Nos tempos atuais, o cidadão procura obter e desfrutar de segurança jurídica no seu dia-a-dia, de maneira que lhe seja assegurado, efetivamente (e não somente com apelo teórico) o direito à vida, à propriedade, à privacidade, à saúde, à educação, à segurança, enfim, a bens e valores que lhe sejam caros.
Por vezes, entretanto, o Estado (a) assume compromissos com os administrados, os quais, reversamente, nele depositam legítimas expectativas, passando, inclusive, a adotar condutas conformes ao binômio expectativa-compromisso, mas que, surpreendentemente, passado algum tempo, (b) dá novo direcionamento a esse compromisso, quebrando, abruptamente, a expectativa dos destinatários, e gerando prejuízos e desfavores a aqueles que acreditaram, de boa fé, nos compromissos estatais.
Neste cenário, pergunta-se: o cidadão, traído abruptamente na sua expectativa em relação aos compromissos assumidos pelo Estado, possui proteção jurídica suficiente para manter ou, se não, remediar, a crença rompida por ato do próprio Estado?
Dependendo, naturalmente, das circunstâncias específicas de cada caso, assim como dos fatos e fundamentos jurídicos correspondentes, a resposta é, em princípio, positiva, dizendo respeito à aplicação, em concreto, do princípio da confiança legítima, sob o viés publicista, a partir de decisão tomada e construção jurisprudencial lapidada nos domínios do Poder Judiciário.
Concebido no continente europeu, especificamente na Alemanha, e posteriormente expandindo-se por outros países, o princípio da confiança legítima está se instalando no território brasileiro – não obstante, ainda um tanto timidamente, a nosso ver – para atingir algumas relações jurídicas estabelecidas entre o Estado e o cidadão, cuidando de reparar ou atenuar as repercussões advindas da quebra das expectativas legitimamente depositadas, pelo cidadão, nos compromissos assumidos e, posteriormente, rompidos, pelo Estado.
Assim, se uma nova lei modifica o compromisso assumido por lei anterior, abruptamente, sem disciplinar a transição de regimes jurídicos, ou seu um ato administrativo revoga ato anterior, dando novo direcionamento a compromissos assumidos pela Administração Pública, sem se referir às situações atingidas por esse redirecionamento, ou, ainda, nova decisão sumulada ou, mesmo, decisão que modifica forte orientação jurisprudencial ou Sumula já estabelecida por Tribunal superior, revendo, assim, a determinação estatal sobre tema controvertido, tais situações configuram hipóteses potencialmente ensejadoras da aplicação, em concreto, de tal princípio, ainda que, reconheçamos, dificuldades se apresentem nesta fase histórica de maturação e compreensão de tão caro princípio constitucional, de natureza implícita.
Realmente, basta aqui recordar a frustração que acompanhou a quebra de expectativa legitima dos administrados, no tocante ao compromisso estatal contido na Súmula n. 276, do STJ (“As sociedades civis de prestação de serviços profissionais são isentas da Cofins, irrelevante o regime tributário adotado”), e que, justamente em razão dessa Súmula de tribunal de elevada expressão, estimulou que o administrado, insurgindo-se contra a norma que lhe exigia o tributo, adotasse a conduta que se mostrara conforme à ordem estatal: a de não recolher a contribuição, nas sociedades civis de prestação regulamentada, aparelhando, para tanto, a medida judicial apropriada em face da União federal. Acreditaram, tais contribuintes, na decisão tomada pelo próprio Estado, no portal do Judiciário, sinalizador de vigorosa jurisprudência – a ponto de ter sido sumulado – gerando expectativas legítimas, com reflexo nas condutas dos administrados, e que foram abruptamente rompidas pelo reexame da matéria, posteriormente realizado, pelo Supremo Tribunal Federal, o qual, lamentavelmente, não fez aplicar, na dirimência do caso, o princípio da confiança legítima.
A quebra da expectativa, no plano legislativo, por sua vez, não se dá, costumeiramente, de maneira radical, exibindo, habitualmente, soluções transitórias e que têm a vocação de justamente operar a passagem entre um disciplinamento jurídico anterior e o que lhe sucederá, como a entrada gradual dos efeitos da nova lei, o disciplinamento específico operando a distinção entre a situação atingida pela lei anterior e aquela objeto da nova lei etc.
Algumas vezes, entretanto, observam-se exceções a tal “sensibilidade legislativa”, operando abrupto redirecionamento no querer estatal, frustrando a expectativa que os administrados, de boa-fé, depositaram na Administração.
É o que se passa com as já costumeiras “anistiais fiscais”, em que o Poder Público, de tempos em tempos, concede facilidades a contribuintes inadimplentes, não estendendo, entretanto, a aqueles que tenham satisfeitas as suas dívidas fiscais pontualmente ou através de parcelamentos ordinários, as mesmas condições agora asseguradas aos beneficiários do favor estatal. No caso, é indiscutível que se dá o rompimento do binômio compromisso-expectativa, fazendo com que a mais ampla parcela dos contribuintes se sinta aviltada e injustiçada, justamente porque, ao que se saiba, não está até agora sendo aplicado, no Brasil, para estas situações, o princípio da confiança legítima em relação aos atos do Estado.
Nos domínios da Administração Pública, tal situação também ocorre, exigindo que o Poder Judiciário, devidamente provocado, intervenha para tranqüilizar o administrado, mesmo porque, convenhamos, não nos parece que a própria Administração Pública, defrontando-se com dois regimes jurídicos sobre a mesma realidade – ainda que se defrontasse com situação de rompimento do binômio compromisso-expectativa -, pudesse negar vigência a um deles, ainda que em caráter temporário, ou, mesmo, conceder efeitos não previstos em ambos os conjuntos jurídicos.
Concluindo, observamos que, ao serem alterados os compromissos estatais e realizar-se a quebra da confiança legitimamente depositada pelos cidadãos e administrados, são geradas repercussões que, efetivamente, atingem a sua esfera jurídica, podendo trazer-lhes prejuízos ou desfavores, competindo ao Estado, nesse caso, reparar, disciplinar ou estabilizar, em termos jurídicos, as conseqüências advindas do seu agir, sempre precedidas da intervenção do Poder Judiciário, isso mediante: 1º.- o pagamento de indenização, pelo Estado, em favor do cidadão, inclusive mediante repetição ou compensação; 2º.- o estabelecimento, pelo Poder Judiciário, de regime jurídico de transição entre o regime anterior e aquele subseqüentemente instalado; 3º.- a manutenção dos efeitos jurídicos do regime anterior, ainda que vigente novo sistema; e, 4º.- a mantença da validade e efeitos dos atos praticados, mesmo que em decorrência de ato viciado em relação ao regime jurídico vigente.
Como se observa, o princípio da confiança legítima é de extrema importância no direito público contemporâneo, pois incidindo exatamente na confluência entre o compromisso estatal e as expectativas legitimamente geradas e assumidas, de boa-fé, pelos cidadãos, e assim reconhecidas e chanceladas pelo Poder Judiciário, permitirá dar maior segurança e certeza jurídica à coletividade.
* Marcio Pestana, Doutor e Mestre em Direito. Professor de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da FAAP. Coordenador do Curso de Direito Público do Curso de Pós-Graduação da FAAP. Advogado. Sócio do escritório Pestana e Villasbôas Arruda – Advogados, com sede em São Paulo e filial no Rio de Janeiro.