva, como na Adin, por exemplo, jamais poderia ser concedida, pois o seu efeito provocaria uma lesão bem maior aos cofres públicos do que aquele decorrente da multiplicação de lides;
5. o mesmo se diga em relação ao mandado de segurança coletivo, ainda que o efeito seja menos devastador do que aquele decorrente de uma Adin.
Resultado: todos os mecanismos constitucionais de defesa do contribuinte ficam afastados, ironicamente, pela atuação do Poder encarregado de tornar efetivos os direitos dos contribuintes.
Não é por outra razão que a arrecadação tributária está atingindo um Record cada vez mais expressivo, e milhares de empresas estão falindo, aumentando o desemprego e a criminalidade dele decorrente.
Essa ‘maxima’ só serve para estimular a ação perversa dos governantes, que editam, leis tributárias manifestamente inconstitucionais, na certeza de que a arrecadação do tributo estará sempre assegurada, e a sua eventual restituição dar-se-á décadas após, por via de precatório judicial. Estimula-se a política do endividamento irresponsável.
A medida mais correta e eficiente para inibir a produção, em massa, de leis tributárias viciadas , nas três esferas políticas, é exatamente a de suspender liminarmente a aplicação dessas leis , sempre que requerida pelos interessados.
A ação coletiva, apesar da aparente vantagem de estancar, no nascedouro, a aplicação de lei tributária viciada, tem o grave defeito de ‘queimar’ a tese. Por mais preparado que seja o profissional subscritor da inicial, ele não consegue vislumbrar, no momento apropriado, todos os ângulos da questão a ser debatida, só percebendo a omissão quando já tardia. Ações individuais têm a vantagem de propiciar um debate sob diferentes aspectos da questão jurídica sob exame, além de propiciar aos advogados em geral a oportunidade de aditamento ou de alteração de argumentos, valendo-se da experiência de outros profissionais que os antecederam, e segundo a tendência manifestada pelos juízes e tribunais. E mais, ensejarão ao governante o tempo suficiente para buscar meios financeiros alternativos, ou adequar a legislação tributária aos ditames da Constituição Federal.
Enfim, merece ser repensada a ‘máxima’ do ‘efeito multiplicador da lide’ , cabendo aos advogados, responsáveis maiores pela defesa dos direitos dos contribuintes provocar sua revisão, a fim de aprimorar a atuação do Judiciário no cumprimento da elevada e nobre missão de administrar a justiça, sem se preocupar com questões financeiras do Estado, incluídas nas atribuições de outros Poderes.
SP, 18.10.04
* Professor de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.
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