Crise do judiciário tem solução?
Kiyoshi Harada*
A distribuição da justiça, entre nós, é feita exclusivamente pelo Estado, que procura compor os conflitos sociais pela aplicação do direito positivo, dentro da tradicional cultura monista, assentada em um sistema lógico-formal, legalista, cuja produção transforma o Direito e a Justiça em monopólios estatais. Por isso, a crise da Justiça confunde-se com a do Poder Judiciário e de seus integrantes.
A liberalização política, seguida do nível de conscientização da população que compõe a pluralista sociedade brasileira, acabou gerando implosão de litigiosidade, que a justiça tradicional não tem condições de responder prontamente. É o caso, por exemplo, das invasões de áreas urbanas e rurais.
A Justiça vive e convive com problemas de toda ordem: protestos e greves de seus servidores; elevado custo operacional; excesso de burocracia; despreparo de servidores subalternos; excessiva lentidão que gera injustiças, de um lado, e que se constitui em agente multiplicador de lides temerárias, de outro lado. O seu desprestigio, cada vez mais acentuado, perante a sociedade salta aos olhos. É tão profunda essa crise vivida pelo Judiciário que pode-se comparar com aquela crise que GRAMSCI definia como uma situação em que o velho está morrendo e o novo ainda não tem condições de nascer. Reformas de códigos, aumento de quadros funcionais etc., são medidas paliativas incapazes de superar as dificuldades enfrentadas pelo Judiciário. A sua crise tem origem em inúmeros fatores que ora se apresentam isoladamente, ora em forma imbricada. Os principais são: falta de democratização; estrutura gigantesca; atuação deficiente e inadequada dos operadores do direito; falhas no ensino jurídico; ingerência política; escassez de recursos financeiros etc. Façamos breves análises de alguns desses fatores. A democratização da Justiça envolve vários aspectos como a autonomia financeira, a maneira de recrutar os seus membros e de compor os tribunais e, acima de tudo, a busca de nova forma de sua legitimidade, que não pode ser confundida com legalidade. O Judiciário, a exemplo de outros Poderes, peca pelo tamanho de sua estrutura gigantesca encimada pelo STF, que não mais consegue exercer o seu controle sobre tantos órgãos superpostos. A proliferação de juízes e tribunais estaduais e federais, cada qual fechado em sua estrutura peculiar e “imexível”, acaba encarecendo os custos e tornando demasiadamente lenta a atuação da Justiça prejudicando, também, o uso adequado da informatização. Até órgãos contraditórios existem como os tribunais militares, cuja atuação mais se assenta no princípio da hierarquia do que no de justiça. Não se pode confundir, outrossim, justiça especializada com justiça especial para tentar justificar a permanência de órgãos desnecessários e que só conspiram contra o princípio da efetividade do processo. A Reforma Passarinho de 1968 abriu um leque muito amplo nas instituições de ensino superior, notadamente, na área do Direito. A “universidade de elites” foi substituída por “universidade massificada”, com sensível queda na qualidade de ensino. Anualmente, milhares de formados são despejados no escasso mercado de trabalho contribuindo para engrossar o chamado “exército de bacharéis da reserva”. É preciso reformular, com urgência, a política de ensino superior. A eficiente distribuição da justiça depende muito do preparo ténico-intelectual e da postura dos operadores do direito, ou sejam, dos advogados, magistrados e membros do Ministério Público. É triste constatar que o resultado de uma demanda, envolvendo situações jurídicas complexas, cada vez mais independe da maior ou menor experiência do profissional que a patrocina. Tudo tende a ser nivelado em um patamar que não orgulha quem quer que seja.
De uns tempos para cá o Judiciário se vê mergulhado em uma crise político-institucional, apesar de já retirada a mordaça colocada pelo regime militar, de triste memória. Até medidas provisórias com claro objetivo de retirar a independência do magistrado vem sendo editadas. O desrespeito às ordens judiciais pelas três esferas governamentais são cada vez mais freqüentes. Os tribunais têm evitado confrontos que, na verdade, não interessam a ninguém. Isso tem-se constituído em estímulo para as Fazendas Públicas miltiplicar demandas desnecessárias, talvez, até mesmo com o propósito de afogar o Judiciário e com isso retardar o cumprimento dos julgados. Tudo deve ter um limite. A reação positiva contra esse estado de coisas só seria possível com o respaldo da sociedade coesa, que infelizmente vem demonstrando insatisfação generalizada com a atuação de nossa Justiça. Outrossim, a falta de autonomia financeira, que não se confunde com mera autonomia orçamentária, tem retirado do Judiciário a sua autonomia político-administrativa, colocando em permanente risco qualquer programa com vistas à melhoria na distribuição da justiça.Seria, então, insolúvel a crise do Judiciário? Uma reforma estrutural profunda poderia resolver essa crise. A máquina judiciária há de ser enxugada priorizando a justiça de primeira instância, remunerando bem e condizentemente seus integrantes a fim de evitar deslocamentos contínuos, além de motivar seus integrantes a exercer com exclusividade a sagrada missão constitucional de, em nome do Estado, dirimir os conflitos sociais. Esse enxugamento pressupõe, naturalmente, a diminuição de recursos sujeitos ao reexame de instâncias superiores. O princípio da ampla defesa não pode continuar sendo confundido com a quantidade de recursos, que não são e nem podem ser humana e adequadamente apreciados pelos tribunais. Como está, o processo se constitui em eficaz instrumento de defesa do devedor relapso. Não atende aos interesses do credor. O papel do reformador precisa ser mudado para que as inovações, fundadas na realidade, possam, enfim, sair do papel. Finalmente, impõe-se a implementação de outros órgãos extrajudiciais ao lado das já existentes para solução de conflitos de natureza patrimonial privada. Com muita vontade política de todos os envolvidos é possível sair desse atoleiro em que se acha a nossa Justiça, enquanto se processa uma reforma estrutural.
* Advogado e professor de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário, Diretor da Escola Paulista de Advocacia e Ex-Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica da
Procuradoria Geral do Município de São Paulo.
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