O Medo na Cidade
Izanete de Mello Nobrega*
RESUMO
O objetivo deste trabalho é realizar uma análise crítica sobre o texto “Arquitetura do Medo” de Vera Malaguti Batista e o filme “Justiça”, estabelecendo uma relação entre texto e filme, descrevendo a atualidade de nossa sociedade, passando por uma breve análise do Direito Penal Brasileiro.
1-INTRODUÇÃO
O medo da cidade não diz respeito apenas à violência: ele indica mudanças profundas em algumas noções constituintes do mundo moderno. A idéia de cidade protetora dos cidadãos se firmou junto com outras noções fundamentais: as de democracia, de liberdade e de igualdade entre os cidadãos. Consolidaram a noção de que o espaço público é aberto à circulação de todos os cidadãos a despeito de suas diferenças sociais.
É claro que muitas cidades são violentas e as grandes cidades brasileiras nunca foram tão violentas quanto são hoje. Grandes lotes são imaginados para garantir a seletividade dos moradores, ruas curvas são planejadas para desestimular a circulação e, eis aí a linhagem dos condomínios fechados e dos bairros suburbanos atuais para as classes média e alta.
Nas mais variadas alternativas anti-urbanas pode-se detectar sempre que a intenção é de segregar as classes sociais para que cada um mantenha-se no seu “quadrado”e com isso a exclusão social cria os fatores de risco para a sociedade: a violência urbana que vive em cada lugar, em cada esquina, apenas esperando que a vítima passe para ser atacada, obrigando o confinamento residencial da sociedade.
2- CONTEXTO HISTÓRICO
Desde o final da Idade Média, cidades muradas e densamente ocupadas ofereceram proteção e status aos que tinham o privilégio de ser seus cidadãos. Os muros das cidades medievais protegiam uma coletividade, um conjunto de cidadãos, uma ordem pública e não uma ordem privada. Quando esta coletividade se fortaleceu e se constituiu em ordem dominante, abriu-se os portões, derrubou-se os muros e abrigou-se os estrangeiros.
No século XIX, os habitantes das grandes cidades brasileiras viviam com insegurança e em um lugar feio, com ruas estreitas, escuras e imundas. Naquela época, os escravos tinham o dever de fazer a limpeza da cidade. A estrutura da cidade grande sempre foi alvo de especulação em relação à segurança.
A exclusão social gerou a violência desde aqueles tempos até os dias atuais, pois não havia oportunidades para os escravos e para os pobres. Os escravos não podiam alugar casas e isso era motivo de punição para quem o fizesse, portanto era necessário que eles buscassem outras alternativas de moradia.
O medo foi o meio utilizado pela classe senhorial para manter tudo sob o controle e de acordo com seus interesses e com isso ocorria revoltas, rebeliões, sedições e insurreições nas fazendas, e as ruas da cidade ficavam dominadas por escravos e e negros alforriados.
Com a instabilidade social, havia crueldade para punir os que violavam as leis e se uma pessoa negra ficasse parada numa esquina à noite, era suficiente para suspeitar de roubo, furto ou assalto.
O ataque aos negros, pobres e índios gerou muitas marcas para o futuro devido ao poder punitivo que incidia sobre seus corpos, e com isso ocorreu a divisão de territórios com fronteiras indissolúveis e zoneamentos invisíveis nas grandes cidades.
Ontem pobres e escravos, hoje favelados e traficantes. As classes dominadoras acabaram se tornado vítimas da violência provocada pela exclusão feita por elas mesmas.
3- O MEDO E A VIOLÊNCIA URBANA
O medo é composto pela manifestação de forças de ordem natural ou humana. Para amenizá-lo , a mente humana cria elementos de fuga da realidade visando ao descanso, mesmo que efêmero. O temor das adversidades leva o ser humano a criar elementos que demonstrem seu domínio do meio natural ou o protejam do caos, e para que haja um controle as casas e as cidades atuam como fortalezas, protegendo a vulnerabilidade humana.
O medo se faz presente em todos os lugares, desde a desprotegida população suburbana e favelada aos bairros de classe média e altas, havendo a necessidade de estratégias de proteção patrimonial. A muralha, a proteção do radar, simples cacos de vidros nos muros e sistemas inteligentes de segurança são maneiras de manter controladas as forças hostis.
A violência urbana é um termo complexo, pois indica mais que um problema coletivo, é real, concreta e reconhecida, portanto é uma representação coletiva de entendimentos e das experiências de vida nas cidades por parte dos moradores.
A violência urbana é interpretada como responsável pelo rompimento da normalidade das rotinas cotidianas, ou seja, ela não é um simples sinônimo de crime comum e nem de violência geral.
Observa-se que a paisagem urbana é a expressão do tipo de desenvolvimento da sociedade, ou seja, nela estão os grandes desníveis de renda entre os diversos grupos, havendo ações em espaços formais, com a presença da polícia, das escolas, da saúde, etc.
Percebe-se que a sensação de se sentir seguro e protegido torna-se a cada dia mais constante, já que a confiança na capacidade de resolução do problema parece muitas vezes se distanciar cada vez mais. Assim vai se consolidando a idéia de violência generalizada, a sensação de insegurança e o pânico em toda a sociedade.
A “cultura do medo” tem provocado substanciais alterações na arquitetura das cidades, pois as classes média e alta buscam isolarem-se a cada dia mais em condomínios, clubes e shopping centeres como forma de manterem-se a salvo de uma ameaça, que para eles é de cunho social.
Essas construções, paradoxalmente, coexistem no espaço urbano com barracos e favelas, transformando a paisagem da cidade em verdadeira reprodução arquitetônica da segregação social.
4- AS RUAS DO MEDO
A arquitetura da cidade explicita o medo da violência. É crescente o número de elementos medievais e carcerários presentes nas habitações.
Muralhas, arames farpados, lanças, fossos, seteiras, os edifícios e casas parecem com castelos medievais da Idade Média, fazendo com que as residências fiquem assemelhadas aos presídios de segurança máxima, com sistemas sofisticados de alarmes, sensores e câmeras de vídeo.
O isolamento doméstico faz as pessoas ficarem carentes de uma vivência urbana, pois não vivenciam a cidade. Não conhece os cheiros, os ruídos, as cores, as luzes da cidade, como se estivesse descolada do espaço em que vive.
A pessoa passa a ver o próximo com receio, pois parece que todos são inimigos, formando uma bola de neve e o espaço de convivência social vai se restringindo, aumentando cada vez mais o medo.
Para viver em um lugar seguro é preciso pagar um preço alto, não somente em dinheiro, porque quem decide morar cercado de aparatos de segurança, tem que abrir mão da própria privacidade.
Deve-se pensar duas vezes antes de ir a um caixa eletrônico, que deveria servir para facilitar a vida das pessoas, e no entanto, pode colocá-las em perigo, pois estes são alvos de constantes ataques de ladões e profissionais do crime. A insegurança é total, e com a evolução da violência esses caixas eletrônicos estão sendo transferidos para dentro de shopping centeres, supermercados, etc.
Estamos diante de uma arquitetura que explicita o medo da violência, onde o crescimento da crise econômica e social somado à concentração de renda são fatores desencadeadores dessa situação de exclusão e violência. As novas moradias foram a forma que a elite encontrou de se defender da população excluída, porém toda esta segurança não muda muito a vida das pessoas, apenas alivia a sensação de insegurança.
5- FILME “JUSTIÇA” X TEXTO “ARQUITETURA DO MEDO”
Nos dias de hoje, com o aumento da violência e do clamor social por justiça, ganham cada vez mais importância os temas relacionados ao direito de punir do Estado e a efetividade no exercício deste direito.
A prisão daqueles que praticam crimes vem sendo encaradas há séculos como a principal alternativa para punir o infrator das normas jurídicas. É muito importante uma reflexão a respeito dos resultados que a aplicação da pena de prisão, de forma quase que generalizada, tem nos trazido.
Com base nisso surge a pergunta: será que um indivíduo que cometeu um crime, mesmo sem violência, e é submetido a anos de prisão, em condições muitas vezes incompatíveis com as estabelecidas pelo ordenamento jurídico, poderá sair da prisão recuperado?
Diante disso, cabe indagar, também, se a finalidade da prisão tem sido alcançada, e ainda, se os índices de reincidência não denunciam a falência do nosso Direito Penal. A prisão seria de fato a melhor forma de pu ir o criminoso?
O documentário “Justiça” retrata o dia-a-dia do Poder Judiciário brasileiro. Nele percebemos que a quase totalidade daqueles a que respondem a processos é de pessoas oriundas das camadas mais baixa da sociedade. Esta constatação denuncia uma situação alarmante em nossa sociedade: o destinatário final do nosso Direito Penal é o pobre.
Cabe ressaltar que a maioria dos processos mostrados no documentário versam sobre delitos que recaem sobre bens materiais, o que reafirma o caráter senhorial da norma penal, que tal qual no passado, tem por objetivo manter o “preto forro” longe das posses do “senhor de engenho”.
Percebe-se com isso que o aparato estatal é predominantemente utilizado para servir aos interesses de determinado seguimento social sem uma preocupação com a efetiva aplicação do Direito e muito menos com a realização da justiça, existindo assim uma substancial diferença entre a aplicação da lei pelo Poder Judiciário e a Justiça.
O texto “arquitetura do medo” nos mostra como os discursos do medo tem conseqüências estéticas, criam monumentos e transformam a cidade, procurando entender o medo através da naturalização de seu discurso e suas conseqüências.
O texto também evidencia que o nosso Direito Penal foi criado pelas classes dominantes com o fim principal de serví-las, a começar pelo Código Criminal do Império de 1830, que foi criado sob a influência do medo das insurreições populares, tendo como autores somente membros pertencentes à elite da sociedade imperial e continuando com as nossas atuais leis penais.
O Direito Penal faz parte de todo o aparato estatal com vista a implementar uma ideologia para a perpetuação das classes dominantes no poder, pois as leis penais buscam proteger, em sua maioria, os bens jurídicos de maior importância para a elite, que por conseguinte são mais suscetíveis a ação dos menos favorecidos.
6- CONCLUSÃO
A violência urbana criou uma nova estética nas cidades. Modernidade e bárbarie coabitam o mesmo espaço, com a incorporação de elementos semelhantes aos hábitos medievais de defesa. Mudou não apenas a estética. O homem também se modificou.
Ocorre mudanças significativas na concepção do espaço público. O medo da cidade grande é crescente, a medida que aumenta o desemprego, aumenta a violência e novas formas de convivência devem ser criadas.
A exclusão social é um fator que desencadeia a violência. Não há muitas perspectivas de futuro para os ex-presidiários e eles voltam sempre ao crime como forma de sobreviver.
É a expansão dos direitos individuais e o respeito aos cidadãos que efetivamente protegem as pessoas e fazem a violência decrescer. Não é a cidade, por maior e mais diversa que seja, que se deve temer, mas sim a ausência de uma ordem pública e do respeito aos direitos dos cidadãos. A proteção tem que ser coletiva.
Fugir da cidade não é a solução para os males da violência, pois estes se repetem aonde quer não exista um espaço público forte e respeitador dos direitos dos cidadãos. Direitos e espaço público democraticamente ordenado protegem; enclausuramento, muros particulares e segurança privada ajudam a violência e o medo a proliferar.
7- BIBLIOGRAFIA
. BATISTA, Vera Malaguti. Discursos Sediciosos Crime, Direito e Sociedade. Editora Renan. Ano 7, nº 12, 2º semestre de 2002.
. Filme: JUSTIÇA
. www.flickr.com/photos/angar/2440266627/in-set/72157605309212112
. www.uff.br/arqviol/repercussoes.htm
. www.uff.br/arqviol/REPERCUSSOES/LIG_180403.htm
* ALUNA DO 2º PERÍODO DE DIREITO DA UNIVERSIDADE SALGADO DE OLIVEIRA – UNIVERSO (SÃO GONÇALO – RJ)
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