Guilherme Scatolin*
FERRAJOLI, Luigi. A Soberania no mundo Moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2002. Páginas 5 – 52.
O autor trabalha com três hipóteses relativas à origem da soberania. A primeira é a jusnaturalista. Com duas dimensões: a interna e a externa
Segundo os historiadores a primeira teoria foi a externa, datada junto com o surgimento do direito internacional moderno.
Francisco de Vitoria teve um papel fundamental na fundação do direito internacional. Ele contestou todos os títulos de legitimação dos espanhóis em sustento da conquista do Novo Mundo. Para contrapor a esses títulos ilegítimos, reelabora toda a velha doutrina e lança as bases do direito internacional moderno, junto com o conceito moderno de Estado como sujeito soberano.
As idéias basilares dessa imponente construção são essencialmente três: a) a configuração da ordem mundial como sociedade natural de Estados soberanos; b) a teorização de uma série de direitos naturais dos povos e dos Estados; c) a reformulação da doutrina cristã da “guerra justa”, redefinida como sanção jurídica às iniuriae (ofensas) sofridas. (p. 10).
As três doutrinas de Vitoria – a idéia de uma sociedade de Estados igualmente soberanos e sujeitos ao Direito, a afirmação de uma série de direitos naturais dos Estados e a teoria da guerra justa – são as bases da doutrina da soberania estatal externa e, da teoria internacionalista moderna como um todo. O que explica a falência das idéias de Vitoria são os contrastes dentro das suas doutrinas.
É no século XVII que a teoria Vitoriana entra em crise definitivamente. Com a consolidação dos Estados nacionais e sua autonomização, cai todo e qualquer limite à soberania estatal. Esse processo envolve os dois tipos de soberania: a interna e a externa.
Foi com a filosofia política do século XVII que o liame da soberania foi cindido.
Todas as aporias presentes no pensamento de Vitoria são superadas, nesse ponto, pela teorização explícita do caráter absoluto da soberania interna; com os únicos limites, para Bodin, das leis divinas e naturais e, para Hobbes, da lei natural vista como princípio de razão, além do limite do vínculo contratual da tutela de vida dos súditos.” (p. 19).
Sendo o Estado soberano internamente devido à não existência de fontes normativas a ele superiores, ele é também soberano externamente. Mas externamente encontra a soberania dos outros Estados. Isso produz uma liberdade selvagem, uma guerra de Leviatãs.
Dessa forma é que a sociedade internacional dos Estados vem a configurar-se. A diferença do estado de natureza original é que agora essa cidade selvagem é composta por homens artificiais, os Estados.
A superação do estado de natureza, internamente, e sua conservação (ou melhor, instauração), externamente, tornam-se, assim, duas coordenadas ao longo das quais se desenrola a história teórica e prática dos Estados soberanos modernos, ambas inscritas no código genético de tais Estados pela filosofia política jusnaturalista. (p. 25).
Como resultado temos um Estado soberano fundado sobre duas posições: negação do estado de natureza enquanto estado civil, a oposição entre civilidade e incivilidade; e, sobre a afirmação de um estado de natureza entre Estados soberanos, virtualmente em estado de guerra entre si, mas também sujeitos a um direito-dever de civilizar o resto do mundo.
A oposição entre estado civil e estado de natureza dá origem a duas histórias da soberania: a de uma progressiva limitação interna e a de uma progressiva absolutização externa no plano do direito internacional.
O auge da comunidade selvagem dos Estados é da metade do século XIX à metade do século XX, esses cem anos são também os da construção, na Europa, do Estado de Direito e da democracia.
Com as mudanças nos Estados, revoluções e sucessivas cartas constitucionais, muda a forma do Estado e também o princípio da soberania interna.
No final do século XIX constróisse a idéia de que a soberania não está nem no povo, nem no rei, mas sim no próprio Estado. Dessa forma confere-se um caráter científico-objetivo às disciplinas juspublicistas e atribui-se à disciplina do direito público, uma função de unificação nacional e de reforço nas frágeis identidades nacionais.
Com a subordinação do próprio poder legislativo de maioria à lei constitucional e aos direitos fundamentais nela estabelecidos, o modelo do estado de direito aperfeiçoa-se e completa-se no modelo do estado constitucional de direito, e a soberania interna como potestas absoluta (poder absoluto), já não existindo nenhum poder absoluto, mas sendo todos os poderes subordinados ao direito, se dissolve definitivamente. (p. 33).
No caso da soberania externa temos um percurso diferente. Nos novos Estados nacionais, ela alcança formas desenfreadas e ilimitadas – conquistas coloniais, guerras… – muito mais parecida com a liberdade selvagem nos moldes hobbesianos.
Entre o final do século XIX e início do XX, o estado de direito cresce internamente e o absoluto externamente, num movimento simultâneo e paradoxal.
Com a promulgação da Carta da ONU em 1945, em São Francisco, e com a Declaração universal dos direitos do homem, acaba o paradigma da soberania externa, depois de atingir seu ápice com as duas guerras mundias.
Com esses dois documentos, a soberania externa passa ao plano da civilidade, se subordina juridicamente a duas normas fundamentais: o imperativo da paz e a tutela dos direitos humanos.
Essa Carta equivale a um contrato social internacional, um ordenamento jurídico supra-estatal.
Nesse novo ordenamento não apenas os Estados, mas os indivíduos e os povos passam a ser sujeitos de direito internacional.
Com a crescente interdependência econômica, política, ecológica, cultural… Que transformou o mundo, vivemos hoje em uma aldeia global repleta de desequilíbrios. Graças à rapidez das comunicações, temos acesso à informação de todos os lugares do globo, nada nos é estranho.
A soma desses fatores torna mais urgente e mais concreta do que nunca, a hipótese de uma integração internacional baseada no direito.
Naturalmente, essa crise do Estado é uma crise de época, com conseqüências imprevisíveis. Mas acreditamos que cabe à cultura jurídica e política apoiar-se naquela “razão artificial” que é o direito, e que já no passado moldou o Estado em suas relações internas, para indicar as formas e os percursos: os quais passam, evidentemente, através da superação da própria forma do Estado nacional e através da reconstrução do direito internacional, fundamentado não mais sobre a soberania dos Estados, mas desta vez sobre as autonomias dos povos.” (p. 52).
O paradigma deve ser aquele do estado constitucional de direito, que nos foi dado pelas experiências das democracias modernas, ou seja, sujeição às leis dos organismos da ONU, de sua reforma em sentido democrático e representativo, da instauração de garantias que tornem efetivos o princípio da paz e os direitos fundamentais.
*Acadêmico de Direito da UFSC
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