Tema: Direito Administrativo
Subtema: Serviço Público
Tese: Não é permitido o corte do fornecimento de água ou de energia elétrica por falta de pagamento do usuário anterior
Aplicação: Situações jurídicas em que se pleiteia a restauração do fornecimento de energia elétrica, também podendo ser aplicada para o serviço de água, quando estes foram cortados em razão de ausência de pagamento do usuário anterior.
Conteúdo da tese jurídica:
I. RELIGAMENTO DE SERVIÇO DE ENERGIA ELÉTRICA. INADIMPLEMENTO DO MORADOR ANTERIOR DO IMÓVEL. OBRIGAÇÃO PESSOAL. IMPOSSIBILIDADE DE SUSPENSÃO DO FORNECIMENTO.
Na linha do que fora relatado, a presente lide discute a (im)possibilidade de cortar o fornecimento de energia elétrica em razão de inadimplência do antigo usuário. Especificamente neste caso, o requerente solicita a restauração do serviço de fornecimento de energia elétrica em sua moradia, que foi suspenso em razão do inadimplemento do antigo morador.
Desde já, ressalta-se que a concessionária de energia elétrica foi devidamente notificada acerca da alteração do titular da conta, sendo que, ainda assim, procedeu ao corte do serviço e, o que é mais grave, recusa-se a realizar o religamento antes que o requerente realize o pagamento das faturas relacionadas ao imóvel (de titularidade do morador anterior).
Fato é que a obrigação pelo pagamento das faturas de serviços essenciais (como água e energia elétrica) tem natureza pessoal, ou seja, é de responsabilidade da pessoa que usufrui do serviço – e não propter rem (vinculada ao imóvel abastecido).
Assim, não há como condicionar o abastecimento de energia da moradia do requerente ao pagamento de débitos pretéritos relacionados à propriedade. O requerente não pode responder pelo inadimplemento de terceiro, ainda mais porque não foi o responsável pelo não pagamento.
O fornecimento de energia elétrica é um serviço público, cujo conceito – nas palavras de Gustavo Schiefler – apresenta dimensão formal e material, incluindo-se o princípio da continuidade dos serviços públicos:
Em seu âmbito material, o serviço público representa uma prestação de utilidades ou comodidades destinadas aos particulares em geral, singularmente fruíveis, sobre qual o Estado assumiu a responsabilidade por entendê-la como necessária ou conveniente. Isso envolve a verificação da existência de utilidade pública na natureza de sua prestação.
[…]
Em seu âmbito formal, tal conceito de serviço público remete à sujeição de sua prestação ao regime de direito público, assim definido no sistema normativo, e, por isso, acompanhado por todos os princípios regentes de Direito Administrativo […] princípio da continuidade, princípio da mutabilidade e princípio da igualdade.[1] [grifo acrescido]
A propósito, registre-se que a Primeira Turma do Superior Tribunal Justiça (STJ), em processo da relatoria do Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, referendou o entendimento da Corte quanto à natureza pessoal da obrigação do pagamento da fatura de energia elétrica:
ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. OBRIGAÇÃO DE NATUREZA PESSOAL. ILEGITIMIDADE PASSIVA DO RECORRIDO. CONCLUSÃO DO TRIBUNAL DE ORIGEM MEDIANTE ANÁLISE DAS PROVAS DOS AUTOS. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7/STJ. AGRAVO REGIMENTAL DA CONCESSIONÁRIA DESPROVIDO.
1. Consoante a jurisprudência pacífica desta Corte, a obrigação de pagar por serviço de natureza essencial, tal como água e energia, não é propter rem, mas pessoal, isto é, do usuário que efetivamente se utiliza do serviço.
2. Na espécie, o Tribunal de origem consignou que no período em que foi constatada a irregularidade no medidor de energia, o Agravado não era o usuário do serviço (fls. 188/189). Assim, para alterar tal conclusão, necessário o revolvimento do suporte fático-probatório dos autos, o que é vedado em Recurso Especial, ante o óbice da Súmula 7/STJ.
3. Agravo Regimental da Concessionária desprovido. [grifo acrescido]
(STJ, 1ª Turma, AgRg no AREsp 45073/MG, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, publicado em 15/02/2017)
Nesse sentido também é a jurisprudência dos Tribunais pátrios, como, por exemplo, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1). Veja-se acórdão recente (julho de 2019):
APELAÇÃO CÍVEL E REMESSA NECESSÁRIA. ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. ENERGIA ELÉTRICA. INADIMPLÊNCIA DO USUÁRIO ANTERIOR. OBRIGAÇÃO PESSOAL E NÃO VINCULADA AO IMÓVEL. COBRANÇA DE DÉBITO PRETÉRITO. SUSPENSÃO DO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. IMPOSSIBILIDADE. SENTENÇA MANTIDA.
I. No caso dos autos, entendo que o impetrante pode figurar no polo ativo da demanda, não havendo que se falar em ilegitimidade ad causam. Primeiro, porque é o proprietário e atual morador do imóvel cujo fornecimento de energia elétrica foi suspenso. Segundo, porque o fato de não ser o titular do débito em atraso constitui o próprio fundamento de seu pedido, não servindo de justificativa para impedi-lo de buscar o restabelecimento do serviço. Terceiro, porque o usuário anterior, mesmo sendo o verdadeiro devedor, não poderia ser obrigado a litigar como autor, por inexistir a figura do litisconsórcio ativo necessário, tampouco se beneficiaria com o acolhimento do pleito deduzido neste mandamus, que visa exclusivamente ao religamento da energia, já que não reside mais no local.
II. O impetrante é o proprietário do imóvel situado na Rua Capivari, n. 108, Bairro JK, Ji-Paraná/RO, havendo notícia de que este foi invadido por Juvenildo da Silva Barros, conforme boletim de ocorrência de fl. 10, razão pela qual solicitou o desligamento da energia elétrica junto à CERON, para não gerar débitos em seu nome e estimular o invasor a desocupar o bem. Todavia, a apelante promoveu o religamento da energia elétrica no imóvel, a pedido do novo possuidor, que, contudo, não pagou as faturas mensais emitidas em seu nome, dando ensejo à interrupção do serviço. O impetrante obteve liminar em ação de reintegração de posse, sendo que, ao solicitar o restabelecimento da instalação, já que pretendia residir no imóvel, a recorrente recusou-se a religar a energia elétrica, exigindo o prévio pagamento da quantia não adimplida pelo usuário anterior, no importe de R$35,14 (trinta e cinco reais e quatorze centavos).
III. Não há controvérsia entre as partes quanto ao fato de que o recorrido, Ezequias da Silva, não tem responsabilidade pelo pagamento do débito contraído no período em que o terceiro, Juvenildo da Silva Barros, exerceu posse sobre o imóvel, sendo certo que o primeiro havia requerido a suspensão do fornecimento, o qual foi posteriormente restabelecido sem o seu consentimento, a pedido do segundo. Ora, se a própria empresa concessionária entende que o impetrante não é o titular do débito, não faz sentido algum condicionar o religamento da energia por ele solicitado ao pagamento da dívida imputada exclusivamente ao usuário anterior.
IV. Segundo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a obrigação decorrente do fornecimento de energia elétrica possui natureza eminentemente pessoal, devendo o pagamento ser exigido tão somente daquele usuário que efetivamente utilizou o serviço, não se tratando de obrigação propter rem. Ademais, a jurisprudência pátria firmou-se no sentido de que somente é permitida a interrupção do fornecimento de energia elétrica e outros serviços essenciais por inadimplemento de conta regular, relativa ao mês de consumo, não sendo cabível em relação a débitos antigos ou consolidados, para os quais a concessionária dispõe dos meios ordinários de cobrança.
V. Preliminar rejeitada. Apelação e remessa necessária desprovidas.
(TRF-1, Apelação Cível 0002304-76.2007.4.01.4101, Sexta Turma, Relatora Juíza Federal Sônia Diniz Viana Data do julgamento 08.07.2019)
Diante do exposto, em atenção à jurisprudência dos Tribunais brasileiros e à natureza do serviço público de fornecimento de energia elétrica, verifica-se a impossibilidade do corte de energia ao imóvel do requerente, em razão de inadimplemento do morador anterior.
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[1] SCHIEFLER, Gustavo Henrique Carvalho. Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI). Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2014. p. 52-53.