Direito Penal

Invasão de local consular: De quem é a competência

Invasão de local consular: De quem é a competência[1]

No dia 18 de outubro de 2013, oito jovens, sendo dois adolescentes, invadiram o escritório consular dos Estados Unidos, em Porto Alegre, picharam paredes, rasgaram a bandeira norte-americana e impediram que uma agente consular deixasse a sala. Segundo eles, a manifestação foi realizada em repúdio à “espionagem norte-americana no Brasil e ao leilão do Campo de Libra do pré-sal”.

Na época, suscitou-se um conflito de competência entre a Justiça Comum Estadual e a Justiça Comum Federal, tendo o Superior Tribunal de Justiça decidido que o caso penal deveria ser julgado pela Justiça Comum Estadual, pois as condutas estavam definidas no Código Penal (dano, violação de domicílio, corrupção de menores e cárcere privado), não havendo qualquer indício de internacionalidade dos fatos, nem ofensa a bens, serviços ou interesses da União, entidades autárquicas ou empresas públicas federais, a atrair a competência da Justiça Comum Federal. 

O Ministério Público Federal questionou a decisão do Superior Tribunal de Justiça e agora, dia 30 de novembro, em decisão monocrática, a Ministra Cármen Lúcia deu provimento ao Recurso Extraordinário nº. 831996, declarando a competência da Justiça Comum Federal para processar e julgar o caso penal (o art. 557, parágrafo 1ª-A, do Código de Processo Civil permite que o relator dê provimento ao recurso se a decisão questionada estiver em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal).

Em sua decisão, a relatora acolheu argumento do Ministério Público Federal de que, nos termos da Convenção de Viena sobre Relações Consulares, é responsabilidade da União garantir a incolumidade de agentes e agências consulares, já que o funcionamento de uma repartição consular é decorrência direta das relações diplomáticas que a União mantém com Estados estrangeiros, deixando consignado que:

Verifica-se ser a proteção das repartições consulares incumbência e interesse do Estado receptor, ao qual compete impedir eventuais invasões e atentados aos consulados e respectivos agentes, assim como o ocorrido na espécie em exame. As condutas ilícitas teriam ofendido diretamente bens, serviços ou interesses da União, de entidades autárquicas ou empresas públicas federais, situação na qual se fixa a competência da Justiça Federal.

Entendemos acertada a decisão da Ministra, tendo em vista o disposto no art. 109, IV da Constituição Federal, segundo o qual compete à Justiça Comum Federal processar e julgar os supostos autores de crimes praticados em detrimento de interesse da União.

E onde residiria tal interesse no caso concreto?

Como bem observou a Ministra Cármen Lúcia, a Convenção de Viena sobre Relações Consulares, integrada ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto nº. 61.078/1967, estabelece, no art. 31, a inviolabilidade dos locais consulares, nos seguintes termos:

As autoridades do Estado receptor não poderão penetrar na parte dos locais consulares que a repartição consular utilizar exclusivamente para as necessidades de seu trabalho, a não ser com o consentimento do chefe da repartição consular, da pessoa por ele designada ou do chefe da missão diplomática do Estado que envia. Todavia, o consentimento do chefe da repartição consular poderá ser presumido em caso de incêndio ou outro sinistro que exija medidas de proteção imediata.”

Ademais, continua o dispositivo, “o Estado receptor terá a obrigação especial de tomar as medidas apropriadas para proteger os locais consulares contra qualquer invasão ou dano, bem como para impedir que se perturbe a tranquilidade da repartição consular ou se atente contra sua dignidade.”

Consideram-se locais consulares, “os edifícios, ou partes dos edifícios, e terrenos anexos, que qualquer que, seja seu proprietário, sejam utilizados exclusivamente para as finalidades da repartição consular“, segundo dispõe o art. 1º. da mesma Convenção.

Fica claro, portanto, que há interesse da União sempre que um local consular seja alvo de qualquer tipo de turbação ilícita, respeitando-se, evidentemente, as manifestações pacíficas e legítimas permitidas dentro do Estado Democrático de Direito. É lícito e, sobretudo legítimo, portanto, manifestar-se contra os Estados Unidos, inclusive rasgando a bandeira daquele País, desde que não cause dano significativo ao patrimônio de outrem (o que, evidentemente, não é o caso de uma mera pichação, ainda que de um local consular, aplicando-se o princípio da insignificância) ou constranja a liberdade de alguém.

A questão, destarte, não é se houve internacionalidade ou não na prática das condutas, um dos aspectos ressaltados na decisão do Superior Tribunal de Justiça ao julgar o conflito de competência. Neste caso, o que definiu a competência da Justiça Comum Federal foi o fato da República brasileira ter o dever especial de, nos termos da Convenção de Viena, “tomar as medidas apropriadas para proteger os locais consulares contra qualquer invasão ou dano, bem como para impedir que se perturbe a tranquilidade da repartição consular ou se atente contra sua dignidade.”

Ressalte-se, por último, que tal competência é de natureza material e, portanto, de caráter absoluto. A sua inobservância acarretará, mais do que a nulidade do processo, a sua própria inexistência jurídica (não ato jurídico[2]).



[1] Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS. Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, do Instituto Brasileiro de Direito Processual e Membro fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Autor das obras “Curso Temático de Direito Processual Penal” e “Comentários à Lei Maria da Penha” (este em coautoria com Issac Guimarães), ambas editadas pela Editora Juruá, 2010 e 2014, respectivamente (Curitiba); “A Prisão Processual, a Fiança, a Liberdade Provisória e as demais Medidas Cautelares” (2011), “Juizados Especiais Criminais – O Procedimento Sumaríssimo” (2013) e “A Nova Lei de Organização Criminosa”, publicadas pela Editora LexMagister, (Porto Alegre), “O Procedimento Comum: Ordinário, Sumário e Sumaríssimo” e “Uma Crítica à Teoria Geral do Processo”, Florianópolis, Editora Empório do Direito”, 2015, além de coordenador do livro “Leituras Complementares de Direito Processual Penal” (Editora JusPodivm, 2008). Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados no Brasil.

[2] Calmon de Passos, Esboço de uma Teoria das Nulidades Aplicada às Nulidades Processuais, Rio de Janeiro: Forense, 2002.

Como citar e referenciar este artigo:
MOREIRA, Rômulo de Andrade. Invasão de local consular: De quem é a competência. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2015. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direitopenal-artigos/invasao-de-local-consular-de-quem-e-a-competencia/ Acesso em: 17 mai. 2024