Justiça nega a magistrado o tratamento de “doutor”
Mario Guerreiro*
As formas de tratamento são muito simples em sueco e muito complicadas
Em inglês os pronomes pessoais são
É escusado dizer que o inglês é a língua menos complicada do mundo. Será isto influência do British practical sense? A 2a.pessoa do plural tem a mesma forma que a 2a. pessoa do singular. Geralmente, os verbos são apresentados em 3 formas: (1) a do infinitivo que é usada para conjugar o presente do indicativo, com apenas uma variação na 3a. pessoa do singular em que se acrescenta um”s”, (2) a do passado que expressa nosso pretérito perfeito e (3) a do particípio passado com a qual se forma – juntamente com o auxiliar to have – o presente perfeito
Obviamente, os nativos da língua reconhecem a distinção entre uma ação levada a cabo, completa, e outra que ainda não tinha terminado. Por exemplo: “eu cantei”/ “eu cantava” . Quando é o caso de se expressar ação que ainda estava em curso, recorre-se a uma forma composta com o verbo to be no passado + particípio presente do verbo principal: I was singing ( Eu estava cantando).
Pois… Dize-me lá, ó Joaquim! Qual a diferença entre: (1) eu estava cantando, (2) eu cantava, (3) eu estava a cantar? Do ponto de vista semântico, é a mesma diferença que há entre “nada” e “coisa nenhuma”. Só de uma maneira pode-se explicar isto: o gosto dos ingleses pela simplicidade das formas contrastando com o gosto dos portugueses pelas filigranas inúteis. Está arraigada na alma inglesa a máxima: Entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem (William of Ockam), ou seja: “As entidades não devem ser multiplicadas sem necessidade” E na alma portuguesa a máxima: Entia sunt multiplicanda ad libitum, ou seja: “As entidades podem ser multiplicadas à vontade”.
Mas eu não estou aqui para levar meus leitores ao fado nem ao enfado com minhas pontuações de caráter filológico. Deter-me-ei nas formas de tratamento. É um fato espantoso que, ao se dirigir a um varredor de rua ou a rainha da Inglaterra, use-se o pronome “you” (você) com a diferença de que, quando é o caso da referida soberana, acrescenta-se a forma adequada de tratamento: Her Majesty.
Em Portugal, a coisa é um pouco diferente: ao se dirigir a um varredor de rua ou ao Presidente da República usa-se “senhor”, com a diferença de que quando é o caso deste último ou de um bacharel em qualquer coisa, acrescenta-se “doutor”. Eu não disse que português adora firulas inúteis e bibelôs mimosos?!
Mas há um fato mais pasmoso ainda e que eu estava guardando para um momento de grande impacto…Com quem não se tem intimidade, o tratamento é “o senhor” ou “o senhor doutor”. Com quem se tem intimidade, o tratamento é “tu” .“Você”, dizem por lá, é estrebaria! E pensar que “você” vem de “vosmicê” (dialeto caipira) que por sua vez vem de “vossa mercê” (português e do bom que nem vinho verde e azeite Gallo!).
Isto não é de causar espécie. O fato pasmoso a que me referia é que o português é única língua do mundo que tem a palavra “saudade” (longing for), perdão: é a única língua do mundo em que uma forma de tratamento virou pronome pessoal. “Você está me entendendo?” ou “O senhor está me entendo?” A que ponto chega a luso-subserviência!
Dei-me conta disso, uma vez que estava em Espanha e tive que me dirigir a um ancião com o devido respeito. Larguei um portunhol: “El señor puede darme una información?” Imediatamente dei-me conta de que em espanhol não existe o pronome pessoal “el senõr”. Eu deveria ter dito “Por favor, señor, puede usted darme una información?”/ “Please, sir, may you give me an information?”.Conversa vai, conversa vem e eis que abro O Globo no sábado (7/5/2005) e me deparo com a insólita manchete: justiça nega a magistrado tratamento de ‘doutor’
Como assim? Como pode negar tal coisa, se até dentista é chamado de ‘doutor’, minto: ‘dentista’, ‘cocheiro’, ‘funileiro’, etc. são nomes de profissões que não existem mais. Quem é chamado de ‘doutor” é o obturacionista, o extracionista, o canalista, o gengivista et caetera. E se isto é assim, por que não chamar o juiz de ‘doutor’ ?
Pensando bem, até chamá-lo de ‘doutor’ seria uma capitis diminutio. É como chamar um general de capitão. Assim como o tratamento adequado a um cardeal é ‘Eminência’- ainda que não seja o caso de uma eminência parda – o adequado a um magistrado é ‘Meritíssimo’, minto: esta forma é decididamente unfashionable, coisa de antanho. O tratamento adequado é “Excelência”.
Mas tal forma de tratamento costuma ser usada nas Cortes de Justiça quando um advogado, promotor, defensor público, etc. se dirigem ao juiz e estão, é claro, devidamente engravatados. Como dizia o saudoso Nelson Rodrigues: “A gravata é mais que uma gravata: é um símbolo, o símbolo que separa o homem do marginal”.
Essa forma restringe-se a um espaço delimitado e ao exercício da função. Se um juiz está togado e sentado em sua cadeira, ele tem todo o direito de ser tratado de ‘Excelência’, nem mais nem menos. Porém, se ele está na praia de sunga jogando frescobol… Tratá-lo de ‘excelência’- em tais circunstâncias – partindo de um amigo íntimo é brincadeira inocente; partindo de quem não goza da sua intimidade, puro deboche. Ninguém é excelência de sunga!
O fato é que, de acordo com Antônio Werneck
Corretíssima decisão, embora na prática existam dois tipos de doutor: (1) Doctor de jure, ou seja: aquilo que os americanos chamam de Ph.D. e (2) Doctor de facto, na melhor das hipóteses um portador de diploma de Bacharel (o mais baixo na hierarquia universitária) e na pior, um manda-chuva iletrado ou analfabeto funcional como tantos e tantos no Brasil. No Brasil, não importa o que está sendo dito, mas sim quem o diz. “Você sabe com quem você está falando?!” Como já observava Millôr Fernandes nos bons tempos em que era o Vão Gogo do Pif-Paf:
Tudo o que digo, acreditem,
Teria mais solidez,
Se em vez de um carioquinha,
Eu fosse um velho chinês.
* Doutor em Filosofia pela UFRJ. Professor Adjunto IV do Depto. de Filosofia da UFRJ. Ex-Pesquisador do CNPq. Ex-Membro do ILTC [Instituto de Lógica, Filosofia e Teoria da Ciência], da SBEC [Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos]. Membro Fundador da Sociedade Brasileira de Análise Filosófica. Autor de Problemas de Filosofia da Linguagem (EDUFF, Niterói, 1985); O Dizível e O Indizível (Papirus, Campinas, 1989); Ética Mínima Para Homens Práticos (Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1995). O Problema da Ficção na Filosofia Analítica (Editora UEL, Londrina, 1999). Ceticismo ou Senso Comum? (EDIPUCRS, Porto Alegre, 1999). Deus Existe? Uma Investigação Filosófica. (Editora UEL, Londrina, 2000) . Liberdade ou Igualdade? ( EDIPUCRS, Porto Alegre, 2002). Co-autor de Significado, Verdade e Ação (EDUF, Niterói, 1985); Paradigmas Filosóficos da Atualidade (Papirus, Campinas, 1989); O Século XX: O Nascimento da Ciência Contemporânea (Ed. CLE-UNICAMP, 1994); Saber, Verdade e Impasse (Nau, Rio de Janeiro, 1995; A Filosofia Analítica no Brasil (Papirus, 1995); Pré-Socráticos: A Invenção da Filosofia (Papirus, 2000) Já apresentou 71 comunicações em encontros acadêmicos e publicou 46 artigos. Atualmente tem escrito regularmente artigos para www.parlata.com.br,www.rplib.com.br , www.avozdocidadao.com.br e para www.cieep.org.br , do qual é membro do conselho editorial.
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