Neschling e Osesp, sintonia e grandiosidade
Ives Gandra da Silva Martins*
Meu sábio pai, José da Silva Martins, que morreu aos 102 anos, após acidente que o deixou 105 dias em coma, procurou incentivar, em seus quatro filhos, o amor à arte. Todos éramos obrigados a ler, em criança, livros de moral, estudar poesia, artes plásticas, literatura e música. Dois de meus irmãos seguiram a carreira musical (João Carlos e José Eduardo). José Paulo e eu o comércio e o Direito, respectivamente, mas mantivemos, sempre, o amor ao que aprendemos do velho patriarca.
Pessoalmente, estudei piano, harmonia e contraponto com Giamarusti e Ângelo Camin e, por ser o mais velho, passei a ser o observador das interpretações de meus irmãos, opinando sobre suas execuções, às vezes, com sugestões. Quando meu pai comemorou 100 anos, José Eduardo e João Carlos, na Ação de Graças da missa que lhe foi dedicada, tocaram Bach e Rameau e eu – para lembrar os velhos tempos – conduzi o Coral Baccarelli com a apoteótica Aleluia de Handel, para gáudio do velho.
Esta introdução eu a faço para justificar o que vou escrever.
Neste último final de semana, ouvi a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, dirigida por John Neschling, executar as Sinfonias nº 2, 8, 5, 7 e a abertura Egmont de Beethoven – única partitura orquestral que, na minha vida, cheguei a decorar –, as Sinfonias 1, 2, 3, 4, 5 e 6, Suite Vila Rica, abertura festiva e abertura concertante de Camargo Guarnieri, além de Maracatu de Chico Rei, Festa de Igrejas e Sinfonia Tropical de Francisco Mignone.
Certa vez, jornalistas da Folha perguntaram-me onde colocava minha poupança e disse-lhes, preferencialmente, em livros e discos. Minha biblioteca é de, aproximadamente, 25.000 volumes e tenho, de música clássica, em torno de 2.000 CDs, o que me permite comparar estilos diversos de solistas e regentes.
Ora, ao ouvir estas peças – depois da primeira interpretação – comecei por Egmont e as Sinfonias 2 e 8 de Beethoven – fiquei profundamente impressionado com a qualidade da orquestra e com o nível da interpretação que Neschling oferta às referidas. A música orquestral exige do condutor e dos músicos uma sintonia semelhante àquela que um conjunto eqüestre tem que ter entre cavaleiro e puro-sangue. Um bom regente e má orquestra ou uma boa orquestra e mau regente oferecem espetáculos medíocres. Apenas se os dois forem bons é que a música flui e comove platéias.
Ora, a Osesp e Neschling propiciaram-me um fim de semana musical do mais alto nível. Conheci Camargo Guarnieri – freqüentava a casa de papai – e, à época, irreverente e petulante como são os jovens – discutia com ele a tendências da música, tendo chegado, inclusive, a escrever sobre sua música, no jornal A Cidade, de Ribeirão Preto, artigo em face de seu estilo diferenciado.
Ora, aquilo que Camargo Guarnieri explicava a meu pai, meus irmãos e a mim, senti nas interpretações deste estupendo regente e desta magnífica orquestra. Da música camarguiana recende um nacionalismo moderno, em que a melodia, muitas vezes, cede espaço ao conjunto rítmico, ora nostálgico, ora lembrando a terra, outras vezes exteriorizando um lirismo interiorano em única linha sonora, ou em batidas próprias de movimentos sincopados, com reduções especiais, quando não explodindo em sons desconcertantes, transpirando a grandes metrópoles. Tais variações constituíram sempre o seu universo, podendo passar das dissonâncias mais audazes à mais pura melodia. Tudo isto, que fez de Camargo Guarnieri um compositor excepcional, eu senti, em toda sua densidade, ao ouvir a fantástica interpretação que Neschling apresentou nestas execuções.
Mignone, conheci pouco, mas sua interpretação agradou-me sobremaneira porque ao nacionalismo próprio – e menos contundente do que aquele do modernismo dilacerante de Camargo – Neschling deu-lhe a vibração certa, mantendo a intensidade de sua presença musical nas três peças que ouvi.
É, todavia, em Beethoven que me foi possível perceber a grandeza de Neschling e da orquestra. Tenho coleção enorme de interpretações das sinfonias de Beethoven, inclusive com orquestras conformadas nos mesmos moldes que as orquestras da época em que compostas. Sempre senti em Beethoven grandeza diferenciada dos compositores que o antecederam e daqueles que o sucederam. Era independente das escolas da época, tendo estilo que caracterizou a própria perfilação de seu caráter, em tensão e debates internos permanentes.
Ora, a interpretação das Sinfonias 2 e 8 – as sinfonias pares de Beethoven são menos admiradas que as ímpares – não fica devendo às melhores “performances” de regentes de expressão, alguns dos quais inclusive assisti, ao vivo, no Teatro Municipal, em minha juventude.
A interpretação das Sinfonias 5 e 7, todavia, é admiravelmente distinta. Estupenda. Sente-se um Beethoven clássico, todavia, com linguagem musical moderna, em toda sua grandiosidade eterna. A passagem do 3º para o 4º movimento da 5ª Sinfonia é de um inacreditável suspense, desaguando em efeitos de amplidão sonora, como raramente ouvi.
Orquestra e regente valorizam o que de melhor o Brasil tem. Neschling está entre os grandes condutores do mundo atual e a Osesp é, hoje, orquestra a competir com as melhores dos países desenvolvidos.
De tudo o que Neschling faz para a música do Brasil, quero concluir com algo, que faltava neste país. Foi o de valorizar o músico, impondo melhor remuneração para que tivessem a mesma dignidade, o mesmo nível dos músicos dos países mais evoluídos e recursos para o aperfeiçoamento constante de sua arte. E nisto, o que fez pela classe musical, reside, talvez, do ponto de vista social, a melhor contribuição, que, de resto, permitiu ter a qualidade que obteve da Osesp. Num mundo de tanta busca de espaços e, não poucas vezes, de desvalorização ao trabalho artístico, foi esta a sua mais humana e social colaboração com o meio cultural brasileiro, fato este que me levou – fora da linha de meus artigos – a escrever estes breves comentários.
* Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIFMU e da Escola de Comando e Estado Maior do Exército, Presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo e do Centro de Extensão Universitária – CEU. Site: www.gandramartins.adv.br
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