Artigos Teoria Geral do Direito

O estado paralelo nas favelas: rastro de um Estado Democrático de Direito deficiente?

Henio Antônio Nunes de Sá Leitão[1]

Roberto Fabiano Santos Costa Filho[2]

RESUMO

A superação do Estado Liberal e do Estado de bem-estar Social originou o denominado “Estado Democrático de Direito” que se caracteriza por princípios como o da constitucionalidade e o da igualdade. No entanto, ao se analisar a formação das favelas, observa-se um desamparo, que fere o estabelecido na Constituição Federal de 1988, visto que a falta de uma infraestrutura adequada enraizou-se e persiste até os dias atuais. Em decorrência disso, institui-se um poder paralelo, isto é, demarcado pela criação de regras e métodos de punição próprios. A comunidade da Rocinha, uma das maiores do Brasil, vivenciaessa realidade, que possui como uma das bases o tráfico de drogas. Por fim, faz-se necessário examinar os efeitos da mídia sobre a problemática, pois poderá gerar influências negativas ou positivas.

Palavras-chave: Favela. Estado. Tráfico. Drogas.

1 INTRODUÇÃO

Por meio desse artigo, busca-se analisar as razões e origens das circunstâncias caóticas que perpassam por algumas comunidades do Brasil. Para isso, examinou-se casos concretos, como a sucessão do comando na favela da Rocinha, a intervenção – arbitrária – do poder policial; a formação de um poder paralelo que se mantém por meio de práticas assistencialistas a população e outros fatores que acabam afastando as garantias previstas constitucionalmente e na Declaração Universal de Direitos Humanos. Dessa forma, foi possível ampliar visões e constatar que o Estado ainda é bastante omisso em muitos aspectose a Ciência do Direito, vista na teoria como apta a alcançar a justiça, nem sempre a tem como aliada.

2 BRASIL: O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO?

Mediante um processo de progressão histórica não aritmética, tendo em vista que a preocupação não é caracterizar a ideia de escalonamento para uma noção de avanço, mas a consideração de um processo gradual que agrega novos valores e tendências – os quais nem sempre resultam em melhorias ao se relacionar com o estágio anterior – as sociedadesmodernas experimentaram uma série de tentativas organizacionais até chegarem à conformação de Estado Democrático de Direito.

Esse propõe a perspectiva de superação do Estado Liberal – no qual se concebia o Estado Mínimo, a fim de promover o não intervencionismo na economia e o alcance da livre concorrência no mercado – e do Estado de bem-estar Social (Welfare State) – tido como o Estado intervencionista, provedor e garantidor de direitos sociais, estes tidos, por exemplo, como direito à saúde, à habitação e à educação –ao defender um conteúdo que propicie as conquistas democráticas, bem como as garantias jurídico-legais.

Dessa forma, adota princípios como a da Constitucionalidade – pois se vincula a um comando normativo supremo nacionalmente, ao qual todos os demais graus legais devem observância –; do sistema de direitos fundamentais não apenas coletivos, mas também individuais (como a dignidade da pessoa humana) –; da organização democrática social, demonstrada essencialmente na soberania popular exercida através do voto universal, secreto, direto e periódico; da divisão dos poderes e funções (Executivo, Legislativo e Judiciário) e da igualdade de todos perante à lei.Nesse contexto, Lênio Streck e José Luís Morais (2014) aduzem:

O Estado Democrático de Direito tem um conteúdo transformador da realidade, não se restringindo, como o Estado Social de Direito, a uma adaptação melhorada das condições sociais de existência. Assim, o seu conteúdo ultrapassa o aspecto material de concretização de uma vida digna ao homem e passa a agir simbolicamente como fomentador da participação pública no processo de construção e reconstrução de um projeto de sociedade, apropriando-se do caráter incerto da democracia para veicular uma perspectiva de futuro voltada à produção de uma nova sociedade, na qual a questão da democracia contém e implica, necessariamente, a solução do problema das condições materiais de existência. (p.98)

Partindo-se dessa conceituação, com a consolidação da nova ordem constitucional brasileira em 1988, o País foi categorizado como Estado Democrático de Direito logo em seu primeiro artigo:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos: I- a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. (BRASIL, Constituição, 1988, p.2)

Entretanto, mesmo que seja de conhecimento geral que a ordem nacional circunscreva, teoricamente, o ideal de atendimento igualitário e de garantia de direitos, o panorama real encontrado é bem diferente. Não é mais surpresa as condições degradantes com as quais os moradores de regiões mais afastadas dos centros urbanos têm de conviver em razão da deficiência do Estado Oficial, pois este não se preocupa em aplicar medidas efetivas de concretização, ou seja, capazes de propiciar os efeitos dos direitos pretendidos e assegurados constitucionalmente.

Geralmente, essas regiões constituem as favelas ou comunidades, em que sistemas de saneamento básico e infraestrutura são praticamente inexistentes. Serviços como distribuição de água encanada e eletricidade são deficientes, tanto quanto os suprimentos de educação, saúde e moradia digna.

Sendo assim, essa conjuntura aponta um encadeamento de dividendos, a mencionar, a segregação social, a criação de uma “estrutura jurídica extraoficial”, o estabelecimento de estereótipos quanto à população dessas áreas e a clara visualização do descaso público.

3 FAVELA: ORIGENS E DESCASOS

O fim da escravidão no Brasil representou um misto de sensações, uma vez que ao mesmo tempo em que se tinha um longo período de retrocesso, demarcado por tortura, sendo finalizado, a incerteza entre os recém-libertos de certa qualidade de vida se fazia presente. A motivação disso atrela-se ao fato de que o Estado não ofereceu o amparo devido àqueles. Exemplo disso se encontra no âmbito da moradia.

Com a assinatura da Lei Áurea (1888), as senzalas foram desocupadas, e os que lá residiam buscaram abrigo em antigos casarões desocupados, dando origem aos cortiços, que conforme Valladares (1998, p. 07) eram “considerado […] como o lócus da pobreza, espaço onde residiam trabalhadores e se concentravam, em grande número vadios e malandros, a chamada ‘classe perigosa’”. Esses espaços estavam presentes nas principais capitais, dentre as quais, o Rio de Janeiro, que mais tarde passou por uma restauração desenvolvida pela Reforma Urbanística de Pereira Passos.

O plano era adequar a “cidade maravilhosa” aos padrões europeus, instituindo a ampliação das vias, o reparo de obras e a implantação do saneamento básico. No entanto, desconsideram qualquer alternativa mais conveniente aos que habitavam nos locais caracterizados por péssima situação de salubridade, ordenando, pois, a demolição dos cortiços. Dessa maneira, os desabrigados recorreram aos morros, onde iniciaram a formação das favelas, também representadas por uma descomodidade e ausência de estrutura adequada.

Somado a esse contexto, as construções desregulares também foram motivadas por outros acontecimentos, como o êxodo rural intenso das décadas de 1960 a 1980, em que alto percentual de migrantes, sobretudo da região nordeste, deslocavam-se para o sudeste, entusiasmados com a esperança de melhoria de vida, em razão das oportunidades geradas a partir da recente industrialização instaurada nas metrópoles.

A realidade, porém, é que embora houvesse de fato algumas oportunidades de emprego, as cidades que recebiam esse grande conglomerado de pessoas não estavam preparadas para uma acelerada urbanização, desencadeando descompassos estruturais, como o aumento no índice de moradias inadequadas, em locais tomados por desorganização em termos de higiene, saneamento e até mesmo disposição do espaço.

Mediante a isso, ressalta-se a desproporção entre o que é legislado e o que se perpassa na realidade, em que as ditas normas gerais e abstratas que deveriam abarcar a todos sem fazer qualquer tipo de distinção parecem se voltar a um grupo seleto da sociedade beneficiada por todas as garantias asseguradas.

A Declaração Universal de Direitos Humanos, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1948, traz em seu artigo 2º a seguinte disposição:

Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação. Além disso, não será feita nenhuma distinção fundada no estatuto político, jurídico ou internacional do país ou do território da naturalidade da pessoa, seja esse país ou território independente, sob tutela, autônomo ou sujeito a alguma limitação de soberania. (Assembleia Geral da ONU, 1948)

O que se tem, todavia, é uma continuidade de discrepâncias sociais, pois embora já exista certo acesso a sistemas de esgoto, água, luz e outros, o olhar sobre as comunidades pelo Brasil ainda não é suficiente e revela distanciamento em relação às classes médias e altas

que coexistem no mesmo território. Prova disso é o elevado índice de presos pobres e negros que constituem a maioria da população carcerária no país. Sendo que 41% desta, segundo dados do site Coodinación Socialista Latinoamericana, ainda aguardam julgamento, tal morosidade tem como uma das justificativas: “ausência de recursos financeiros do detento e sua família que os permita dispor de todas as prerrogativas legais previstas na Constituição. ADefensoria Pública não possui pessoal e infraestrutura para prestar assistência jurídica de modo eficiente” (CSLatinoamericana, 2017)

Faz-se necessário, portanto, que ponderações sejam realizadas. AgostinhoRamalho Marques Neto pontua bem isso. Através de seu livro “A ciência do Direito” vem provocar reflexões com intuito de conceber que para além da letra fria do texto constitucional e dos infraconstitucionais, é necessário que haja uma percepção em relação aos casos concretos, às realidades, definindo, portanto, o fenômeno jurídico como n-dimensional.

4 OS DOIS ESTADOS: O OFICIAL E O PARALELO

Abandono estatal, marginalização e “alternativa”: considerar-se-ão aqui a tríade do Estado Paralelo. Desse modo, como a estrutura jurídica do Estado Democrático de Direito nacional encontra-se ausente nesses assentamentos urbanos densamente povoados e caracterizados por moradias precárias, seus moradores acabam por criar suas próprias regras de conduta e métodos de punição, os quais são, de certa forma, legitimados internamente em virtude da concepção do pluralismo jurídico, anteriormente apresentado, com o propósito de mediar suas relações sociais.

Por isso, para essa “alternativa”, invoca-se o chamado Estado Paralelo. A fim de explicar o porquê da qualificação dessa estrutura como Estado, pode-se utilizar Clóvis Bevilacqua apud Sahid Maluf (2003, p.21) o qual define aquele como “um agrupamento humano, estabelecido em determinado território e submetido a um poder soberano que lhe dá unidade orgânica”, destacando assim a presença dos três requisitos essenciais da conformação estatal: território, população e “governo”.

Ademais, considerando que, segundo Manoel Paiva (2015, p.407) “duas retas coplanares são paralelas se, e somente se, não têm ponto em comum ou têm todos os seus pontos em comum”, ao se fazer uma analogia quanto as relações de controle social, o Estado Paralelo seria aquele que não encontra pontos em comum com o Estado Legal.

Perante esses fatores, é notório que há a criação de um sentimento de insegurança jurídica, uma vez que aquele que deveria ser o provedor de direitos (Estado brasileiro) omite- se dessa responsabilidade, o que promove a criação de dois ordenamentos antagônicos:

Pasárgada é uma comunidade densamente povoada, no seio da qual se estabeleceu uma teia muito complexa de relações sociais entre os habitantes e entre estes, individualmente, e a comunidade no seu todo, algumas das quais têm origem em contratos […] e outros negócios jurídicos que envolvem a propriedade, a posse e direitos reais vários sobre a terra e as habitações […] Tais relações têm uma estrutura homóloga das relações jurídicas. No entanto, à luz do direito oficial brasileiro, as relações desse tipo estabelecidas no interior das favelas são ilegais ou juridicamente nulas […] dentro da comunidade, contudo, tais relações são legais e como tal são vividas pelos que nelas participam (SANTOS, 1988. p.13 e p.14)

Logo, essa ausência do órgão de controle oficial, associado à falta de estrutura nas comunidades, de investimentos para a melhoria dos serviços sociais públicos e o déficit na oportunidade de empregos, por exemplo, criam uma espécie de convite para a instalação do crime organizado. Nesta seara, surge o grande problema da instalação dessas organizações criminosas no “governo” desse Estados, como, principalmente as provenientes do tráfico de drogas.

Seu poder, consoante a definição de Max Weber (1991, p.33) enquanto a “possibilidade de uma pessoa ou instituição influenciar o comportamento de outras pessoas”, geralmente está ligado à violência física, pois trazem para essas conformações as mesmas regras que estabelecem no mundo do crime: estipulam leis severas que impõe castigos os quais podem ir desde a tortura até a morte.

Em suma, ao invés de contribuir para a satisfação do bem-estar da população que vive nas favelas, acabam por enclausurá-la num cenário tão deficiente quanto, senão até mais grave, que o criado pela ausência do Estado Oficial.

5 DICOTOMIA: “SOCIEDADE DO ASFALTO” E “SOCIEDADE DO MORRO”

Tendo em vista que as comunidades carentes geralmente concentram-se em regiões cujo terreno é mais elevado, irregular e instável (como encostas de suaves acidentes geográficos[3]) são classificadas como “sociedades do morro”, em contraposição à conjuntura das cidades, cuja estrutura é linear e de ruas pavimentadas, as quais constituem as “sociedades do asfalto”.

Mesmo que haja a tendência em conectar as favelas à perspectiva da riqueza de seus aspectos culturais únicos – considerando-se cultura como o denominador comum em relação a forma pela qual as pessoas vivem em um determinado grupo social[4] – o que se destaca na concepção do senso comum em relação a esses assentamentos é o fator da marginalização.

De acordo com Karl Marx apud Arnaldo Lemos Filho (2002):

[…] a economia assume um papel fundamental […] uma vez que as relações se estruturam pela maneira como o trabalho é extraído e apropriado pela comunidade. (p.109)

Logo, a dicotomia entre essas duas estruturas não se encontra apenas no aspecto geográfico, mas também no econômico, visto que as favelas são tidas como uma espécie de “reprodutoras” da classe trabalhadora, enquanto os detentores dos meios de produção pertencem à “sociedade do asfalto”, na qual as oportunidades para mobilidade social seriam maiores. Dessa forma, reitera-se a concepção da pirâmide social, cuja base seria, povoada, principalmente pelo grupo proveniente dessas zonas mais carentes.

Ademais, outro fator que ratifica a fronteira entre esses dois polos deve-se ao fato da associação da “sociedade do morro” ao crime – destacando-se práticas como o contrabando, o comércio de drogas ilícitas, os roubos em larga escala e o mercado negro, por exemplo – inclusive, por conta da conformação do Estado Paralelo ser pautada na dominação deste por parte dos líderes de organizações criminosas.

Depreende-se, portanto, que, por conta dessa conjuntura, há a criação de um estereótipo para com essas comunidades, o qual é reiterado inclusive nas representações cinematográficas. Ao conhecê-las apenas através dessas exibições, há uma perspectiva descontextualizada e equivocada, pois cria-se uma imagem negativa de todos os seus habitantes.

A “sociedade do asfalto” tende a encarar a “sociedade do morro” como um“mundo” a parte: como se todos os que ali morassem tivessem uma tendência natural a praticar ilícitos (segundo o Direito Positivo) pelo fato de terem crescido nessas regiões.

Não obstante, mesmo com a teoria determinista de Taine, a qual prevê que o comportamento humano é influenciado pelo meio em vive, essa não pode ser concebida como a causa última das ações do homem. O crime e o desvio vão muito além dessa perspectiva nas reflexões sociológicas, e, por isso, a visão pejorativa que é densamente perpetuada não deve ser encarada como verdade absoluta.

6 ROCINHA: A REALIDADE

A fazenda Quebra Cangalhas que se voltava para a produção de gêneros alimentícios (frutas, verduras, legumes) nos anos de 1930, foi aos poucos ocupada por nordestinos que vinham ao Rio de Janeiro, em razão do anseio que nutriam por uma melhoria de vida que acreditavam obter com a ida para a metrópole em formação.

Com o passar do tempo, o local se transformou na maior favela da cidade, a Rocinha, que tomou grandes dimensões, o que trouxe um elevado número de estabelecimentos, como lojas, supermercados, restaurantes. Em contrapartida, foi esse cenárioque possibilitou a visualização da ausência governamental. A partir disso, o poder paralelo sedestaca e passa a dominar o território.

Caracterizado inicialmente pela prática do “jogo do bicho”, essa organização “estatal” passou a ser dominada pelo tráfico de drogas, com o passar dos anos. Nesse sentido, os líderes dessa prática criminosa ganham força dentro da comunidade, por meio de ações assistencialistas que almejam a conquista da população.

O ciclo que ocorre para a sucessão do controle do tráfico traz consigo cargas pesadas de consequências. Os constantes embates entre os criminosos e a polícia retiram a tranquilidade das pessoas que lá residem, impondo a essas restrições, medo, devido aos corriqueiros casos trágicos de mortes causadas por balas perdidas.

Além disso, ressalta-se uma problemática que constitui um dos pilares para a continuidade da ilicitude: uma vez que se obtém alguma vantagem através dessa, aprisiona-se, em regra, o sujeito que passa a estar envolvido, a acobertar, ou até mesmo auxiliar de modo efetivo na comercialização de entorpecentes.

Como exemplo, cita-se o caso de Antônio Francisco Bonfim Lopes, mais conhecido como “Nem da Rocinha”. Em busca de um auxílio financeiro para tratamento de sua filha, recorre à ajuda do então “chefe”, Luciano Barbosa da Silva, um dos líderes da facção criminosa Comando Vermelho. Após isso, o antes trabalhador, adentra ao mundo dos delitos, vindo a se tornar uma das pessoas mais procuradas pela polícia em 2011.

Dezembro de 1999. Eduarda, de nove meses, não para de chorar e está com o pescoço rígido e inclinado para o lado, até quase tocar o ombro esquerdo. A mãe a leva até uma clínica: “Mau jeito dormindo”, dizem os médicos antes de mandá-las de volta para casa. Dias depois a situação da criança se deteriora. Surge um caroçodo tamanho de um ovo no pescoço e lesões na coluna cervical. Diagnósticos desencontrados – câncer, histiocitose X –, tratamentos cirúrgicos e quimioterápicos mergulham a vida da família pobre em desespero e lhes impõe uma rotina de peregrinação por clínicas e hospitais. Mãe e pai abandonam seus empregos para cuidar do bebê, as contas atrasam e eles se afundam em dívidas que chegam a 20.000 reais. A doença da filha foi o ponto de partida que levou Antônio Bonfim Lopes, então um trabalhador responsável por uma das equipes de distribuição da revista com a programação da Net, a se tornar o Nem, chefe do tráfico da Rocinha, no Rio de Janeiro, a maior favela da América Latina. (EL PAÍS, 2016)

Durante seu controle na comunidade, Nem, através dos “lucros” que eram gerados, ostentava poder e garantia a sua proteção e de seus comparsas, utilizando para isso uma organização de “soldados” munidos com armas e rádios de comunicação que efetivavam o distanciamento da intervenção do Estado. No entanto, após algumas operações, acabou sendo preso e substituído por Rogério Avelino, o Rogério 157.

Nesse momento, ocorre uma das maiores instabilidades já vivenciadas no Rio de Janeiro, a disputa pelo comando do negócio em 2017, leva a conflitos armados intensos, que consequentemente geraram um elevado prejuízo, mais uma vez, a população, que foi impelida do simples direito de ir e vir livremente.

A chegada das UPP(s) – Unidades de Polícia Pacificadora – representaram uma esperança de dias calmos àquela comunidade, porém, logo surgiu um impasse por conta de arbitrariedades: vários casos em que membros das corporações policiais atuam abusando do poder e cometendo equívocos irreparáveis são denunciados, mas apenas os de grande repercussão tornam-se noticiários.

O caso do Amarildo Dias de Souza exemplifica tal fato: o ajudante de pedreiro, morador da comunidade foi torturado e assassinado por agentes da UPP ao se recusar apontar um suposto local onde estariam drogas e armas. Com o seu desaparecimento, outros moradores relataram também terem sido vítimas de agressões, causadas pelo mesmo viés de injustiça.

Em razão disso, menciona-se importante teoria sociológica que busca explicar situações como estas. A teoria da rotulação desenvolvida em 1960, nos Estados Unidos, vai propor que os comportamentos vistos como proibidos são assim classificados levando em consideração roupas, o modo de falar, o local onde se vive e outros aspectos, pois estes elementos exerceriam extrema influência ao se classificar alguém como desviante ou não desviante. Isto é, o rótulo seria o requisito para a imposição desmedida da corporação que possuía antes o intuito de contribuir positivamente com aquela localidade.

Júlio Lidemir, jornalista e produtor cultural, habitou por dois anos a Rocinha com o intuito de produzir um livro, neste período, em meio a muitas observações, pode constatar que a atuação estatal era restrita meramente ao teor punitivo, ou seja, nada em relação ao campo da infraestrutura, bem como projetos voltados ao lazer, cultura e entretenimento, por exemplo, foram veemente levados a sério. Tal realidade se mostra um tanto preocupante, pois para além da única questão relevante ser a imposição de sanções, estas podem ser equivocadas, exacerbadas (como já se viu anteriormente, no caso Amarildo).

7 A MÍDIA: SEUS DOIS EFEITOS

A mídia em relação a toda essa teia de conceitos possui dois possíveis efeitos: um positivo e outro negativo. Quanto ao negativo, este se encontra atrelado ao fato de que alguns materiais produzidos se concentram apenas na superficialidade da problemática. Já no que se diz respeito ao positivo, alguns diretores são um tanto ousados e acabam aprofundando o conteúdo e apresentando, de fato, as causas estruturais das circunstâncias aqui abordadas, como a mencionar, o filme Era uma vez, dirigido por Breno Silveira em 2008, que conta a história de um casal de jovens oriundos de classes sociais diferentes.

, interpretado por Thiago Martins, mora na favela do Cantagalo e, desde a infância, leva uma vida conturbada, pois sua mãe, além de cuidar sozinha dele e de seus dois irmãos, tem que dividir seu tempo como doméstica na casa de uma família em Ipanema, passando, assim, a maior parte do dia fora de casa. Logo nos primeiros anos de vida, o protagonista teve de lidar com a trágica morte de seu irmão, assassinado por um dos membros de uma gangue que liderava o morro. Além disso, seu outro irmão acaba sendo preso injustamente por arbitrariedade do poder policial.

À medida que ele cresce, ganha responsabilidades, passando a trabalhar em um quiosque localizado em frente a um dos condomínios mais luxuosos de Ipanema. Nesse contexto, conhece Nina, filha única de uma família de classe alta. Os dois se apaixonam, porém isso desencadeia uma série de embates pelo fato de serem provenientes de “realidades”opostas: tanto por parte da família dela, quanto da dele.

Por conta dessa oposição, principalmente a proveniente do pai dela, que resolveu proibir veementemente o namoro, a situação se agrava a tal ponto que resulta num final trágico marcado pela morte dos dois na praia a qual já foi o cenário de seu romance.

O objetivo desse retrato constitui um alerta de que a desigualdade social é presente e interfere significativamente, não apenas nas relações econômicas, mas também nas sociais. Além disso, ela mostra as duas realidades do morro: aqueles que tenderam para o crime e os que continuam a levar suas vidas de forma honesta e por meio de seu trabalho, negando, assim, a generalidade dos estereótipos.

Em contrapartida, a visão apresentada na novela I love Paraisópoles, que foi ao ar em 2015 no canal Globo, focou na existência do Estado Paralelo, mas não na problemática por trás dela. Tinha-se a figura do Gregório, interpretado por Caio Castro, o qual era líder de uma quadrilha traficante de objetos ilícitos (como drogas, armas, peças automotivas clandestinas) e comandante da favela. Nessa ambiência, Grego interferia, além das questões estruturais coletivas da comunidade, nas relações pessoais dos habitantes, de modo que ele foiretratado de forma caricaturada, a fim de agradar o gosto popular e não, de fato, como alguém que estava cometendo graves crimes segundo o paradigma do Estado Oficial.

A mesma perspectiva também foi retratada em A força do querer, em que Bibi perigosa, retratada por Juliana Paes, liderou o tráfico de drogas na favela da Rocinha após a prisão de seu marido Rubinho (Emílio Dantas).A novela abordou, de forma reiterada, o luxo e a ostentação no mundo do crime –os bailes funk, as joias e a vida confortável que o dinheiro proveniente dessas práticas ilícitas trazia – de forma a ratificar apenas as suas consequências “boas”, o que não deixa de ser uma espécie de motivação para a entrada no mundo do crime.

Logo, com isso, pode-se perceber que a mídia mais contribui para a ratificaçãodos estereótipos negativos das favelas, do que tenta apresentar à sociedade as verdadeiras causas estruturais – a desigualdade de oportunidades, concentração de capitais nas mãos de uma minoria, marginalização por conta da omissão estatal – com o intuito de promover suas superações.

8 CONCLUSÃO

Foi possível constatar que é preciso repensar em políticas efetivas que venham a reduzir significativamente os percalços enfrentados que vão desde problemas estruturais a índices altíssimos de criminalidades dentro das favelas. O Estado precisa se fazer presente, através de posturas que não só coadunem com o estipulado nas letras frias da lei, como também as interprete de modo a consideras os mais diferentes contextos dos casos concretos,a fim de que a sociedade do asfalto e a do morro possuam condições mais semelhantes possíveis.

Como sugestão de aprofundamento deste trabalho, sugere-se a leitura da reportagem do jornal “El País”, publicada em 28 de dezembro de 2016, que possui como manchete a seguinte frase: “Subiu o morro como Antônio e desceu como Nem da Rocinha”, uma vez que retrata de maneira surpreendente a facilidade da entrada no mundo da ilicitude.

REFERÊNCIAS

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[1] Aluno do 10° período de Direito na Universidade Estadual do Maranhão e autora da resenha.

[2] Aluno do 10° período de Direito na Universidade Estadual do Maranhão e autora da resenha.

[3] Conceito geográfico para morro, colina ou cerro

[4] Considerando-se o conceito de Edward Burnett Tylor, cultura seria “aquele todo complexo que incluiu o conhecimento, as crenças, arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e aptidões adquiridos pelo homem como membro da sociedade”

Como citar e referenciar este artigo:
LEITÃO, Henio Antônio Nunes de Sá; FILHO, Roberto Fabiano Santos Costa. O estado paralelo nas favelas: rastro de um Estado Democrático de Direito deficiente?. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2023. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/teoria-geral-do-direito/o-estado-paralelo-nas-favelas-rastro-de-um-estado-democratico-de-direito-deficiente/ Acesso em: 06 out. 2024