Curitiba (PR), 06/12/2009 – O editorial “Calote Oficial” foi publicado na edição de hoje (06) do jornal Gazeta do Povo (PR):
“O Senado aprovou esta semana, em última votação, a proposta de emenda à Constituição (PEC) que fixa novas regras para pagamento de precatórios, dívidas governamentais decorrentes de decisões judiciais. A proposta, que agora será promulgada pelo Congresso Nacional, guarda aparência de decisão justa ao determinar que pelo menos 50% dos recursos reservados aos precatórios sejam destinados ao pagamento em ordem cronológica, com base na data determinada pela Justiça e ao especificar que dívidas decorrentes de ações envolvendo natureza alimentícia ou aquelas em que os credores sejam idosos ou portadores de doença grave terão prioridade no recebimento.
Num julgamento rápido, seria o caso de se questionar a razão que leva tantas entidades representativas da magistratura e da advocacia como a Ordem dos Advogados do Brasil, a Associação Brasileira dos Magistrados e a Associação dos Juízes Federais a se opor à proposta e até a denominá-la PEC do Calote .
Uma análise mais detalhada mostra que as entidades estão cobertas de razão. Tomemos como exemplo a sistemática de leilão de créditos, pela qual, ao menos em relação a uma parte dos valores, passarão a ter preferência de recebimento os credores que venham a conceder o maior deságio de seu crédito à Fazenda Pública.
Isoladamente e estivessem os pagamentos em dia, a ideia até poderia ser razoável e interessante. Todavia, diante do cenário de não pagamento ou de longo parcelamento, o mecanismo do leilão se torna algo desleal e quase que forçoso para um significativo número de pessoas. A lógica é a seguinte: o poder público não paga ou propõe um parcelamento infindável. Com isso, o credor se vê forçado a dar um bom desconto. É isso ou correr o risco de chegar ao fim da vida sem o pagamento.
Trata-se de um recurso abominável, especialmente por partir justamente de quem deveria dar exemplo. Em um país como o nosso, com graves problemas sociais, essa proposta atenta contra o princípio da dignidade humana, contra o instituto do direito adquirido e ainda contra os princípios da legalidade, da igualdade, da moralidade e da segurança jurídica.
É preciso ter em conta que o precatório judicial constitui título representativo de dívida certa. Seu pagamento não pode ser visto como um gesto de bondade do poder público. Apesar disso, a proposta de emenda constitucional, dentre outros aspectos bastante graves e discutíveis, amplia vergonhosamente os prazos de pagamento dos valores devidos pela Fazenda Pública (estadual, municipal ou distrital) por meio dos chamados precatórios.
Os precatórios nada mais são do que requisições de pagamento encaminhadas pelo Poder Judiciário ao Poder Executivo. Quando a Fazenda Pública é derrotada em um processo judicial, o credor requer ao Judiciário o pagamento do valor que lhe é devido. Apresentado o precatório até o dia 1º de julho de cada ano, a Fazenda Pública teria a obrigação de quitar o débito até o último dia do exercício imediatamente seguinte, observada a ordem cronológica dos requerimentos.
Como sabemos, essa regra é letra morta para os entes públicos. Dá-se justamente o oposto da prevista celeridade: pessoas físicas e jurídicas esperam longos anos até receber aquilo que lhes é de direito. E a sistemática ganhou respaldo com a Constituição, pois os pagamentos das dívidas pendentes à época de sua promulgação, em 1988, foram parcelados em oito anos. Em 2000, com a Emenda Constitucional de n.º 30, os pagamentos pendentes na ocasião, bem como os pagamentos de ações judiciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999, foram todos parcelados em até dez anos. Com a decisão agora tomada pelo Congresso, o calote ganha ainda mais prazo.
Será facultado aos estados, ao Distrito Federal aos municípios parcelar suas dívidas em até 15 anos, ou, ainda, em absurda possibilidade, optar por depositar apenas um determinado porcentual de sua receita corrente líquida , sem prazo máximo determinado para o pagamento total das suas dívidas.
Esse conjunto indica que os credores do poder público serão pagos, com sorte, em 15 anos. Mas caso o seu devedor tenha optado pelo regime de pagamento com base em porcentual de receita corrente líquida, o parcelamento pode se prorrogar por décadas.
Em suma, o Congresso acaba de dar seu aval a um conjunto de regras que mudam no meio do jogo, dão amplas possibilidades ao poder público e nenhum recurso ao cidadão. É o oposto do que deve prevalecer no Brasil que queremos.”
Fonte: OAB