Sobre a lista de “Inimigos da Advocacia”
Francisco César Pinheiro Rodrigues*
Trata-se de um tema polêmico, com posições geralmente extremadas, tomando a parte pelo todo. Tentemos compreender o problema de um modo mais abrangente.
Não sei se o autor da idéia da “lista negra” inspirou-se apenas nele mesmo — e em constantes reclamações de colegas — ou se foi estimulado pelo exemplo forte do que ocorreu nos EUA, mas em situação bem diferente. Lá, os advogados das grandes empresas decidiram reagir contra as descabeladas e milionárias indenizações judiciais concedidas a pessoas que querem enriquecer sem esforço porque o tio morreu de tanto fumar. Ou porque a postulante não foi devidamente orientada, no manual de instrução, para não colocar o gatinho no micro-ondas, onde foi cozido vivo.
Reagindo contra tais excessos, cometidos por juízes, Tribunais ou júris populares, os advogados americanos criaram um site — “ATRA — American Tort Reform Association — www.atra.org — criando verdadeiras “listas negras” de órgãos judiciários que exageram na fixação de indenizações “punitivas”, isto é, aquelas que visam especificamente “dar uma lição”, punir financeiramente a entidade ré que se mostra descuidada com os direitos do consumidor. Não de confunde com a “indenização” propriamente, que cuida dos danos materiais e morais. Sobre isso escrevi um artigo que consta na Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo, Ano 8, n.15, janeiro-junho de 2005, pág. 171/190, e pode ser encontrado, sem ônus, no meu site www.franciscopinheirorodrigues.com.br . O artigo oferece maiores detalhes dessa reação, algo inusitada, contra alguns evidentes exageros no acréscimo de zeros indenizatório à direita.
Entretanto, uma coisa é a faculdade — algo “esquisita” — da OAB, de elaborar, para seus associados, uma lista de funcionários, delegados, juízes e promotores deselegantes ou claramente hostis aos advogados — como ocorre com a referida ATRA em relação a juízes e júris adeptos de milionárias indenizações — e, outra, o direito, agora invocado, da entidade proibir uma pessoa tecnicamente qualificada de se inscrever na OAB. Equivale a proibir, por exemplo, que ex-enfermeiros ou para-médicos, grosseiros ou antipáticos, após oito anos de estudo e residência, já diplomados como médicos, se inscrevam no Conselho Regional de Medicina. Falta de urbanidade, ou até mesmo grosseria, não tem nada a ver com os conhecimentos técnicos necessários a uma profissão. Seria lícito, pergunta-se, proibir a inscrição, na OAB, por exemplo, de um Nelson Hungria, ou Frederico Marques, se grosseiros fossem (não eram)?
Deve, porém, haver um certo percentual de razão nas queixas de advogados, quanto ao tratamento recebido por alguns agentes do poder público. Quando titular de uma Vara Cível, na primeira instância, por vezes me espantava com a arrogância de um ou outro colega, uma pequena minoria. O advogado chegava com uma petição para despachar. O juiz, escrevendo algum despacho, o deixava ali plantado por longos minutos, sem nem mesmo erguer os olhos ou dizer, por exemplo, que logo o atenderia. Após boa espera, por vezes o advogado pigarreava, provando discretamente que era um ser vivo. Mas nem assim o juiz o considerava como integrante do mundo real.
É óbvio que, por vezes, não convém interromper a redação de um período, arduamente em elaboração, para ler uma petição e despachar. Mas nesse caso não custa ao juiz informar ao advogado que logo o atenderá. Com uma curta frase do juiz o advogado não vê problema algum em esperar até muitos minutos. Pelo menos foi tratado com respeito. E isso nem sempre acontece. Daí, provavelmente, a grita, por vezes justificada.
Imagino que pode também ocorrer desrespeito por parte de alguns advogados. De minha parte, não me lembro de ter sido desrespeitado. Talvez os tempos fossem outros. Apenas uma vez tive que dizer, embora sem gritar, que “Na audiência, mando eu”! Era um advogado, especialmente inteligente e vivido — e que depois se tornou um grande amigo —, com tendência a “orientar” o juiz quanto ao modo de conduzir uma audiência especialmente complexa. Se o juiz bobeasse, ele conduzia a audiência, ao jeito dele. Mas uma coisa deve sempre estar presente à mente dos juízes: não interessa a nenhum advogado — a não ser em casos patológicos, raros — hostilizar voluntariamente um juiz que decidirá o seu caso. Seria “burrice” em demasia. Todo advogado “normal” sabe perfeitamente que é extremamente danoso aos próprios interesses, e aos do cliente, melindrar um juiz, mesmo que ele mereça ser melindrado. Assim sendo, não há porque o juiz cultivar excessiva suscetibilidade. Se o magistrado percebe que não pode decidir “no joelho”, o pedido contido numa petição, ou oralmente — pois ninguém sabe tudo —, que determine a conclusão dos autos, para ter tempo de pensar ou consultar alguma fonte informativa. Talvez um especialista melhor conhecedor do tema, possivelmente um colega. Gritar tanto pode significar “energia” quanto insegurança. E os circunstantes geralmente sabem distinguir. O mesmo se diga do advogado. Este só tem direito de gritar em defesas no júri. Mirando as orelhas dos jurados. Assim mesmo, no interior, para acordar, no susto, os jurados sonolentos.
A OAB não tem necessidade de rejeitar a inscrição do ex-funcionário público, ou ex-membro de poder, que resolveu advogar. Sua punição pela grosseria ou desconsideração virá da própria vida profissional. Especialmente dura para com o advogado, um profissional que só lida com atritos e dificuldades financeiras. Problemas dos outros que se tornam também os seus. A profissão lhe dará “botinadas” educativas, se não mudar o modo de tratar as pessoas. Saboreará o próprio veneno. Um dia topará com ex-colega da ativa que vai tratá-lo do mesmo modo com que ele antes tratava quem o procurava. Um ex-presidente de tribunal que foi advogar contou, com lágrimas nos olhos, a um amigo, como tinha sido rudemente tratado — talvez injustamente — por um magistrado, na ativa, que queria mostrar independência. Por isso, o eventual merecido “castigo” não precisa ser expresso na proibição de se inscrever na OAB. Medida, por sinal, evidentemente ilegal.
Magistrado mudando de trincheira sempre dá margem a problemas. Um ex-desembargador ou ministro de tribunal superior sentem-se quase insultado quando um “juizinho” indefere, na lata, sua petição. “Quem o ‘fedelho’ pensa que é?”, pensa, abalado. Essa é uma reação normal, humana, resultado da longa experiência com o poder. Seria o mesmo que um general levar um redondo “não!” de um cabo ou sargento. Talvez fosse melhor que, aposentado, o magistrado se dedicasse apenas ao magistério, à consultoria e à redação de livros — jurídicos ou de outra espécie. Atividades que dispensem contato pessoal em área essencialmente de atrito. Mas não dá para proibir essa mudança de profissão porque cada um sabe de suas necessidades, materiais ou espirituais.
Conta-se que um ex-magistrado, novel advogado, no dia da audiência, foi cumprimentar o juiz, sentado à sua mesa, na sala de audiências. Acomodou-se na cadeira ao lado. Mal sentou, o juiz lhe perguntou, sério: “O senhor está aqui como parte ou como colega”? Ao responder que representava uma das partes, foi convidado, com frieza, a deixar a cadeira. Certamente o juiz fez isso para demonstrar à parte contrária, presente à audiência, que não haveria qualquer favorecimento na sua decisão. Se a ostensiva frieza era indelicada, foi também imprudente a atitude do ex-magistrado, sentando-se a seu lado quando a parte contrária estava presente. Esta poderia interpretar aquela familiaridade como risco de parcialidade.
A advocacia, como se vê, é um terreno minado. E quanto menos explosivo mutilante nessa difícil caminhada, melhor.
(17-11-06)
* Advogado, desembargador aposentado e escritor. É membro do IASP Instituto dos Advogados de São Paulo. Website do autor: http://www.franciscopinheirorodrigues.com.br
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