Exames de Ordem da OAB.
Francisco César Pinheiro Rodrigues*
Foi com justificada satisfação que me deparei — por mero acaso, “navegando” na internet —, com inteligente e contundente artigo do advogado e professor Dr. Fernando Machado da Silva Lima, do Pará, criticando o excesso de rigor nos Exames de Ordem da OAB em todo o país.
São conhecidos os argumentos pró e contra tais exames, o que me desobriga de enumerá-los exaustivamente, selecionando aqui apenas alguns deles.
O argumento básico em favor da manutenção dos Exames de Ordem está no alegado despreparo dos candidatos, formados, em geral, em Faculdades pouco exigentes em termos de qualidade do ensino. A solução para neutralizar o problema estaria — segundo a OAB —, no rigor das provas do referido exame. E a limitação do número de Faculdades de Direito contribuiria, de forma indireta, mas poderosa, para solucionar o problema. O número restrito de Faculdades faria o papel de “filtro” da vocação e capacidade dos interessados em exercer uma profissão intelectualizada e exigente de qualidades especiais, pouco presentes em outras profissões: astúcia; previsão do tipo de reação do adversário (e do próprio juiz); paciência frente aos reveses, inclusive a ingratidão do cliente; alguma agressividade, bem dosada e no “momento certo”; persistência; certa dose de coragem (por vezes física); resignação contra algo extremamente aleatório (as tendências de um juiz que não pôde escolher, talvez propenso a dar, na sentença, belas aulas de direito mas não suficientemente atento no exame da prova); falta de dinheiro ou de boa-vontade do governo para pagar precatórios, etc.
Nas demais profissões liberais poucos clientes pensam em se vingar do seu dentista, médico, engenheiro, etc, mas não é raro o cidadão nutrir forte rancor — com potencial quase homicida — contra o advogado (seu ou da parte contrária) que presume ter sido sua ruína. Isso porque o advogado atua essencialmente em zona de atrito, conflitos entre seres humanos, por vezes enfurecidos e incapazes de engolir derrotas. Sua atuação assemelha-se à do domador de circo, armado de cômico banquinho e chicote em jaula recheada de feras. O médico e o dentista, por exemplo, só lidam com conflitos entre seu cliente e o lado ingrato da natureza. Quando a doença vence não há como guardar rancor duradouro contra quem o derrotou, pois a natureza é cega e impessoal. Se o profissional não agiu com desídia, considera-se vencido por um inimigo de superioridade incontrastável: o mundo biológico ou Deus, conforme a filosofia de cada um. Já em questões judiciais, o adversário é um inimigo com rosto, “antipático, presunçoso; talvez esteja agora rindo de mim, contando vantagens a seus amigos”. Em suma, a advocacia — quando militante — tem o seu lado bem ingrato. Não sei se há estatísticas comparando a incidência de enfartes entre os profissionais liberais mas arrisco dizer que o número de enfartados entre os advogados militantes leva o ouro no lúgubre certame.
Voltando aos Exames de Ordem, com a devida vênia, o argumento do despreparo dos candidatos tem um peso bem menor na motivação do crescente rigor de tais Exames. O que a laboriosa classe dos advogados mais realmente sente e teme — com razão, pois não vive de ajuda do governo — é a concorrência brutal de um número excessivo de novos profissionais reclamando sua fatia de um “bolo” cada vez menor. Se o problema fosse apenas o despreparo técnico, com prejuízo da população, tais novatos na profissão não causariam preocupação. Seriam facilmente derrotados nas demandas contra os já experientes profissionais que, por lógica, teriam a preferência dos clientes mais conscientes e abonados, o sonho de qualquer profissional liberal.
Para agravar a situação da advocacia, como profissão autônoma, o encolhimento do mercado de trabalho foi sendo progressivamente acentuado com as ações movidas por uns poucos profissionais do Direito — inclusive por promotores de justiça — que, com uma só demanda defendem o interesse de centenas ou milhares de interessados. Cada mandado de segurança coletivo, ação popular, Ação Direta de Inconstitucionalidade ou Ação Declaratória de Constitucionalidade significa a não-contratação de milhares de advogados. Cada “súmula vinculante” também dispensa bom número de demandas, se ajuizadas ou contestadas de boa-fé. Além do mais, a pressão popular leva o governo — por interesse eleitoreiro ou real intenção de ser justo — a editar Medidas Provisórias que sanam problemas que afetam milhares ou milhões de prejudicados, dispensando-os da contratação de advogados. Solução boa para a população mas “prejuízo” para os advogados militantes, que têm o seu ganha-pão dependente de ações judiciais. O prejuízo vem reforçado com a facultatividade na contratação de advogados nas pequenas causas e na Justiça do Trabalho. Somando-se a isso a crescente invasão de novos profissionais, sequiosos de trabalhar, disputando o magro “bolo”, é compreensível a grita dos advogados já estabelecidos contra o que, para eles, equivale a uma “praga de gafanhotos”. Daí o rigor dos Exames de Ordem, com altíssimos níveis de reprovação.
Contra as ações coletivas não é possível verbalizar revolta porque esta seria mal vista pela população. Já contra o excesso de bacharéis pode-se reagir com o argumento do despreparo dos candidatos. Ocorre que o termo “despreparo” comporta larga margem de elasticidade de quem redige as questões. Acredito que alguns professores, até mesmo titulares de Direito, velhos e competentes advogados que atuam apenas nas suas especialidades, bem como magistrados há muito tempo judicando apenas em áreas específicas poderiam ser reprovados em tais Exames de Ordem. O professor titular é imbatível naquilo que tem relação com suas teses, mas possivelmente fraco em outros ramos do Direito. Exigir, porém — como desafiam os reprovados nos Exames de Ordem —, que velhos profissionais se submetam também aos Exames seria assumir o risco de vexame em pessoas realmente respeitáveis, embora de saber não universal. É praticamente impossível, hoje, conhecer em detalhes todo o direito positivo. Os elaboradores das questões, com a vasta legislação e doutrina à sua disposição, sabem disso. Elaborar questões é mais fácil que respondê-las.
Dizer que o excesso de reprovações no Exame de Ordem é altruísta, leva em conta apenas o interesse da população não corresponde à realidade. Imagine-se — apenas como técnica de argumentação —, que um súbito “estalo de Vieira”, um milagre de lucidez instantânea no estudar e redigir, acometesse todos os candidatos no Exame de Ordem, todos eles passando brilhantemente nos testes. Esse “auspicioso” fenômeno de genial competência seria um tremendo desastre para a classe como um todo. Um massacre, pois em todo mercado de trabalho deve haver um certo equilíbrio entre oferta e procura, entre número de clientes e o de profissionais.
O artigo do Prof. Fernando Machado da Silva Lima — “A reprovação do Exame de Ordem”, elaborado em 07.2005, constante do site Jus Navegandi — menciona a sugestão dada por ilustre jurista, brilhante professora titular de prestigiosa Faculdade de Direito, no sentido de que o candidato ao Exame de Ordem só deveria ter o direito de prestar cinco exames. Depois disso não poderia mais tentar ser advogado. Teria que “repensar” seu futuro, sua profissão. Em suma, comprovada sua inata “incapacidade” intelectual, teria que jogar na lata do lixo seu diploma, o dinheiro gasto nos cinco anos de estudo, o tempo perdido e sua “absurda” esperança de ocupar um lugar ao sol no mundo jurídico.
Essa proposta felizmente não foi aceita pelo comando federal da OAB. É por demais elitista e arrogante. Divide, praticamente, os candidatos entre “superiores” e “inferiores”. Equivaleria a marcar com ferro em brasa uma suposta “inferioridade” mental de candidatos que simplesmente insistiram em exercer uma profissão, passaram nos exames de suas Faculdades e talvez não tivessem tempo nem recurso suficiente para ficar em casa só estudando para o tal Exame. Além do mais, esses exames não são gratuitos. Proporcionam arrecadação também para a OAB. Inúmeros fatores podem explicar essa reprovação em cinco Exames de Ordem: pouco tempo disponível para estudo; falta de dinheiro para freqüentar bons cursinhos; problemas familiares ou de saúde (v.g. distúrbio de aprendizagem — contornável com técnica específica de estudo —, anemia, disfunções endócrinas, problemas visuais, diabetes ignorado pelo paciente, verminose, etc.).
Tais candidatos, reprovados em massa, “não sabem redigir”? Que sejam, então, ensinados! Mesmo tardiamente! Essa a verdadeira missão, nobre e otimista, da Pedagogia. Principalmente, que aprendam, os jovens, a ler e estudar do modo certo, adequado a cada aluno. O problema de alguns reprovados pode estar na técnica errada de ler, ou estudar— se, de fato, a reprovação em massa está na inépcia dos candidatos e não na preocupação da classe com o excesso de concorrentes. Certa vez, em discurso, Ruy Barbosa frisou que “sabia estudar”, sem entrar em detalhes. Não basta ser inteligente e alfabetizado, é preciso que a técnica de ler seja compatível com o assunto pesquisado, a conjugação de vista e cérebro de cada leitor. Conheci um cidadão que abandonou o curso primário após ser reprovado seis vezes no segundo ano. Para ele o ato de ler era um “suplício”, embora esperto com números e tudo o mais. No entanto, embora “caso perdido”, era um ótimo construtor de casas. Detalhista, calculava muita coisa de cabeça e suas construções são perfeitamente confiáveis. Se um psicólogo “resolvesse” sua impaciência mental e lhe fornecesse as ferramentas certas, adequadas à “mecânica” particular de seu cérebro, sua vivacidade mental poderia ter sido ainda mais útil do que é.
É possível que alguns reprovados mais de uma vez tenham inteligência inata igual ou superior a de alguns professores mais bafejados pela sorte. Tive colegas de Faculdade que se revelaram profissionais muito melhor sucedidos que seus colegas primeiros da classe, que não obstante muito inteligentes não eram motivados para a profissão. Os Exames de Ordem não têm como avaliar importantes qualidades morais que não dependem de testes jurídicos (senso de responsabilidade, honestidade financeira e mental, organização, etc.). O dia-a-dia da maioria dos advogados não depende de complicadas meditações. Há casos de excelentes magistrados que foram reprovados mais de cinco vezes antes de ingressar na Magistratura, quando não havia os tais Exames de Ordem. Prefiro não mencionar seus nomes porque isso poderia desagradar seus herdeiros, temerosos de uma falsa interpretação das reprovações nos concursos de ingresso na magistratura.
E por falar em magistrados, é preciso também levar em conta que a OAB, arvorando-se em juíza suprema do intelecto dos egressos de Faculdades de Direito, por vias oblíquas, acaba decidindo quem pode, ou não, ser juiz, promotor ou delegado. Como, para prestar exame de ingresso na Magistratura e no Ministério Público é preciso ter exercido a advocacia e para exercer essa profissão é preciso passar no Exame de Ordem, acaba a OAB decidindo quem pode, ou não ser juiz ou promotor. Um poder excessivo, convenhamos. E se ela eventualmente, pergunta-se, exagera no rigor apenas para barrar a “invasão de gafanhotos”? Para neutralizar um eventual abuso de poder seria conveniente e lógico que magistrados e promotores de justiça tivessem participação na elaboração das questões dos Exames de Ordem, cortando eventuais exageros de rigor visando apenas o interesse profissional dos advogados já atuantes. Se a OAB participa dos concursos de ingresso na Magistratura e no Ministério Público, igual vigilância deveria ser outorgada a juízes e promotores nos Exames de Ordem. Ressalte-se que a OAB é um “juiz-examinador” possivelmente interessado no alto índice de reprovação. Não tem, a seu favor, uma presunção de isenção no formular as questões.
A solução do excesso de bacharéis despejado no mercado tem que ser resolvido na base da prevenção, com limitação de abertura de cursos controlada pelo Ministério da Educação. Ministério presumivelmente interessado apenas no bem comum, na real necessidade de tal ou qual proporção de profissional por habitantes. Presunção de isenção que não existe por parte da OAB. Outra solução estaria em modificar a essência da advocacia, permitindo a formação de empresas de advogados especializados que, mediante remuneração mensal, dariam assistência a seus associados, como vem fazendo a Medicina com seus planos de saúde. Se a classe média tivesse essa assistência, essencialmente preventiva, as transações e negócios em geral fluiriam com menos erros e posteriores conflitos. E a OAB regularia a formação de tais empresas, preponderantemente preventiva de demandas. Essa sugestão, porém, desperta em alguns advogados, uma rejeição de horror. Alegam que a advocacia implica em estreita e pessoal relação de confiança entre o cliente e seu específico advogado, esquecidos de que os grandes escritórios de advocacia, com dezenas ou centenas de profissionais são procurados justamente porque contam com advogados especializados em todos os ramos do Direito. O cliente associado nem sabe qual o advogado que irá atendê-lo. Uma proteção jurídica mais abrangente e segura que a proporcionada por um determinado advogado, seu amigo ou conhecido, que talvez não esteja atualizado no tema que interessa ao cliente amigo. Quem quiser mais detalhes sobre essa nova configuração da cobertura jurídica pode ler meu artigo “Uma sugestão aos futuros dirigentes da OAB”, constantes do site www.franciscopinheirorodrigues.com.br .
Em suma, restrinja, o Ministério da Educação, a abertura de novos cursos de Direito; ou reivindiquem, os novos bacharéis, que as questões dos Exames de Ordem passem também pelo crivo de magistrados, promotores, delegados de polícia e membros indicados pelo Legislativo. O controle externo, tão em moda, deve ser exercido democraticamente, com examinadores de dentro e de fora, sem interesse em específico resultado.
(em 5-8-2007)
* Advogado, desembargador aposentado e escritor. É membro do IASP Instituto dos Advogados de São Paulo. Website do autor: www.franciscopinheirorodrigues.com.br
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