Sociedade

Eu confio em você


Histórias antigas podem servir para reflexão nos tempos
atuais. Jovens com menos de 25 anos entendem isto muito bem. Demonstram mais
interesse por relatos do passado do que as pessoas que estão na segunda idade.
Os extremos da vida – jovens e velhos – encontram uma grande sintonia.

Há muitos anos passados um empregado da antiga companhia
telefônica do Espírito Santo foi preso com uma quantidade grande de tóxico.
Devido à quantidade, o flagrante policial foi lavrado como tráfico de drogas.
Comparecendo a minha presença, no fórum de Vila Velha (ES), o indiciado alegou
que comprava uma quantidade maior de entorpecente para não sofrer exploração no
preço. Era, entretanto, apenas usuário e só fumava nos fins de semana.

Acreditei de imediato no preso. Juiz calejado no ofício
conhece quem fala a verdade e quem mente. Mas era preciso que viessem para os
autos os documentos comprobatórios do que o preso me dizia. O processo é
público, a Justiça é hierarquizada, os atos do Juiz estão sujeitos a reexame do
Tribunal. Não basta que o juiz esteja pessoalmente convencido de um fato para
que esse convencimento dê embasamento a sua decisão. É preciso também que os
elementos para a decisão estejam dentro do processo. Expliquei tudo isso ao
preso, determinei que fosse aberta vista dos autos à Defesa para as alegações
preliminares e a juntada dos documentos necessários e fiz constar do
assentamento todos estes detalhes.

O diligente advogado, já no dia seguinte, dava entrada no
seu petitório, acompanhado da documentação adequada. A condição de homem
honesto, chefe de família, estimado no seu círculo de convivência, todas essas
qualidades positivas do preso ficaram provadas. Determinei sua volta imediata a
minha presença.

Sempre acreditei e até hoje acredito no poder da palavra.
Aquele momento era importante demais para ser um momento burocrático. Pedi ao
preso que se levantasse e encarando-o, eu o chamei pelo seu prenome e disse:
“Fulano, eu confio em você”. Ele respondeu firmemente: “Pode confiar, doutor.”

Concedi-lhe então liberdade, através de despacho oral.
Oficiei à empresa pedindo que não o dispensasse. O ofício foi discutido na
diretoria. Alguns alegavam que para cada vaga de trabalho havia uma dezena de
candidatos, a empresa não tinha motivo para manter maconheiros nos seus quadros.
Outros ponderaram que se tratava de um pedido do juiz e que assim devia ser
acolhido. Prevaleceu a opinião favorável à manutenção do empregado.

Alguns anos depois, quando realizei uma pesquisa
universitária sobre prisão e liberdade, a pessoa beneficiada pela oportunidade
concedida voltou a minha presença para ser ouvido, pois a pesquisa consistia
justamente em verificar o êxito ou fracasso de medidas alternativas ao
aprisionamento.

Depois de responder todas as perguntas que lhe foram feitas,
o antigo suposto traficante abre uma caixinha e retira dela uma medalha de
“honra ao mérito”, outorgada a sua pessoa quando completou dez anos de casa.
Entrega-me a medalha dizendo:

“Doutor, esta medalha lhe pertence. Se naquela tarde eu
tivesse ficado preso, garanto ao senhor que viraria um bandido.”

Quis recusar a oferta, mas ele disse, peremptoriamente, que
não voltaria para casa com a medalha. Está comigo até hoje, guardada num lugar
especial.

João Baptista Herkenhoff, magistrado aposentado, 74 anos, é
professor pesquisador da Faculdade Estácio de Sá de Vila Velha (ES) e
palestrante Brasil afora. Autor do livro Mulheres no banco dos réus – o
universo feminino sob o olhar de um juiz (Editora Forense, Rio, 2009).

E-mail: jbherkenhoff@uol.com.br

Homepage: www.jbherkenhoff.com.br

Como citar e referenciar este artigo:
HERKENHOFF, João Baptista. Eu confio em você. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2011. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/sociedade/eu-confio-em-voce/ Acesso em: 21 mai. 2024