Nem Amélia, nem Geni
Maria Berenice Dias*
A mulher ideal, cantada em versos e prosas, sempre correspondeu à imagem de pureza, recato e docilidade. Essa mulher, a quem também se exige o atributo da beleza, é reconhecida como uma verdadeira mulher. Sua sublime missão é a maternidade. Para isso foi preparada desde o nascimento. Basta lembrar a legião de bonecas que é presenteada e as miniaturas de utensílios domésticos com que brinca.
O grande sonho de toda mulher é ser conduzida ao altar, vestida de branco com véu e grinalda: provas de sua virgindade e sua submissão. A partir desse dia, torna-se a rainha do lar, com o dever de ter filhos, cuidar de sua prole, administrar o lar e zelar para que nada falte ao marido. Aquela que desempenha bem essas tarefas, esta, sim, é uma mulher de verdade, a quem Mário Lago chamou de Amélia.
A mulher não tem a liberdade de se afastar desse modelo. Aquela que ousa não buscar no casamento o sonho de realização pessoal, a sociedade rotula pejorativamente de “solteirona”, feia expressão a identificar alguém que ninguém quis, que não teve competência de conseguir marido.
A evolução dos costumes, o afastamento entre o Estado e a Igreja, a inserção da mulher no mercado de trabalho, o surgimento dos métodos contraceptivos, em nada contribuíram para o surgimento de uma nova imagem de mulher.
Ainda que tenha caído o mito da virgindade, o livre exercício da sexualidade até hoje é causa de desprestígio. Aliás, a forma de agredir uma mulher é chamá-la de prostituta. Quem “dá pra qualquer um” é maldita, é “boa pra cuspir”, a Geni da música de Chico Buarque de Holanda.
A tentativa de buscar um espaço de igualdade e resgatar a cidadania também acabou sendo rotulada. Quem empreendeu a luta emancipatória passou a ser chamada de “feminista”: mulher feia, mal amada, homossexual, que está querendo ocupar o lugar do homem. Essa reação teve o grande mérito de sustentar a hierarquização entre os gêneros.
Aliás, é muito confortável manter essa visão dicotômica das mulheres, ou boas ou ruins, ou santas ou putas. Assim, nada atrapalha a superioridade masculina, continuando os homens como os donos do poder.
Outra não é a estratégia do movimento pela livre orientação sexual, o qual acaba por alijar as mulheres. Tanto, que a palavra “gay” identifica os homens e não as mulheres homossexuais. Mais uma vez se procurou desprestigiar uma expressão feminina; e a palavra “lésbica” ganhou uma conotação negativa. Novamente as mulheres restaram no anonimato, à sombra dos homens.
Assim, a homoafetividade lésbica sujeita-se a uma dupla rejeição: as feministas, em face do estigma que as persegue, não permitem a sua participação. Os gays, a seu turno, repetindo a postura masculina com relação às mulheres, também relegam o segmento feminino a um segundo plano.
Está chegada a hora de dar um basta à longa trajetória de servidão que sempre marcou a história da mulher. É necessário que as mulheres mais uma vez empunhem juntas uma nova bandeira em busca de dar visibilidade também à livre orientação sexual.
Mister que as mulheres se dêem as mãos e de forma conjunta abram mais espaços, saibam prestigiar novas conquistas. Todas unidas: brancas e negras, hetero e homossexuais, lésbicas, transexuais; sãs e deficientes; solteiras, casadas; prostitutas; Amélias e Genis…
Todas, simplesmente mulheres, pois, enquanto não participarmos do poder, não teremos voz nem vez.
* Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM
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